Prossegue no Senado a farsa do impeachment sem crime de responsabilidade.

Agora, a tarefa dos golpistas na Câmara Alta é tentar desfazer a péssima impressão que a votação desavergonhada da Câmara Baixa provocou em todo o mundo. Tentarão convencer o planeta de que o golpe não é golpe, de que Cunha et caterva fazem parte das cortes celestiais e de que Temer é exemplo de lealdade e desinteressado republicanismo.

Para tanto, cumprirão rigorosamente o regimento e os ritos e tentarão se comportar como entes racionais. Não gritarão, não invocarão o nome de Deus em vão, não farão odes extemporâneas à família, aos cachorros e aos papagaios. Evitarão mencionar os exemplos edificantes de torturadores. Tentarão se distanciar daquilo que o escritor português Miguel Souza Tavares denominou apropriadamente de “assembleia geral de bandidos”.

Será tarefa vã. A eleição do braço direito de Aécio Neves como Relator e alguns discursos proferidos na sessão inaugural da Comissão do Impeachment no Senado mostram que nada mudou. Diminuíram os decibéis, mas o vazio do crime constitucionalmente exigido para o afastamento do supremo mandatário permanece.

Alguns senadores já falam abertamente que julgarão Dilma “pelo conjunto da obra” e com base em “critérios políticos atinentes a sua representação”. Desse modo, confessam publicamente que não há crime imputável à presidenta e que aderiram a um “parlamentarismo de bananas” que pretende afastar a presidenta por motivos meramente políticos, nos transformando numa republiqueta de bananas. Confessam que darão prosseguimento acrítico aos ditames da “assembleia de bandidos”. Confessam que participam de um simulacro de processo jurídico.

Mas o respeito escrupuloso aos ritos e o comportamento recatado não conseguirão esconder do planeta o profundo desrespeito à Constituição e à democracia, bem como o golpe desavergonhado. A obediência à forma não será capaz de ocultar a ausência de mérito da peça acusatória. O pálido verniz jurídico não conseguirá disfarçar as cores berrantes do linchamento político.

Nada conseguirá ocultar do mundo de que o golpe é uma grande pedalada contra a democracia e o povo brasileiro.

Mas não é a única. Há outras.

Na realidade, há muitas outras. Com efeito, o que não falta no Brasil são pedaladas de toda ordem, principalmente nos Estados governados pelos acusadores de Dilma.

Por exemplo, em 2014 a Controladoria Geral do Estado de Minas Gerais e o TCE-MG encontraram irregularidades orçamentárias naquele Estado, então governado por Antonio Anastasia.

Segundo esses órgãos de controle, teria sido descumprido o artigo 42 da Lei de Responsabilidade Fiscal, que diz que “é vedado ao titular de Poder ou órgão referido no art. 20, nos últimos dois quadrimestres do seu mandato, contrair obrigação de despesa que não possa ser cumprida integralmente dentro dele, ou que tenha parcelas a serem pagas no exercício seguinte sem que haja suficiente disponibilidade de caixa para este efeito”.

Acontece que, nos dois últimos quadrimestres de seu mandato, o governador Anastasia cancelou cerca de R$ 901 milhões de empenhos junto a fornecedores, sem a comprovação da extinção da dívida. Assim, tal quantia teria entrado como restos a pagar (dívida) para o governo seguinte, contrariando o artigo 42 da Lei de Responsabilidade Fiscal.

Saliente-se que, no mesmo ano (2014), o governo de Minas Gerais também teria desrespeitado a Lei de Responsabilidade Fiscal, ao ultrapassar os limites com gastos com pessoal.

Não teria ficado só nisso. Teria ocorrido outro descumprimento, em relação à proibição de inscrever na lei orçamentária “crédito que tenha finalidade imprecisa ou dotação ilimitada”. Em 2014, as suplementações de crédito alcançaram 20,67% do crédito inicial fixado na Lei Orçamentária de 2014?, sendo que ?o limite fixado era de 10%.

Mesmo assim, as contas do governo foram aprovadas, com a ressalva, porém, de que essas irregularidades fossem sanadas.

Há também a ação do Ministério Público Federal contra os governos de Aécio Neves e Antonio Anastasia por descumprimento dos preceitos da Emenda Constitucional nº 29/2000, a qual determina que os Estados têm de investir no mínimo 12% sobre os impostos estaduais transferências constitucionais em saúde. Ação ajuizada em junho de 2015.

Diga-se de passagem, não foi a primeira ação nesse sentido contra os governos de Minas Gerais. Houve, em 2010, ação semelhante do Ministério Público Estadual, a qual foi “surpreendentemente” arquivada pelo procurador-geral da Justiça daquele Estado.

Segundo essa ação recente do Ministério Público Federal, os preceitos da EC nº 29/2000 não foram observados pelo Estado de Minas Gerais até o ano de 2013. Em verdade, dizem os procuradores, “trata-se de uma total e absurda indiferença ao Estado de Direito, como se ao governante fosse possível administrar sem a devida observância dos preceitos constitucionais e legais”. Com todas as “manobras empreendidas pelo Governo do Estado de inclusão de despesas alheias à saúde, R$14.226.267.397,38 (quatorze bilhões, duzentos e vinte e seis milhões, trezentos e noventa e sete mil reais e trinta e oito centavos) deixaram de ser investidos no Sistema Único de Saúde – SUS, o que equivale a aproximadamente 3 anos e 4 meses de aplicações de recursos estaduais neste sistema, abrangidas, inclusive, as despesas com pessoal”. 

