O Mischief Reef pode fazer as vezes de termômetro da situação no Mar da China Meridional: uma estrutura emersa1 que, nas fotografias obtidas por satélite há alguns anos, se parecia com um recife em forma de ferradura e foi descoberta em 1791 pelo capitão Henry Spratly. Em inglês, Mischief evoca uma ideia de enganos e perdas. Isso faz supor que ela foi assim nomeada em razão do perigo que representava para os barcos. De resto, algumas estruturas desse mar levam o nome dos navios que ali afundaram.

Por muito tempo, as ilhas, rochedos, recifes ou grandes profundezas do Mar da China Meridional foram considerados armadilhas para a navegação; só uns poucos navios de pesca se aventuravam nessas águas. Nenhum estabelecimento humano foi ali instalado, em virtude de sua frágil superfície: a maior das ilhas Paracel, a Ilha Woody, mede cerca de 2 quilômetros quadrados; e Itu Aba, nas Spratly, só alcança 45 hectares.

O Mischief Reef destacou-se a partir de 1995 quando a China resolveu construir ali infraestruturas sobre pilotis a 100 milhas náuticas (185 quilômetros) do litoral das Filipinas, que protestaram. No fim de 2014, ela introduziu importantes infraestruturas portuárias e aeroportuárias após realizar uma drenagem em larga escala por meio da construção de diques.

O litígio comporta dois aspectos bem distintos: o conflito territorial nas estruturas emersas; e o das águas, colocando em jogo o respeito ao direito internacional e sobretudo a liberdade de navegação num espaço altamente estratégico.

O conflito sobre as terras surgiu de forma bastante clássica, ainda que muito confusa. A China afirma ter descoberto essas estruturas marítimas há mais de 2 mil anos e cita uma abundante literatura que busca demonstrar que elas eram frequentadas por pescadores chineses originários da Ilha de Hainan. No entanto, ela não exercia controle efetivo sobre as Paracel e as Spratly, que, aliás, só tardiamente despertaram o interesse das potências coloniais. As ilhas Spratly e Amboyna Cay foram assim oficialmente ligadas à coroa britânica em 1877; e a França tomou posse das Paracel e depois de algumas ilhas das Spratly nos anos 19302 em razão da inquietude que suscitavam as atividades de Tóquio com as empresas explorando o guano. O Exército Imperial japonês ocupou todas as ilhas a partir de 1939.

Disputa entre a China e o Vietnã

A Segunda Guerra Mundial alterou a ordem das coisas, mas nem por isso a situação ficou mais clara. O Exército da República da China3 expulsou os japoneses e se instalou na Ilha Woody (Paracel) e em Itu Aba (Spratly). Pouco depois (1947), o governo do Kuomintang (que se tornaria o de Taiwan) publicou um mapa separando os arquipélagos do Mar da China Meridional por uma linha descontínua composta de onze traços envolvendo a maior parte desse mar. Suas tropas deixaram essas ilhas em 1950, depois da ocupação de Hainan pelas forças comunistas, mas voltaram rapidamente para Itu Aba. A República Popular da China só se manifestou nas Paracel a partir de 1956, ocupando a Ilha Woody, enquanto um destacamento militar sul-vietnamita sucedeu à guarnição francesa presente em outra parte das Paracel, a Ilha Pattle. O Tratado de San Francisco, que pôs fim à guerra entre o Japão e os Aliados,4 em 1951, não definiu exatamente qual país exercia ali sua soberania.5 Mas os governos de Pequim e Taipei, que não participaram da conferência, renovaram suas reivindicações.

A questão da soberania parecia então bastante insolúvel e sobretudo relativamente secundária; as ilhas, em sua maior parte não ocupadas, não representavam de fato um problema. O fenômeno de apropriação ou de ocupação se deu, em geral de maneira pacífica, a partir dos anos 1970. As ilhas e os recifes são hoje totalmente ocupados pelo Vietnã, pelas Filipinas, pela Malásia, pela China e por Taiwan, que permanece em Itu Aba. Brunei não ocupa nenhuma estrutura emersa, e a Indonésia só reivindica uma zona econômica exclusiva (ZEE) no sul desse espaço marítimo.

Enfrentamentos sangrentos opuseram, no entanto, a China ao Vietnã do Sul durante a conquista por Pequim da Ilha Woody, em 1974, e depois à República Socialista do Vietnã na proximidade do recife Johnson nas Spratly, em 1988. O litígio entre os dois países é de longe o mais sério: só eles reivindicam as Paracel, e ambos se enfrentam nas Spratly, que reclamam integralmente, ao contrário das Filipinas, da Malásia e de Brunei, que só querem uma parte delas.

