PCdoB na vanguarda da luta contra o atual golpe no Brasil

Primeiro, gostaria de reforçar a importância de um tema como esse: os golpes no Brasil. Na mesa de ontem alguém lembrou um fato importante para a história recente do PCdoB. Em geral, falamos das contribuições dos comunistas no passado e nos esquecemos das contribuições no presente. Se não estou enganado, o PCdoB foi a primeira força política a denunciar que se tramava um golpe de Estado no Brasil. A primeira vez que ouvi de maneira mais incisiva a palavra de ordem “Não vai ter golpe!” foi num ato ocorrido no estado do Maranhão, com a presença do governador Flávio Dino.

Até aquele momento, grande parte da esquerda brasileira dizia que isso era bobagem, pois não existia nenhum golpe em curso. O discurso da ameaça golpista não passava de uma manobra política da “esquerda governista”, visando a conseguir apoio para o governo Dilma que se encontrava muito desgastado. O PSOL [Partido Socialismo e Liberdade], o PCB [Partido Comunista Brasileiro] e o PSTU [Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado] – mais fortemente os dois últimos – diziam que não existia nenhum golpe em curso. A burguesia e o imperialismo não teriam razão para querer derrubar um governo que, segundo eles, aplicava docilmente uma política neoliberal ou social-liberal.

Como resultado dessa completa incompreensão do momento político dramático que estamos vivendo – que levou ao seu isolamento dos movimentos sociais –, o PSTU acaba de perder cerca de 700 militantes que caminham para construir uma nova organização. Portanto, a questão do golpe ou não golpe gerou um acalorado debate no seio da esquerda brasileira.

Devemos valorizar a posição pioneira e firme do partido na denúncia do golpe desde o momento em que ele começou a se delinear. E também a sua participação decisiva na construção de uma Frente política e social para combatê-lo, como a Frente Brasil Popular e a Frente Povo sem Medo. A atuação ampla e combativa dos comunistas na Câmara e no Senado chamou a atenção de todas as forças democráticas antigolpistas.   

Entremos então no tema desta mesa. Em parte tratei dele no artigo que saiu na última revista Princípios (…) O texto começa com uma citação da presidenta Dilma, na qual – logo após a aprovação do início do processo de impeachment na Câmara – afirmou que o Brasil tem “um veio golpista adormecido”. Para comprovar isso a professora Marly Vianna levantou aqui, antes de mim, uma lista dos golpes que ocorreram no Brasil desde a Proclamação da República – e, por sinal, também esta foi um golpe de Estado de caráter militar.

Entre nós ocorreram golpes – vitoriosos e derrotados – em 1930 (Revolução de 1930), 1932 (Revolução Constitucionalista), 1935 (Insurreição da ANL [Aliança Nacional Libertadora]), 1937 (decretação do Estado Novo), 1938 (Intentona Integralista), 1945 (derrubada de Getúlio), 1954 (novo golpe contra Getúlio), 1964 (golpe militar contra Jango). Houve também outras tentativas menos importantes. Lembrando que a palavra golpe é muito marcada, tanto que ninguém se diz golpista. O próprio golpe militar de 1964 jamais se chamou assim, procurou se definir como revolução. De 1985 para cá, vivemos um período de relativa estabilidade democrática, o mais longo de nossa história republicana. E eis que em 2016 o fantasma do golpe de Estado reaparece no horizonte brasileiro, ameaçando a nossa democracia.

O que é um golpe de Estado? 

Mas, afinal, o que é um golpe de Estado? Um dos primeiros pensadores a tentar defini-lo foi o francês Gabriel Naudé no seu estudo clássico Considerações políticas sobre o golpe de Estado (1639). Nele, em geral, golpe de Estado se caracteriza como uma ação discricionária de um soberano visando a reforçar o seu próprio poder, que se confundia com o poder ou a “razão de Estado”. Assim, não havia nenhum juízo de valor negativo, muito pelo contrário. Podemos dizer que essa definição de Naudé estava dentro do espírito da época marcado pelo pensamento de Maquiavel e pela necessidade de criação e fortalecimento dos Estados Nacionais na Europa.

