1. O pressuposto teórico: o Estado para o marxismo

O Estado é uma organização – ou um conjunto de instituições – que visa a garantir a dominação de uma classe sobre outra. Segundo Engels, as características fundamentais (histórico-universais) de qualquer aparelho estatal – seja ele escravista, feudal, capitalista ou socialista – são a existência de: a) aparelhos de repressão estrito senso (exército, polícia, tribunais) separados do povo em armas; b) um aparelho de coleta de impostos; e c) aparelhos articulados por um poder político classista. O conjunto de indivíduos responsáveis por essas tarefas formaria a burocracia estatal.

Os diferentes tipos de Estado correspondem, necessariamente, aos diferentes tipos de relações de produção – escravista, feudal, asiático, capitalista e socialista. Mas, cada tipo particular de Estado organiza a dominação de classe de uma maneira também bastante particular. Organiza de uma maneira específica a relação entre coerção e consenso (ou hegemonia) – através do direito, da ideologia e dos aparelhos de Estado.

2. O Estado no capitalismo

Segundo a teoria marxista, um dos papéis – o fundamental – do Estado burguês é reproduzir as relações de produção capitalistas; ou seja, reproduzir a dominação da burguesia sobre o proletariado, garantindo as condições de exploração da sua força de trabalho.

Mas como isto se dá? Qual a diferença entre Estado burguês e os Estados pré-capitalistas?

No capitalismo a força de trabalho deve tomar a forma de uma mercadoria – uma mercadoria especial – que, para se reproduzir, precisa ser trocada pelo salário. É, aparentemente, uma forma de troca de equivalentes (trabalho por salário). Esta “ilusão mercantil”, que encobre os mecanismos de exploração da força de trabalho e permite a sua reprodução sem a necessidade de uma coerção extraeconômica permanente, só pode ser mantida através das superestruturas jurídico-política e ideológica. Estas contribuem para o isolamento do operário e dificultam a constituição de um sentimento de pertencimento de classe.

No capitalismo a reprodução das condições de exploração não de dá, fundamentalmente, através da coerção física. Ela é fruto da dinâmica da própria economia e pela ação da ideologia e de seus aparelhos (aqui incluído o direito). Os aparelhos de repressão, estrito senso, só intervêm em casos extremos quando a ordem capitalista está ameaçada.

3. O direito e o Estado capitalista

Não existe Estado sem direito nem direito sem Estado. O direito, grosso modo, é o conjunto de normas e regras que disciplinam as relações sociais entre os homens e que são funcionais à reprodução de uma determinada relação de produção. Ele também estabelece penas (punições) para o seu descumprimento. O direito sintetiza, em certo sentido, os interesses de determinadas classes sociais.

O que difere o direito burguês dos que o antecederam é o fato de aquele, formalmente, tratar os desiguais de maneira igualitária. O direito pré-capitalista – escravista ou feudal – pelo contrário, tratava desigualmente os desiguais. O direito pré-capitalista institucionalizava os privilégios de classe, de estamento e mesmo de casta.

No capitalismo, o produtor direto (o operário) deve ser juridicamente livre e igual aos proprietários dos meios de produção. Esta é a condição necessária para a sua força de trabalho constituir-se como sua propriedade inalienável e poder ser livremente vendida no mercado de trabalho – ou seja, trocada por um salário. Sem a predominância de tal relação mercantil não poderia existir o capitalismo como modo de produção particular.

O capitalismo precisa de um homem-trabalhador juridicamente livre e a predominância de relações sociais assentadas num contrato livremente estabelecido por partes iguais – possuidores de capacidades jurídicas (ou vontade subjetiva) e detentores de propriedade (o burguês o capital e o operário o trabalho).

4. O aparelho estatal capitalista

O que difere o aparelho estatal capitalista – a sua burocracia – dos aparelhos estatais pré-capitalistas é sua capacidade de incorporar no seu interior, inclusive na sua cúpula, elementos provindos das classes sociais dominadas e exploradas fundamentais. Não existe qualquer tipo de obstáculo – jurídico-formal – para os filhos dos assalariados manuais poderem exercer funções públicas. As funções públicas não são exclusivas dos elementos das classes proprietárias, como no escravismo e no feudalismo. Isto dá ao Estado uma aparência de neutralidade – um instrumento acima das classes e dos seus interesses particulares. Hegel, por exemplo, considerava a burocracia como uma classe universal encarregada de realizar os interesses coletivos da comunidade.

