1. Introdução

Atualmente se retoma o debate sobre as possibilidades da revolução, e de sua relação com o desenvolvimento histórico, já é um grande avanço em relação a um período bastante recente. No início da década de 1990 a revolução parecia estar ameaçada de se transformar em peça de acervo de algum museu das “ideologias perdidas” – depositada ao lado de outras relíquias dos séculos passados. A própria história esteve por um fio. Chegaram mesmo a anunciar que ela havia chegado ao fim.

No entanto, felizmente, parece que ambas – história e revolução – continuam incomodando seus inimigos. Hoje já se ouve o toque de finados da pós-modernidade, subproduto de um tempo de desesperança. Certamente, neste caso, a morta recusa-se a se baixar tranquilamente à sepultura. Precisa ainda que seja empurrada – a pontapés – para dentro. Como as classes proprietárias não abandonam pacificamente as suas posições dominantes, assim fazem também as ideologias por elas engendradas. Mesmo quando se tornam claramente disfuncionais.

O objetivo deste texto não é tratar da relação entre revolução e história de maneira geral. Seu objetivo é mais modesto. Ele pretende fazer um histórico da discussão, no interior do marxismo, sobre a necessidade da revolução democrática burguesa em países onde havia um capitalismo ainda pouco desenvolvido. O texto não pretende, também, fazer uma exposição sistemática sobre os problemas da tática ou da estratégia revolucionárias adotadas pelos comunistas desde 1848. Isto aparecerá apenas colateralmente, embora exista uma íntima relação entre a constatação da existência de etapas na revolução e a construção de estratégias políticas.

2. Marx e Engels diante da Revolução de 1848 e da unificação alemã

O debate em torno da revolução burguesa, no interior do marxismo, é bastante antigo. Marx e Engels foram os primeiros a introduzi-lo. Antes mesmo que a revolução parisiense pudesse dar início à “primavera dos povos”, expressaram suas esperanças numa possível revolução democrática burguesa na sua terra natal: a Alemanha. No Manifesto do Partido Comunista, de 1848, escreveram: “É para a Alemanha, sobretudo, que os comunistas voltam suas atenções, porque este país se encontra às vésperas de uma revolução burguesa, destinada a concretizar-se sob as condições mais avançadas da civilização europeia, com um proletariado muito mais desenvolvido do que o da Inglaterra, no século XVII, e o da França, no século XVIII, e porque a revolução burguesa na Alemanha será o prelúdio imediato de uma revolução proletária” (1). Indicaram também a estratégia que deveria ser adotada pelos operários diante da revolução que se aproximava. “Na Alemanha”, escreveram eles, “o partido comunista luta de acordo com a burguesia, todas as vezes que ela age revolucionariamente, contra a monarquia absoluta e a propriedade rural feudal” (2).

Na Alemanha a corrente política autodenominada “verdadeiro socialismo”, contra as indicações expressas no Manifesto, concentrava seus ataques à burguesia liberal. Defendia que os trabalhadores não deviam participar do movimento oposicionista, hegemonizado pelos liberais. Ainda em setembro de 1847, respondendo aos “socialistas verdadeiros”, Marx escreveu: “O proletariado não se pergunta se o povo é um assunto de primeira ou de segunda ordem para o burguês (…). A questão consiste no que lhes proporciona mais meios para a conquista de seus próprios fins: o regime político de dominação da burocracia ou o regime ao qual aspiram os liberais, de dominação da burguesia. Basta comparar a situação do proletariado (…) para convencer-se de que a dominação da burguesia não só põe nas suas mãos armas completamente novas para a luta contra a mesma burguesia, mas também lhes cria uma situação totalmente nova: seu reconhecimento como partido” (3).

Após o início da Revolução alemã, Marx e Engels elaboraram uma proposta de plataforma política: Reivindicações do Partido Comunista na Alemanha. A primeira delas – e mais importante – era: “Toda a Alemanha será declarada uma república una e indivisível” (4). Esta se constituía na principal tarefa a ser realizada pela revolução que se desenvolvia no país, que até aquele momento não passava de um aglomerado de mais de três dezenas de pequenos Estados autônomos. A unificação política e administrativa era uma das condições para unificação do próprio proletariado e sua efetiva constituição em “classe nacional”. Assim, as Reivindicações se transformaram num dos primeiros programas dos comunistas para uma revolução democrática burguesa. Ele articulava as bandeiras nacionais, democráticas e populares.