Com o passar do tempo, especialmente depois das revoluções burguesas na Inglaterra e França e da consolidação do constitucionalismo liberal, o conceito foi se ampliando e se enriquecendo com novas determinações. Num verbete do Dicionário Larousse, tributário dessa tradição, pode-se ler: “Golpe de Estado é a violação deliberada de formas constitucionais por um governo, uma assembleia ou um grupo de pessoas que detém autoridade política”. Aqui o termo se amplia e adquire conotação negativa.

Este, por exemplo, foi o caso dos golpes dados pelos dois Bonaparte: Napoleão (derrubada do Diretório e a instauração do Consulado) e seu sobrinho Luís (o golpe que lhe garantiu o título de imperador). Este segundo foi brilhantemente analisado por Marx no seu 18 de Brumário de Luís Bonaparte.  

Notemos que ainda aqui os golpes foram dados por pessoas que já detinham o poder e queriam perpetuá-lo e fortalecê-lo. Então, não ocorrem apenas para a retirada violenta de um governante, mas sim, em grande parte das vezes, para a manutenção e o fortalecimento dos próprios governantes. Assim foram os golpes de Estado dos dois Bonaparte e o de Getúlio Vargas em 1937 que instituiu o Estado Novo.

Os golpes de Estado, ao contrário do que comumente se pensa, podem ter conteúdos muito diferentes e isto está ligado às forças sociais que os dirigem, que representam ou lhes servem de base social de apoio. Alguns deles visam a preservar os interesses das classes dominantes que estariam sendo ameaçados pela permanência ou pela eminente substituição legal de determinado governo que lhes favorece. Isso foi o que aconteceu no Brasil em 1954 e 1964. Nestes casos, são golpes conservadores.

Contudo, existem aqueles dados por forças políticas progressistas. Lembramos, por exemplo, o golpe militar vitorioso de Juan Velasco Alvarado, no Peru em 1968. Ou a tentativa feita pelo coronel Chávez na Venezuela em 1992. Também podemos citar vários casos brasileiros: o da Proclamação da República em 1889 e o golpe de mão dado pelo marechal Lott em 1955, que garantiu a posse de JK [Juscelino Kubitschek]. Os dois vitoriosos. Derrotados foram os levantes tenentistas (1922-1924) e o levante da ANL (1935), que tinham um conteúdo bastante avançado. 

O conceito de Golpe de Estado se diferencia do de revolução. Este último foi reservado para os movimentos de maior amplitude social, radicalidade programática e que alteram substancialmente as classes sociais no poder. O sujeito das revoluções são as massas populares. A revolução se dá na sua maior parte fora e contra o Estado existente. Ao contrário, nos golpes de Estado o sujeito é sempre um setor da burocracia estatal (civil ou militar) e no limite o parlamento – que podem ter ou não apoio popular. Mesmo quando progressistas, os golpes são sempre menos radicais e abrangentes que as revoluções.

Nem sempre existe uma muralha da China entre Golpe de Estado e Revolução. O primeiro pode, em alguns casos, levar à segunda. Um exemplo típico desse processo foi a Revolução dos Cravos em Portugal. Ela começou como uma típica quartelada dirigida pela baixa e média oficialidade, mas sua ação fez transbordar a represa. Tanto os golpes quanto as eleições democráticas podem criar as condições para o desenvolvimento de uma verdadeira revolução popular. Na segunda metade do século XX predominaram amplamente os golpes militares. Isso fez com que golpe de Estado e golpe militar fossem, na prática, quase sinônimos.

Vejam o que diz Carlos Barbé no verbete Golpe de Estado do Dicionário de Política, organizado por Norberto Bobbio: “Na maioria dos casos, quem toma o poder político através de golpes de Estado são os titulares de um dos setores-chave da burocracia estatal: chefes militares. O golpe militar ou pronunciamento, segundo palavra cunhada pela tradição espanhola, tornou-se, assim, a forma mais frequente do Golpe de Estado (…). Na grande maioria dos casos, o Golpe de Estado Moderno consiste em apoderar-se, por parte de um grupo de militares ou das forças armadas em seu conjunto, dos órgãos e das atribuições do poder político, mediante uma ação repentina, que tenha certa margem de surpresa e reduza, de maneira geral, a violência intrínseca do ato com o mínimo emprego possível de violência física”.