O acesso ao exercício das funções públicas é realizado através de critérios de competência e conhecimentos, auferidos por concursos e seleções mais ou menos públicos. Isto – é claro – não impede que os órgãos superiores do aparelho de Estado capitalista sejam, predominantemente, compostos por elementos da alta classe média ou mesmo da burguesia. As profundas desigualdades sociais existentes no capitalismo refletem diretamente na formação cultural dos elementos das diversas classes e os colocam em situações bastante diferenciadas diante dos concursos para compor o quadro de altos funcionários do Estado burguês. As dificuldades de ingresso dos filhos de operários serão incomensuravelmente maiores do que as dos filhos de burgueses ou pequeno-burgueses.

À composição social – predominantemente de classes médias – devem ser agregados os altos níveis salariais dos escalões superiores do poder executivo (burocracia civil e militar), legislativo e judiciário. Tudo isso leva a uma aproximação (subjetiva) maior com as classes dominantes do que com as classes populares. A estrutura burocrática, tendencialmente, leva à constituição de uma ideologia conservadora e meritocrática – apegada ao fetiche da divisão entre trabalho intelectual e manual, entre funções de mando e subordinadas e uma rejeição a qualquer controle externo, exercido pelas classes populares. Referimos-nos aqui apenas aos altos escalões da burocracia estatal e não a sua base. Nesta predominam elementos provindos das classes dominadas.

Outra característica: o Estado capitalista não se organiza através do patrimonialismo típico de Estados pré-burgueses (escravista e feudal). No Estado de tipo patrimonial o aparelho de Estado (inclusive a burocracia) se confunde com a propriedade do Príncipe – do governante. Não existe distinção entre o público e o privado. Os empregados pessoais do governante, por exemplo, são ao mesmo tempo servidores estatais. No capitalismo, pelo contrário, o Estado não é formalmente propriedade do Príncipe ou do burguês.

5. A democracia capitalista e o proletariado

O capitalismo, como outras formações sociais anteriores, em alguns casos, organiza formas de participação política das classes proprietárias fundamentais e seus aliados. A novidade é que ele abre a possibilidade de participação política (eleger e ser eleito) para as classes populares. Esta forma de governo é intitulada democrática. O próprio parlamento moderno surge no processo de transformação da sociedade feudal em capitalista – através da revolução política burguesa.

O parlamento, no seu início, era apenas um espaço de articulação política e de controle do Estado pelos elementos dos escalões superiores das classes proprietárias (latifundiários, banqueiros, grandes comerciantes e industriais). A luta das classes médias e depois dos trabalhadores, pela ampliação gradual dos critérios para legibilidade e do sufrágio, garantiu o ingresso de elementos de fora das classes proprietárias.

A existência de parlamentos democráticos, com a participação de elementos das classes exploradas, é uma das características das sociedades capitalistas mais desenvolvidas. Esse é um elemento que define uma sociedade burguesa politicamente consolidada. A existência do sufrágio universal, do pluripartidarismo (incluindo a existência de partidos socialistas) e da possibilidade formal da alternância do poder tem um forte componente ideológico que afeta as camadas populares. A democracia burguesa neutraliza a visão de um Estado classista e reforça as concepções pluralistas, hegemônicas nos países capitalistas centrais.

Contudo, a existência de parlamentos, mais ou menos democráticos, não é um fator definidor da existência do Estado burguês, pois a democracia parlamentar é apenas uma das formas que pode assumir a dominação de classe da burguesia – a sua forma mais avançada. As ditaduras fascistas e Alemanha, Itália, Espanha, Portugal e as ditaduras militares na América Latina são prova disso.

O Estado burguês pode perfeitamente viver sem um parlamento democrático em funcionamento, mas não pode viver sem a burocracia (civil e militar) e sem os elementos centrais do direito burguês, citados acima. Nenhuma ditadura burguesa pode tirar o “direito” do trabalhador  de individualmente vender livremente sua força de trabalho para o capitalista e retroceder para relações jurídicas servis ou escravocratas. Isto não significa que nas formações capitalistas concretas não possam existir nichos de relações sociais pré-capitalistas (feudais ou escravistas).

