Analisar as causas do golpe atual exige argúcia, considerações sobre múltiplos aspectos, métodos e estrita atenção aos fatos. O principal deles já pode ser apontado, mesmo sem a necessária distância que só o tempo pode proporcionar para uma ampla visão do cenário golpista que se formou lentamente, aos trancos e barrancos, até chegar aos mais abjetos procedimentos da direita brasileira, tão bem conhecidos por quem olha a história com certa atenção: são as mudanças de paradigmas estabelecidas de 2003 para cá.

Desde que Luiz Inácio Lula da Silva tomou posse na Presidência da República, há uma tensão magnetizando o país. As decisões do governo sempre tiveram boa audiência e produziram ótimas polêmicas. Suas posições políticas foram francas e geraram engajamento e paixões aos serem transmitidas de forma clara, sem clipes edulcorados e sem ambiguidades. Nesse ambiente democrático, é natural a existência de várias versões para os fatos e cada um conta a sua, de acordo com suas conveniências.

Tradição autoritária

Foi assim que surgiram os manifestos oposicionistas que seriam histriônicos como ficção, mas que se tornaram patéticos como análises da realidade. Ou seja: Quanto mais as coisas mudam, mais a direita continua a mesma. Essa tradição autoritária sempre caminhou com o conluio entre o Estado e o poder econômico e com a negociata política típica da oligarquia brasileira, herança da nossa história marcada por um profundo abismo social e político entre ricos e pobres. Para essa ideia, trabalhadores e patrões, povo e elite, devem permanecer divididos em dois mundos político e econômico que mal se falam.

Um governo que enxerga largo e pensa grande, que estimula o país a trabalhar duro para forjar um projeto de nação, bate de frente com essa concepção. Aliás, essa diferença ficou claramente demonstrada nos debates das campanhas eleitorais de 2002, 2006, 2010 e 2014. Lula e Dilma defenderam a criação de empregos e renda, estímulos ao mercado interno, soberania nacional e ampliação da democracia, enquanto os direitistas José Serra, Geraldo Alckmin e Aécio Neves se limitaram a inventar dificuldades para vender falsas facilidades. Talvez tenha faltado a Dilma aquela sagacidade de Lula para mediar suas opiniões e intuições com o ponto de vista de outras pessoas.

Além de ouvir, o líder precisa dominar a arte de dizer as coisas certas na hora certa. Precisa ter a capacidade de convencer, de gerar consenso. Essa qualidade de Lula — que faltou a Dilma — foi importante para ele capitanear um movimento sócio-econômico de cores progressistas, baseado na democracia. Mas o motivo principal para que ela se tornasse alvo da sordidez golpista foi a atitude, como a de seu antecessor, de não se dirigir aos grandes daqui e de fora com voz súplice, como era comum no reinando de Fernando Henrique Cardoso (FHC). Um governo que não falava fino com Washington e grosso com a Bolívia e o Paraguai, como disse certa vez Chico Buarque Holanda.

Enredo da ópera

Também como Lula, Dilma soube compreender que, do ponto de vista progressista, a ideia-chave de um governo popular deve ser o crescimento econômico, a melhoria da renda dos trabalhadores e a redução da vulnerabilidade externa. A infeliz ideia do “ajuste fiscal” com Joaquim Lavy à frente do Ministério da Fazenda no início do seu segundo mandato não anula seus méritos; ao tomar medidas para enfrentar os efeitos da crise mundial ela evitou que a economia brasileira se embrenhasse em um mato do qual seria difícil sair. Quem disser que conseguia enxergar melhor saída para o país sem essas medidas está mentindo.

Todas essas coisas compõem o enredo da ópera, mas o elemento definidor da crise foi a entrada da mídia de forma desleal na campanha de Aécio Neves para presidente da República em 2014. A sujeira golpista que ela vinha acumulando desde que Lula assumiu o governo em 2003 foi despejada sobre a candidatura à reeleição de Dilma Rousseff, se aproveitando da manipulação exitosa das manifestações de 2013, detonadas com a insatisfação popular com a elevação das tarifas dos transportes públicos.

Desde então, o que se viu foi a generalização do ódio, da infâmia e dos golpes baixos. O país subiu mais alguns degraus na escada da intolerância social e do banditismo político, com rajadas de torpezas no lugar do que deveria ser apenas debate de ideias, e passou a ser regido pela lógica incivilizada do faroeste, do dolo golpista. E formou-se um campo governado pelos métodos da direita, baseados na mentira, na calúnia, na falsificação dos fatos, tendo como vértice a degenerada “Operação Lava Jato”, comandada pelo juiz Sérgio Moro.

Ética e legalidade

Uma grande parte dos votos a favor do golpe no Congresso Nacional veio dessa espécie de governo paralelo, fora da lei, que condicionou as realidades paroquiais às opções de deputados e senadores na hora do voto pela admissibilidade do impeachment. Diante da fúria da turba imbecilizada pela campanha golpista intensiva e extensiva da mídia, muitos parlamentares optaram por não arriscar suas carreiras no curto prazo mesmo sabendo que tomariam uma decisão injusta. São decisões compreensíveis se levarmos em conta o estágio da construção democrática brasileira.

Evidentemente, num país como o Brasil é difícil evoluir rapidamente para uma democracia que corresponda a acepção essencial do termo. Não é fácil construir avanços sociais numa economia historicamente dividida em feudos, que se traduz num sistema rapinesco no qual poucas leis fazem tanto sentido quanto a lei do mais forte. A exemplo das históricas grandes propriedades rurais, boa parte da economia brasileira foi entregue, ao longo do tempo — com mais intensidade na ditadura militar e na “era FHC” —, a grupos privados como lotes cercados de arame.

O Estado sempre decidiu quanto daquele lote ficaria nas mãos de um ou outro e o tamanho do lucro que ele teria. O restante da sociedade não tinha alternativa senão pagar o que lhe era exigido e resignar-se com o que recebia. Eventuais rebeldias contra essa ordem infame eram tratadas como caso de polícia e, não raro, com torturas e mortes. O mundo dos negócios brasileiro está repleto de amigos e filhos dos históricos donos do poder ocupando funções que em muitos casos são desempenhadas à margem da ética e da legalidade.

Mar de Lama

Seria ilusão achar que esses setores conservadores não teriam poder de arregimentação política para perpetrar mais um golpe de Estado. O enfrentamento com essas forças exigia um esforço amplo de todos os setores interessados em isolar e derrotar as vias do autoritarismo e do golpismo. Afora os aventureiros e inconsequentes, somente às forças direitistas, retrógradas, interessava numa deterioração do quadro político — que serviria de caldo de cultura para projetos obscurantistas e reacionários. Pode-se apontar mil motivos para o revés dessa premissa, mas o fato é que ela foi o determinante para o golpe.

A esta altura do campeonato, ninguém precisa de mais esclarecimentos sobre a conduta dos golpistas, sua capacidade de degenerar o próprio governo que tomaram à mão grande e a irresponsabilidade soberana com que vão tomar suas decisões. Em todo caso, é sempre útil manter em mente o potencial destrutivo que conservarão enquanto estiverem à frente da República. Não é pouca coisa.

O usurpador-mor, o vice-presidente Michel Temer, continuará se empenhando abertamente em transformar o serviço público num mercado indecente. Não é mais o que se poderia chamar de negociação política — virou tráfico, puro e simples. Em torno dessa delinquência generalizada, o fato mais relevante é a postura altiva e firme da presidenta Dilma, enfrentando e denunciando esse verdadeiro mar de lama que agora adentra o Palácio do Planalto.