Contudo, uma definição restrita de golpe de Estado – entendido apenas como os dados pelos aparatos de repressão – não nos permitiria entender os que foram promovidos por grupos no interior dos poderes Legislativo e Judiciário, como os ocorridos recentemente em Honduras, que derrubou o presidente Manuel Zelaya (2009); no Paraguai, que destituiu Fernando Lugo (2012); e no Brasil atual.

Golpe é uma ação rápida, mais ou menos violenta, visando à manutenção ou à conquista do poder político por um grupo de homens ligados a alguns dos aparelhos do próprio Estado: os poderes Executivo, Legislativo ou Judiciário. Em todos os casos ele representa a quebra da legalidade (institucionalidade) até então imperante.

Portanto, por um lado, pode haver um golpe parlamentar, no qual esse aparelho do Estado (Legislativo) aprova medidas que rompem com a legalidade jurídica e levam à manutenção ou à substituição extemporânea do governo. Por outro, seria teórica e formalmente impossível um golpe de Estado civil ou midiático, a não ser como figura de linguagem. O próprio conceito de golpe civil-militar é impreciso, pois civis são todos aqueles que não são militares, ou seja, a quase totalidade da sociedade. Um golpe de Estado dado pelo conjunto dos civis é uma impossibilidade.

Como já dissemos, um golpe de Estado pode se servir de diversos aparelhos estatais, como o Exército, o Judiciário e o Parlamento. Mas geralmente nos referimos àquele que teve o papel determinante ou fundamental. Em 1964 ocorreu um golpe militar, apesar do apoio da maioria do Congresso e do poder Judiciário.

Os Golpes de Estado sempre refletem interesses de classes e frações de classes, pois os aparelhos estatais não são formas sem conteúdo – mesmo levando em conta que a burocracia pode em alguns momentos adquirir relativa autonomia. Uma burocracia relativamente autônoma não está despregada das classes sociais (dominantes) e dos seus interesses.

Alguns sítios relacionam golpes de Estado como contraposição à democracia. Afirmam que há golpe de Estado “quando um governo estabelecido por meios democráticos e constitucionais é derrubado de maneira ilegal”. Isso foi o que aconteceu em 1954, em 1964. Contudo, lembramos que muitas ditaduras foram derrubadas por golpes de Estado que estabeleceram a democracia, e alguns deles apenas substituíram o ditador de plantão.

As semelhanças entre 1954 e 1964

Na segunda parte desta exposição farei uma breve comparação entre os golpes de 1954 e de 1964. A descrição da crise política que levou àqueles dois golpes eu fiz no artigo do qual vocês têm uma cópia. (…) Tratarei apenas resumidamente das semelhanças e diferenças entre os dois golpes – somente marginalmente conecto com o atual golpe em curso no país, pois este será tratado em outras mesas do seminário.

Sem dúvida, há muito mais pontos em comum entre os golpes de 1954 e 1964 do que entre eles e o golpe de hoje. Alguns, inclusive, dizem que o de 1964 foi uma consequência, um complemento, do ocorrido em 1954, já que nesse ano teria havido um golpe incompleto e, em 1964, ele teria se completado.

Quais são as similaridades entre esses golpes?  Em primeiro lugar eles se dão nos marcos do que alguns autores chamam de crise do populismo. Sabemos que a palavra populismo é polissêmica, possui vários significados. O senso comum, fortemente influenciado pela ideologia liberal, tende a encará-lo como sinônimo de demagogia política visando a ganhar o apoio popular. Algo negativo a ser combatido. Sabemos que existiu, nos Estados Unidos, um movimento progressista intitulado populista, ligado aos trabalhadores e pequenos proprietários, que procurou se constituir como alternativa aos partidos Republicano e Democrático. Na Rússia czarista também existiu um movimento democrático-popular pequeno-burguês avançado chamado populista. Então, populismo nomeou várias tendências e vários movimentos políticos, que nem sempre tiveram sentido negativo.

No Brasil, alguns intelectuais preferem usar o termo trabalhismo, com uma carga menos negativa e por ser a forma pela qual os seus agentes se reconheciam. Vargas e Jango se diziam trabalhistas. Mas acho que isso não resolve o problema, porque o termo trabalhismo também é polissêmico e pode nos remeter a certa tradição europeia. Refiro-me aqui ao trabalhismo inglês. Ao contrário do populismo, o trabalhismo (embora reformista) tinha uma origem e base operárias.