Decerto, no capitalismo, não é indiferente para a classe explorada fundamental – o proletariado – a forma pela qual a burguesia exerce a sua dominação. Não é indiferente a dominação dar-se através de uma ditadura ou dos mecanismos da democracia burguesa. A democracia burguesa é o campo mais favorável para a elevação do nível de consciência e de organização da classe operária e demais classes subalternas. Por isso, nos marcos do capitalismo, os partidos comunistas são vanguardas da luta pela democracia e contra a fascistização do Estado burguês.

6. Bloco no Poder e hegemonia política

Nas sociedades capitalistas o poder político está nas mãos do conjunto das frações da burguesia e seus aliados das classes proprietárias – como os latifundiários. Em última instância, esse bloco dominante tem por objetivo manter as relações de produção capitalistas hegemônicas e neutralizar a ação independente e revolucionária das classes populares, especialmente da classe operária.

Portanto, esse bloco dominante compõe-se de interesses econômico-corporativos diversos e por vezes contraditórios. Isto explica a existência de disputa dentro dos governos burgueses e a existência de diversos partidos das classes dominantes. Em todo “bloco no poder” existe, por exemplo, uma luta incessante pelo rumo da política econômica estatal. Essas contradições podem gerar conflitos relativamente graves – veja a Revolução de 1930 e a de 1932 e os golpes militares de 1954 e 1964 no Brasil.

Em geral, não existe uma divisão igualitária do poder político entre as diversas frações de classe dentro do Estado burguês. Uma fração da classe burguesa tende a preponderar sobre as demais. A fração da classe dominante que congrega todas as demais frações e detém a direção principal do bloco no poder é denominada hegemônica. No império escravista a fração hegemônica era a dos latifundiários escravistas ligados à produção de açúcar do Nordeste e do café no Vale do Paraíba; na República Velha a fração hegemônica era a dos latifundiários paulistas (ou da burguesia financeira e comercial) também ligados à produção do café.

O exercício da hegemonia garante que seus interesses econômicos fundamentais serão, prioritariamente, defendidos por esse Estado – prioritariamente, não exclusivamente. O exercício da hegemonia exige muitas vezes que a fração hegemônica faça concessões às frações das classes proprietárias não-hegemônicas e mesmo às classes dominadas. A defesa dos interesses de longo prazo do capitalismo pode levá-la a fazer concessões que se chocam com os interesses corporativos imediatos de elementos da própria classe hegemônica.

Em momentos de crise aguda de hegemonia, a burocracia de Estado pode adquirir uma autonomia relativa em relação às classes sociais em luta. Nesses casos a política estatal adotada pode não corresponder integralmente aos interesses da classe economicamente dominante, embora não possa romper com a lógica da reprodução do capitalismo. A este fenômeno Marx denominou bonapartismo (ex. Bonaparte III, o fascismo, o peronismo, o populismo etc.). O Estado varguista é um pouco o resultado de tal crise de hegemonia aberta com a grande crise do capitalismo de 1929 e a Revolução de 1930.

7. A autonomia relativa do Estado

As observações anteriores servem para reforçar uma das teses presentes em Marx, e desenvolvidas por outros autores como Gramsci, Althusser e Poulantzas, da autonomia relativa do Estado em relação à base econômica e aos interesses imediatos da classe economicamente dominante. Esta autonomia relativa é uma exigência para a realização da tarefa de agregar o “bloco no poder” e defender os interesses de longo prazo da sociedade capitalista. O Estado capitalista deve defender o interesse de longo prazo das classes proprietárias, particularmente da fração hegemônica. Para isto é muitas vezes preciso fazer concessões às demais frações do bloco no poder e as próprias classes dominadas. Isto pode levar a conflitos entre as classes economicamente dominantes e o governo. O conflito pode levar a rupturas. A autonomia relativa do Estado no capitalismo não é um reflexo da crise de hegemonia, mas uma condição normal e necessária. O grau desta autonomia é determinado pelo grau alcançado pela luta de classes.

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___________. Estado e Democracia: Ensaios teóricos, Campinas, IFCH/Unicamp, 1994, (Coleção Trajetória 1).

 

* Trecho do livro “Marxismo, história e revolução brasileira: encontros e desencontros”.

** Augusto C. Buonicore é historiador, presidente do Conselho Curador da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira: encontros e desencontros, Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas e Linhas Vermelhas: marxismo e os dilemas da revolução. Todos publicados pela Editora Anita Garibaldi.