Em abril os dois autores se transferiram para a Renânia, visando a participar diretamente do movimento revolucionário. Uma de suas primeiras medidas foi editar o jornal Nova Gazeta Renana, como “órgão da democracia”. O próprio nome foi uma tentativa de restabelecer os laços com o jornal da oposição democrática fechado em 1843, do qual Marx havia sido chefe de redação. Outra medida foi ingressarem na Associação Democrática de Colônia e fortalecerem a ala esquerda do partido democrático, composta por elementos radicais da burguesia liberal, da pequena-burguesia e do proletariado. Essas atitudes lhes valeram duras críticas por parte de alguns membros da Liga dos Comunistas residentes no exterior. Diziam que eles estavam traindo o espírito do Manifesto Comunista.

Engels, mais tarde, em 1884, justificou as posições tomadas em 1848: “Os operários alemães tinham de conquistar, antes de tudo, os direitos que lhes eram indispensáveis para organizar-se de modo independente, como partido de classe. Por isso, quando fundamos na Alemanha um grande periódico, nossa bandeira não poderia ser outra senão a bandeira da democracia (…). Se não houvéssemos procedido desse modo, se não houvéssemos aderido ao movimento, incorporando-nos àquela ala que já existia, que era a mais progressista (…) para impulsioná-la para frente, não nos teria sobrado outro remédio senão pormo-nos a predicar o comunismo em algum jornalzinho local e fundar, em vez de um grande partido de ação, uma pequena seita. Porém o papel de pregadores no deserto não nos caía bem; havíamos estudado demasiado bem os utopistas para cair nisso. Não foi para isso que havíamos traçado nosso programa” (5).

A burguesia alemã não se colocou à altura das necessidades do movimento revolucionário. Marx não cansou de denunciar as vacilações e traições dos liberais. Contudo, isto não mudou sua compreensão sobre a revolução democrática e de quais inimigos deveriam ser derrotados num primeiro momento. Após a dissolução do parlamento, o rei da Prússia outorgou uma nova Constituição que mantinha ainda alguns mecanismos democráticos, conquistados pela Revolução de março. Em janeiro de 1849 foi convocada eleição para a Assembleia Nacional. No entanto, as associações operárias foram proibidas de apresentar candidatos próprios.

Marx, então, apresentou a proposta de participar ativamente da eleição e apoiar os candidatos democráticos. Esta encontrou uma dura resistência por parte dos representantes da Associação Operária de Colônia e da própria direção da Liga Comunista residente em Londres. Marx respondeu duramente às críticas da extrema-esquerda: “não se trata, por agora, de atuar no plano dos princípios e sim de nos opormos ao governo, ao absolutismo e ao regime feudal, o qual está também ao alcance de simples democratas, e dos que se chamam liberais, que tampouco estão satisfeitos (…) com o atual governo. É preciso tomar as coisas como elas são. Posto que no momento é preciso opor-se o mais possível ao absolutismo atual, uma vez estando claro que nas eleições não se pode levar o trunfo de nossas posições de princípios, o senso comum exige que unamo-nos a outros partidos, igualmente de oposição, para impedirmos a vitória de nosso inimigo comum, a monarquia absoluta” (6).

Durante o processo eleitoral as correntes reacionárias tentaram separar os liberal-democratas dos comunistas, levantando o fantasma do “terror vermelho”. Um jornal de Colônia escreveu: “só existia duas opções para a burguesia: ou aceitar a Constituição monárquica outorgada ou aceitar a ‘república vermelha’”. Marx desmascarou a manobra absolutista escrevendo na Nova Gazeta Renana que a verdadeira escolha dos liberais seria entre “o antigo absolutismo com um sistema de estamento renovado ou um sistema representativo burguês”. Continuou ele: “Não se trata em absoluto de uma luta contra as relações de propriedade burguesa. Trata-se, pelo contrário, da luta contra uma Constituição política (…) que põe em perigo as relações de propriedade burguesa ao confiar o timão aos representantes das relações de propriedade feudal, ao rei de direito divino, ao exército, à burocracia, aos senhores rurais, a alguns barões das finanças e alguns burgueses ligados a eles”. Em outra oportunidade reiterou: “somos indubitavelmente os últimos a querer a dominação da burguesia (…), porém nós dissemos aos operários: antes de voltar a uma forma social caduca vale mais a pena sofrer na sociedade burguesa moderna, cuja indústria cria os meios materiais necessários para a fundação de uma sociedade nova que libertará a todos” (7).