O populismo brasileiro – ou o trabalhismo, como queiram – nasceu da crise de hegemonia aberta com a crise e a Revolução de 1930. Nenhuma das frações das classes economicamente dominantes tinha condições de assumir imediatamente as rédeas do Estado. A burocracia do Estado – civil e militar – pôde adquirir uma relativa autonomia e aplicar certas políticas que não eram, necessariamente, idênticas aos interesses da fração que em tese deveriam representar – no caso, a burguesia industrial. A não ser em curtos períodos, a burguesia nunca se reconheceu plenamente nesses governos. Ela sempre viu com desconfiança as políticas adotadas por Vargas e Jango (maiores expressões do populismo brasileiro). Ironicamente, eles – ao lado de JK – foram os que mais impulsionaram o desenvolvimento do capitalismo brasileiro. O que incomodava a burguesia eram a retórica nacionalista e a política social, visando a integrar as classes populares.

A política populista foi, fundamentalmente, de caráter nacional-desenvolvimentista, mas com certa particularidade — e é isso explica as crises sucessivas que atravessou. Ela poderia ser resumida na tentativa de incorporação das classes populares, através das políticas trabalhistas e sociais. Isso começou logo após a Revolução de 1930, com a constituição do Ministério do Trabalho. Lembrando que a legislação social brasileira chegou a ser tão ou mais avançada que a existente na Europa e nos Estados Unidos.

O projeto de desenvolvimento nacional de Vargas era, naturalmente, pelo seu conteúdo, capitalista e burguês. Mas, ao buscar construí-lo sobre uma base popular – não necessariamente com métodos democráticos –, o fez entrar em conflitos com as classes dominantes. Conflitos que, ao longo desse período, conheceram vários graus de intensidade – e o golpe militar foi o seu grau mais elevado de contradição.

Quando as crises eclodem? Justamente nos momentos em que se radicalizam as políticas populares e nacionalistas. Os dois golpes analisados – de 1954 e 1964 – ocorreram para barrar esse processo de radicalização do projeto nacional-desenvolvimentista, que vinha trazendo no seu bojo um perigoso processo de ascensão das massas populares.

Nos dois casos, o principal instrumento para derrubar o governo foram as Forças Armadas. Portanto, foram essencialmente golpes militares, apoiados pelo conjunto das classes economicamente dominantes (burguesia e latifúndio), o imperialismo e as camadas médias.

A força social dirigente desses dois golpes foi a grande burguesia comercial, ligada ao setor de importação e exportação, e vinculada, de alguma forma, aos interesses do imperialismo estadunidense. Ela conseguiu, no momento de crise, agregar sob a sua direção as demais frações, inclusive a burguesia industrial que, contraditoriamente, havia sido a principal beneficiada pela política desenvolvimentista de Getúlio e Jango.

Os golpes de 1954 e 1964 tiveram por objetivo preservar os interesses das classes economicamente dominantes que, de algum modo, estariam sendo prejudicados. Mas, estas classes são extremamente minoritárias. Por isso, precisam necessariamente atrair para o seu lado e mobilizar contra o governo (e as forças populares) as camadas médias, utilizando os seus medos e preconceitos provenientes de sua posição social particularmente no modo de produção capitalista. A mais emblemática dessas mobilizações conservadoras de “classes médias” foi a Marcha da família com Deus pela liberdade. Contudo, não podemos nos iludir e achar que foram golpes das camadas médias. Elas foram apenas “massa de manobras” – usando uma expressão jocosa – de interesses muito mais poderosos.

Uma das principais marcas da ideologia das camadas médias é o medo da proletarização. Nada lhes causa mais insegurança que o crescimento das lutas populares, que são encaradas como uma ameaça à sua condição social. No caso da América Latina, existiria ainda um agravante, como afirmou Carlos Altamirano: “as classes médias dos países de capitalismo dependente (…) gozam de um quadro de privilégios relativos. Seu padrão de vida é significativamente superior ao das grandes massas empobrecidas. Aqui existe um desnível de vida consideravelmente maior que nos países capitalistas avançados (…). Essa particularidade dificulta uma aliança com o proletariado; como o processo revolucionário deve forçosamente impor uma distribuição de renda equitativa para as grandes massas, a deterioração relativa dos setores médios é quase inevitável.”