Tal desvio do dinheiro destinado à saúde foi feito com manobras contábeis extremamente criativas, segundo os procuradores. Além de contabilizar como investimentos em saúde gastos com previdência, saneamento básico e proteção ao meio ambiente, vegetais e animais, o Governo de Minas Gerais, dizem os procuradores, “chegou ao absurdo de incluir como se fossem aplicações em saúde serviços veterinários prestados ao canil da 2ª CIA da Polícia Militar, reforma da maternidade da 4ª CIA Canil do BPE, serviços de atendimento veterinário para cães e semoventes, aquisição de medicamentos para uso veterinário, e aquisição de vacinas para o plantel de semoventes”.

Resulta difícil entender a lógica dessa manobra contábil, talvez motivada por uma desconhecida forma de humanismo quadrúpede ou por zoolatria orçamentária.

Obviamente, esse desvio do equivalente a mais de 3 anos de gastos totais de saúde do Estado de Minas Gerais deve ter ocasionado graves prejuízos à população daquele Estado, embora possa ter contribuído para o bem-estar de cães, cavalos e outros simpáticos semoventes. Segundo os procuradores, o dano foi sensível.

Em decisão de primeira instância, o juiz Marco Antônio Barros Guimarães, da 15ª Vara Federal negou o pedido liminar (urgente) da ação. A ação, contudo, continua e não há, ainda, decisão definitiva sobre seu mérito.

Mas Minas não é único Estado que pedala. Segundo estudo do economista do Senado, Pedro Jucá Maciel, cujas conclusões foram publicadas pelo Valor Econômico, muitos Estados estão fazendo superávit primário à custa de uma manobra contábil maliciosa.

O Estado atrasa pagamentos a fornecedores, inclusive àqueles que já realizaram os serviços, incluindo os débitos nos “restos a pagar” a serem liquidados no ano seguinte. Ou ainda atrasam propositalmente pagamentos a funcionários. Segundo o economista, em 2015 “os Estados conseguiram se financiar com fornecedores e folha de salários”, maquiando suas contas, não com cortes de despesas. Aplicando a mesma lógica que aplicam a Dilma Rousseff, caberia perguntar se os governadores desses Estados não estariam, com esses atrasos propositais de pagamentos, contraindo empréstimos ilegais junto a fornecedores e aos seus próprios funcionários.

Segundo Francisco de Queiroz Bezerra Cavalcanti, professor titular de Direito na UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), ao menos 16 estados apresentam irregularidades fiscais. Conforme sua avaliação, os entes federados ou atrasam a folha de pagamento de servidores ou o pagamento de fornecedores, ou têm gastos elevados com pessoal, entre outras irregularidades quanto à lei orçamentária. Para ele, são condições mais gravosas que a da União, pois “uma coisa é você contrair novas dívidas sem ter recursos; outra é, em função de queda de arrecadação, atrasar um repasse”.

Entretanto, essas pedaladas envolvendo atraso de pagamentos a fornecedores e servidores, ou coisas piores, como desvios de aplicações constitucionais em saúde e educação, não causam surpresa ou suscitam condenação na mídia plutocrática ou na oposição golpista.

Dilma está sendo processada pela “assembleia geral de bandidos” porque teria atrasado alguns pagamentos a bancos públicos. No caso específico da peça que está no Senado, a acusação tange a supostos atrasos, ocorridos em 2015, de pagamentos a bancos que financiam o Plano Safra.

Além de inepta, pois não há ato da presidenta na administração de tal plano, essa acusação revela uma diferença crucial entre o governo federal e alguns governos estaduais.  O governo federal teria atrasado pagamentos a bancos públicos para não prejudicar os agricultores e não deixar faltar comida na mesa dos brasileiros. Da mesma forma, as pedaladas de 2014, que não constam da peça de acusação, pois não se referem ao presente mandato da presidenta, teriam sido feitas para não comprometer programas sociais essenciais aos mais pobres. Já alguns governos estaduais teriam desviado dinheiro da saúde, contrariando norma constitucional, e atrasado pagamentos até mesmo aos seus próprios funcionários para fazer superávit.

Ou seja, o governo Dilma teria “pedalado” a favor do povo. Já esses governos estaduais teriam “pedalado” contra o povo.

O hoje senador Antonio Anastasia argumenta que suas pedaladas não têm relação com o que fez Dilma, uma vez que Minas Gerais não têm banco público, em relação ao qual atrasar repasses. Mas não seriam as pedaladas de Minas e outros Estados piores que as da União, já que causam prejuízo sensível à população? Por que a suposta pedalada que visa proteger os mais pobres é criminalizada e outras destinadas meramente a fazer superávit não?

Talvez seja essa a diferença fundamental. Tenta-se criminalizar a contabilidade que beneficia a população e se absolve a contabilidade que prejudica o povo.

Assim, atrasar pagamento a banco para não prejudicar os mais pobres é crime. Agora, desviar dinheiro da saúde pública e atrasar pagamentos a funcionários ou fornecedores para fazer superávit e pagar bancos não é. Aliás, talvez seja por isso que o programa do golpe, a Pinguela Para o Passado, preveja a redução dos gastos constitucionais em saúde e educação para fazer os superávits que pagarão os bancos. O golpe pretende tornar legal a ilegalidade que teria sido cometida pelos governos de Minas.

Pedalar contra o povo pode. Contra ele, pode até se cometer a infame pedalada do golpe.

Marcelo Zero

É sociólogo, especialista em Relações Internacionais e membro do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GR-RI)

Publicado no Brasil247