Em editorial da Nova Gazeta Renana, de 18 fevereiro de 1849, sem meias palavras, afirmou: “Gostamos de posições claras (…) quando se trata de combater ‘o governo em exercício’ nos aliamos inclusive com os nossos inimigos. Aceitamos como fato existente a oposição prussiana oficial, tal como ela é, saída das lamentáveis condições da civilização alemã, e por isso no curso da campanha eleitoral temos deixado em um segundo plano nossas próprias concepções”.

As posições de Marx e Engels, novamente, lhes valeram duros ataques da extrema-esquerda dirigida por Gottschalk. Este rompeu relações com Marx e fundou o jornal sectário Liberdade e Trabalho, no qual anunciou uma luta sem tréguas “contra todos os partidos, desde o partido da Nova Gazeta Renana até a Nova Gazeta Prussiana”, órgão da reação monárquica. Em 25 de fevereiro publicou uma carta aberta “ao senhor Carlos Marx”, na qual contestou suas teses centrais. “Para que, então, a revolução? Por que nós, gente do proletariado, vamos derramar nosso sangue, se para escapar do inferno medieval temos que nos precipitar voluntariamente – como você senhor profeta nos anuncia – ao purgatório de um capitalismo decadente, a fim de poder alcançar o nebuloso céu do vosso credo comunista?” (8).

Esta era também a opinião de parte dos dirigentes da Liga Comunista em Londres, como Schapper, que advogavam a ideia de a tarefa imediata da Revolução alemã ser a conquista do poder político pelo proletariado e para isso bastava que os revolucionários realmente o desejassem. Marx rebateu essas teses afirmando: “Em lugar da concepção materialista do Manifesto se promove a idealista. Em lugar de relações reais, que é o essencial da revolução, se põe a vontade. No entanto, nós dizemos aos operários: talvez sejam necessários 15 ou 20 anos de guerra civil para mudar as condições atuais e capacitá-los para a dominação; eles dizem: temos que conquistar agora mesmo o poder e assim poderemos ir dormir. Da mesma maneira que o democrata utiliza a palavra ‘povo’, eles utilizam a palavra ‘proletariado’: como frase vazia” (9).

Mesmo após a derrota da Revolução de 1848, Marx e Engels continuaram defendendo a necessidade da revolução burguesa e criticando a timidez da burguesia alemã. Entretanto, as tarefas daquela revolução foram, gradualmente, sendo realizadas pelo Estado imperial prussiano, sob o comando de Bismarck. Ele iniciou e concluiu a unificação do país – realizada, principalmente, através da força das armas em 1866 e 1871.

Ainda em abril de 1866, em carta a Marx, Engels constatou: “A partir do momento em que Bismarck levou a cabo o projeto da burguesia, devemos reconhecer o fato consumado, gostemos ou não (…). Tudo o que podemos fazer é aceitar simplesmente o fato sem justificá-lo, e aproveitar o máximo que possamos as facilidades existentes agora para a organização e unificação nacionais do proletariado alemão”. A esta respondeu Marx: “Coincido inteiramente contigo que deve-se aceitar a confusão tal como é (…). Para os operários tudo o que centralize a burguesia é, obviamente, favorável” (10).