É claro que as coisas nem sempre aparecem dessa forma. O papel da ideologia é justamente encobrir os verdadeiros interesses de classes em jogo. As camadas médias, em geral, não vão às ruas para pedir o fim da democracia ou a retirada de direitos sociais. O seu mote é sempre a luta pelas liberdades, ameaçadas pelo comunismo; e contra a corrupção político-estatal. Esses setores sociais são usados pelos de cima e depois descartados.

No caso dos dois golpes (1954 e 1964) a grande mídia foi o instrumento fundamental para que se criasse o clima de instabilidade e medo que permitiu o golpe de Estado e deu-lhe certa base social. Alguns autores alertam corretamente que nem todas as camadas médias apoiaram esses golpes, que elas nunca formaram um bloco coeso. As baixas classes médias – ou assalariados médios –, como bancários, comerciários etc., eram, em geral, favoráveis aos governos Vargas e Jango. 

Esse fenômeno se repete no Brasil atual. A fração industrial da burguesia – em tese representada na Fiesp [Federação das Indústrias do Estado de São Paulo], que foi amplamente beneficiada pela política neodesenvolvimentista dos governos Lula e Dilma –, diante da primeira crise muda de lado e adere à oposição neoliberal.  No passado, ela entregou o poder a Café Filho e Castelo Branco, que lhe foram nocivos – e hoje a Temer e sua equipe neoliberal. 

A expressão político-eleitoral da fração da grande burguesia comercial (exportadora e importadora) entre 1945 e 1964 foi a UDN [Unidade Democrática Nacional]. E, no Brasil atual, a expressão político-eleitoral da fração financista da burguesia é o PSDB [Partido da Social Democracia Brasileira]. Os dois partidos (UDN e PSDB), ao contrário do que se pensa, não são os representantes das camadas médias, embora possam lhes dar apoio. O PSDB é o principal partido do capital financeiro – situação que pode mudar com o desenvolvimento da conjuntura e da crise.

Os dois golpes tiveram o apoio do imperialismo, embora em 1964 ele tenha sido de uma forma mais ativa. Inclusive um filme brilhante, O dia que durou 21 anos, trata justamente da participação do imperialismo estadunidense no golpe de 1964. Nessa época estivemos à beira de ter uma intervenção militar direta caso tivesse havido resistência de Jango.

Os dois presidentes depostos, ao contrário do que se pensava na ocasião, contavam com apoio popular. Há uns 20 anos foi descoberta – nos arquivos do Ibope [Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística] – a pesquisa feita no início de 1964. Ela constata que 60% da população apoiavam o governo de João Goulart; 49% diziam que, se Jango pudesse ser candidato – e não havia reeleição na época –, votariam nele. Essa era a opinião popular poucos meses antes do golpe militar.

Mas, nos dois casos não houve resistência. Getúlio optou por suicidar-se, embora tenha deixado uma bela e contundente Carta-Testamento. Jango abandonou o país rejeitando qualquer forma de resistência que pudesse representar perdas de vida. Ambos ainda podiam ter mobilizado algum apoio militar, mas sabiam que com isso poderiam iniciar uma guerra civil de consequências imprevisíveis. Eles não eram revolucionários e sim reformistas burgueses. 

Esse é um problema que se tem quando procuramos construir um projeto avançado, que projetasse para um confronto com os interesses das classes dominantes e do imperialismo.  Chega um momento em que devemos avançar – apesar dos riscos – ou recuar. O recuo às vezes pode até ser necessário, reduzindo a pretensão programática visando a ampliar alianças políticas e sociais. Saber a hora e as maneiras de avançar ou recuar é o núcleo da arte da política. 

Diante de um golpe não se pode ficar passivo. No caso do Brasil de hoje acho que conseguimos dar uma resposta, não armada, mas política, realizando grandes mobilizações populares, apesar das difíceis condições em que nos encontrávamos.