Uma solução seria submeter a questão da soberania a uma arbitragem. A Corte Internacional de Justiça (CIJ) já teve de se pronunciar sobre casos semelhantes de ilhas ou de recifes de pequeno porte; ela o fez notadamente no caso que opunha a Malásia a Cingapura pela Ilha de Pedra Branca. Tendo constatado a inexistência de títulos de soberania, ela teve de examinar as “efetividades”, ou seja, verificar qual país exercia ali na prática uma forma de jurisdição. Essa solução seria viável, mas o governo chinês recusa toda forma de internacionalização do conflito, aí incluída a arbitragem. As Filipinas, no entanto, chegaram a obter a constituição de um tribunal de arbitragem, que se pronunciou essencialmente sobre os direitos marítimos gerados por certas estruturas emersas sem abordar a questão da soberania.

A adoção da convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM), de 1982, que permite aos Estados explorar seus espaços marítimos até o limite de 200 milhas náuticas (370,40 quilômetros) no quadro de uma ZEE, assim como a evolução das técnicas de perfuração no mar em zonas cada vez mais profundas explicam o interesse recente dos países banhados pelo Mar da China Meridional. Seus recursos de pesca representariam 10% das capturas mundiais, podendo contribuir para a alimentação de centenas de milhões de pessoas. Se por um lado as reservas de hidrocarbonetos não são desprezíveis, por outro elas constituem objeto de avaliações divergentes, e as que são exploradas ou identificadas se encontram geralmente ao longo do litoral, em zonas não contestadas. Já o transporte marítimo é uma questão de maior porte: trata-se da principal via mundial para os porta-contêineres, para o petróleo (depois de Ormuz) – de que depende a China, mas sobretudo o Japão e a Coreia do Sul –, assim como para o ferro e o carvão, maciçamente importados pela China.

A reivindicação chinesa sobre essas águas parece colocar novamente em discussão o direito internacional. Conhecida de longa data, ela foi formalizada por uma nota verbal endereçada às Nações Unidas em 2009 e acompanhada de uma carta que explicava a extensão dessa reivindicação. Trata-se daquela linha estabelecida pelo Kuomintang em 1947, mas que comporta apenas nove traços, em vez de onze, porque a China e o Vietnã delimitaram depois suas águas no Golfo de Tonkin. Segundo esse documento, o “Mapa dos nove traços”, Pequim “exerce uma incontestável soberania sobre as ilhas do Mar da China Meridional e as águas adjacentes, e desfruta direitos soberanos e uma jurisdição sobre as águas que abrange também o solo e o subsolo marinhos”.

Essa reivindicação sobre uma parte das águas do Mar da China Meridional só poderia ser aceitável se a soberania fosse reconhecida sobre todas as estruturas emersas desse espaço marítimo, o que não é o caso. Em outras declarações, Pequim afirma com mais ambiguidade exercer uma “soberania e uma jurisdição no Mar da China Meridional”,6 ou mais vagamente “direitos históricos”. Existe no direito internacional uma distinção fundamental entre a “soberania” de um Estado sobre seu mar territorial, no limite máximo de 12 milhas náuticas (22,22 quilômetros), e a “jurisdição” que ele exerce sobre as águas de sua ZEE, até 200 milhas de suas costas, se nenhum Estado lhe faz face a menos de 400 milhas marinhas. Quando o espaço que separa os dois Estados é inferior, estes devem proceder a uma delimitação. Ora, a linha de nove traços chinesa excede em todos os lugares as 200 milhas marinhas medidas desde as ilhas e parece negar o direito dos outros Estados a uma ZEE.

A principal diferença entre esses dois status tem a ver com o regime da navegação, que é livre na ZEE, mas é condicionado no mar territorial. Neste, os navios de guerra são submetidos ao regime chamado “passagem inofensiva”, que deve ser contínuo e rápido. Ao afirmar exercer uma soberania nas águas compreendidas na linha de nove traços, a China pretende aplicar sobre uma extensão de cerca de 2 mil quilômetros um regime que o direito internacional só prevê para uma faixa litorânea de pouco mais de 22 quilômetros.

Além disso, na ratificação da convenção das Nações Unidas sobre o direito do mar, a China recusou o direito de passagem inofensiva em seu mar territorial para os navios de guerra, cuja passagem ela quer submeter a uma autorização prévia. É possível então medir o risco que pesa sobre a liberdade de navegação nessa importante artéria marítima. Por enquanto, a China não pensa em controlar os navios mercantes (diferentemente das embarcações de guerra).