As diferenças entre 1954 e 1964

Tratemos agora brevemente das diferenças entre os golpes de 1954 e 1964. O de 1954 derrubou o governo, mas não mudou o regime. As instituições continuaram funcionando, inclusive os partidos. Tanto é assim que, um ano depois, Juscelino se elegeria presidente, tendo como vice João Goulart, que era o demônio para essa direita liberal. Em 1964, o golpe colocou fim ao regime democrático e instaurou uma ditadura militar, que fez profundas reformulações no Estado.

Em 1954, na conjuntura pré-golpe, não houve uma quebra de hierarquia militar como ocorreu no pré-1964. No início dos anos 1960 tivemos um processo de mobilização, politização (à esquerda) e de organização de cabos, sargentos e marinheiros. Ocorreram levantes de sargentos e marinheiros. Mesmo a oficialidade legalista se sentiu ameaçada pela quebra de hierarquia. Isso deu uma unidade maior entre os golpistas de 1964, embora nem todos os oficiais tenham aderido ao golpe. Uma minoria resistiu e foi duramente reprimida.

Em 1954, não houve um significativo aumento dos conflitos fundiários. Havia apenas um incipiente trabalho de organização sindical rural levado a cabo pelos comunistas, sob duras condições. O fato de o campo estar calmo significava que os latifundiários não precisavam pressionar ou se opor a Getúlio, considerado um aliado no combate ao comunismo. Os latifundiários eram representados, em certo sentido, pelo PSD [Partido Social Democrático]. Este partido apoiou fielmente os governos Vargas e JK e seu projeto de desenvolvimento, fazendo com que tivessem uma tranquila maioria parlamentar. O PSD também apoiou a chapa Lott e Jango. E Isso é muito importante na diferenciação das duas grandes crises dos governos populistas ou trabalhistas.

No pré-1964, pelo contrário, o campo estava pegando fogo. Estavam em pleno processo de formação as Ligas camponesas e os sindicatos rurais, e em 1963 formou-se a Contag [Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura]. As greves se multiplicavam no campo e adquiriam certa radicalidade, especialmente no Nordeste. Ganhava força a palavra de ordem “Reforma agrária na lei ou na marra!”.

O próprio governo Jango incorporara a reforma agrária como uma de suas principais reformas de base. E quando ele apresentou o seu projeto de reforma agrária, que não tinha nada de radical, o PSD rompeu com ele. Mudou de lado e se aliou ao seu adversário histórico, a UDN, e com ele passou a trabalhar pela desestabilização do governo.

E quanto à última questão – já levantada por Renato Rabelo e Luciana Santos na mesa de abertura – sobre a posição do Partido Comunista do Brasil diante do golpe em curso em 1954 e 1964, nos dois casos ele cometeu um grave erro político. Em 1954, o Partido Comunista era oposição radical a Vargas e não conseguia ver que desde a segunda metade do seu governo, ele vinha fazendo uma guinada à esquerda e tentando uma aproximação maior junto aos trabalhadores. Isto podia ser constatado através da indicação de Jango para o Ministério do Trabalho, do aumento de 100% no salário-mínimo, da criação da Petrobras e da Eletrobrás, da aprovação da lei controlando a remessa de lucro ao exterior etc. O Partido Comunista não viu isso e continuou na oposição sistemática ao governo até o dia da morte de Vargas. E a mesma postura teve diante do governo de Jango. Contudo, os comunistas aprenderam com os seus erros e, com isso, puderam ser uma força de vanguarda na luta contra a ditadura militar – defendendo a constituição de uma ampla Frente oposicionista – e hoje, pioneiramente, travando o bom combate contra o golpe em desenvolvimento no Brasil.  

* Intervenção feita na mesa Diferenças e similitudes dos golpes no Brasil, durante o IV Seminário de Estudos Avançados da Escola Nacional do PCdoB Golpe no Brasil: causas, objetivos e resistência, realizado na cidade de São Paulo entre 8 e 10 de julho de 2016.

** Augusto C. Buonicore é historiador, presidente do Conselho Curador da Fundação Maurício Grabois e autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira: encontros e desencontros, Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas e Linhas Vermelhas: marxismo e os dilemas da revolução, todos publicados pela Editora Anita Garibaldi.