Já o conceito de “direitos históricos” não é reconhecido internacionalmente. Encontramos, é claro, uma alusão a “baías históricas” na CNUDM (artigo 10), mas esta não retomou o conceito de águas históricas admitido pelo direito consuetudinário. Este, no entanto, foi utilizado pela Corte Internacional de Justiça em sua decisão sobre o Golfo de Fonseca, em setembro de 1992, cujas águas eram disputadas por três países: Salvador, Honduras e Nicarágua. Trata-se de um espaço bem mais reduzido (3.200 km2); a Corte decidiu que os três países exerceriam conjuntamente seus direitos sobre essas águas históricas.

A única proposta de diálogo que subsiste na região é aquela que existe desde 1997 entre os países da Associação de Nações do Sudeste Asiático (Ansea; em inglês, Asean) e a China. Os dez membros da Ansea,7 que além de tudo estão divididos em relação à questão, pressionam Pequim a negociar um código de conduta. Até o momento, os protagonistas não passaram da assinatura de uma “declaração de código de conduta” que os convida à contenção (sobretudo a não povoar as estruturas marítimas contestadas), determina o quadro de um hipotético regulamento (respeito ao direito internacional, sobretudo da CNUDM) e os encoraja a cooperar em favor da proteção do ambiente marinho. Contudo, desde a assinatura dessa declaração, em novembro de 2002, a China multiplicou os fatos consumados. É verdade que ela aceitou, em 2013, retomar as negociações para a conclusão desse famoso código de conduta, mas os países da região duvidam de sua determinação de levá-lo adiante.

Espaços comuns de desenvolvimento

Pequim se diz favorável à criação de zonas comuns de desenvolvimento que permitam a exploração conjunta do solo e do subsolo marinhos. Algumas já existem, por exemplo, no Golfo da Tailândia.8 O Vietnã e a China, por sua vez, fecharam em 2011 um acordo que define as condições de uma regulamentação de suas disputas marítimas que preconizavam um recurso a essa fórmula e o respeito ao direito internacional, notadamente da CNUDM. Ele permanece como letra morta. Certos países banhados pelo Mar da China Meridional continuam circunspectos; é verdade que o caráter equitativo desse tipo de zona depende da partilha de recursos-chave, mas também de sua localização em relação ao litoral. A China, o Vietnã e as Filipinas tinham entrado em acordo em 2005 para realizar pesquisas sísmicas em um espaço englobando o Banco Reed, que abriga uma jazida de gás. Esse acordo, rejeitado pela opinião pública filipina uma vez que a região situa-se perto do litoral do arquipélago, foi declarado inconstitucional pela Suprema Corte de Manila.

Essa forma poderia ser aplicada aos recursos do subsolo e também às águas sobrejacentes;9 a pressão sobre os recursos pesqueiros exige de fato uma reação comum urgente. Mas, por enquanto, os dirigentes chineses editam medidas unilaterais sobre a quase totalidade do espaço em questão, em detrimento dos pescadores dos outros países.

O direito internacional e a prática dos Estados oferecem numerosos exemplos para a exploração e a proteção comum dos espaços marítimos, como as zonas marítimas particularmente vulneráveis (ZMPV). Ele permite igualmente a todos os Estados, aí incluída uma potência emergente como a China, proteger seus suprimentos assegurando a liberdade de navegação em alto-mar. É fundamental que o Mar da China Meridional permaneça nesse quadro.

 

Didier Cormorand é especialista em delimitações marítimas.

Ilustração: Reuters/Nyguen Huy 

1    Fala-se aqui de “estruturas emersas” porque juridicamente não se sabe se se trata de ilhas, recifes ou rochedos. Os direitos mudam segundo a denominação.
2    Cf. Diário Oficial de 26 de julho de 1933.
3    Nome da China até 1949, depois o de Taiwan atual.
4    O tratado de paz foi assinado, no fim da Segunda Guerra Mundial, pelo Japão e pelos Aliados, com exceção da Rússia e da China.
5    Ler Thai Quang Trung, “Jeux d’influence à Yalta” [Jogos de influência em Yalta], Manière de Voir, n.139, “Poudrières asiatiques”, fev.-mar. 2015.
6    Nota verbal endereçada às Nações Unidas em 14 de abril de 2011.
7    Ela agrupa Brunei, Camboja, Cingapura, Filipinas, Indonésia, Laos, Malásia, Myanmar, Tailândia e Vietnã.
8    Entre a Tailândia e a Malásia, entre o Vietnã e a Malásia.
9     As águas sobrejacentes recobrem o solo ou o subsolo marinhos.?

 

06 de Junho de 2016

Palavras chave: China, Filipinas, Brunei, Mar, Pacífico, Vietnã, Tailândia, Myanmar, Taiwan

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