O julgamento de Marx e Engels sobre o papel progressista da unificação bismarckiana ficou evidente no apoio, aparentemente inusitado, dado à Alemanha quando da eclosão da Guerra Franco-prussiana em 1870. Marx escreveu: “Os franceses necessitam de uma surra (…). Se ganham os prussianos, a centralização do poder estatal será útil para a classe operária alemã”. Engels respondeu: “O miserável estado em que se encontra a burguesia alemã deve-se ao fato de que esta guerra tenha sido ordenada por Bismarck e Cia., e que devamos rezar missas por sua glorificação passageira se a conduzem com êxito. Por certo isso é muito desagradável”. Bismarck, continuou ele, “está fazendo um pouquinho do nosso trabalho, a sua maneira e sem propor, mas de qualquer forma, está fazendo (…). A afirmação de Wilhelm (Liebknecht) de que, pelo fato de Bismarck ser um ex-cúmplice de (Napoleão III), a posição correta é permanecer neutro, causa graça” (11).

3. Lênin e a Revolução Democrático-burguesa na Rússia de 1905

No entanto, os social-democratas russos, especialmente Lênin, é que colocaram a revolução burguesa no centro de suas atenções e de sua elaboração teórico-política. A razão disto foi a luta que travavam contra os “populistas”, que negavam a necessidade de a Rússia passar pelo capitalismo antes de chegar ao socialismo – ou seja, rejeitavam a necessidade do desenvolvimento capitalista e da revolução burguesa.

Os socialistas russos quando afirmaram a necessidade da revolução burguesa não fizeram nada mais do que seguir uma velha tradição da social-democracia europeia iniciada por Marx e Engels. Lênin expôs, de maneira sistemática, sua visão sobre a revolução na Rússia em Duas táticas da social democracia na Revolução Democrática, redigido em 1905. “Ao fixar como objetivo do governo provisório revolucionário a realização do programa mínimo”, escreveu ele, “eliminam-se as absurdas ideias semianarquistas sobre a realização imediata do programa máximo, sobre a conquista do poder para levar a cabo a revolução socialista. (…) Só os mais ignorantes podem passar por cima do caráter burguês da revolução democrática que se está desenvolvendo (…). E como resposta às objeções anarquistas de que adiamos a revolução socialista, diremos: não adiamos e sim demos o primeiro passo para ela através do único procedimento possível, do único caminho justo, que é o da república democrática. Quem quiser ir ao socialismo por outro caminho que não seja o da democracia política chegará inevitavelmente a conclusões absurdas e reacionárias, tanto no terreno econômico como no político” (12).

No ano de 1905, em meio ao primeiro grande ensaio da grande Revolução de Outubro, Lênin afirmou: “constitui uma ideia reacionária procurar a salvação da classe operária em algo que não seja um maior desenvolvimento do capitalismo. Em países como a Rússia, a classe operária sofre não tanto com o capitalismo, mas com a insuficiência de desenvolvimento do mesmo. Por isto a classe operária está, indubitavelmente, interessada no desenvolvimento mais vasto, mais livre, mais rápido do capitalismo (…). A revolução burguesa é absolutamente necessária para os interesses do proletariado”. Continuou: “Os marxistas estão inteiramente convencidos do caráter burguês da revolução russa (…) as transformações econômico-sociais (…) não somente não constitui em si um ataque ao capitalismo, à dominação da burguesia, mas, pelo contrário, pela primeira vez (…) aplainam o terreno para um desenvolvimento vasto e rápido, europeu e não asiático, do capitalismo; pela primeira vez tornam possível a dominação da burguesia como classe (…). Porém daí não se conclui, de maneira alguma, que a revolução democrática (burguesa por seu conteúdo econômico e social) não represente um enorme interesse para o proletariado” (13).

Nesses textos Lênin estava apenas expressando uma ideia presente nos artigos de Marx e Engels escritos entre 1848 e 1849. Assim é que a ideia de revolução burguesa nos países economicamente atrasados, onde predominam relações de produção pré-capitalistas, entrou na agenda do movimento comunista internacional quando da fundação da Internacional Comunista em 1919.

4. Algumas considerações sobre a revolução burguesa

Mas, o que é uma revolução burguesa para o marxismo? É um processo histórico, mais ou menos prolongado, através do qual as relações de produção capitalistas se tornam hegemônicas e submetem todas as demais relações sociais. Ela tem uma fase de maior duração, marcada pelas transformações econômicas, sociais e culturais, e uma fase de curta duração, condensada no tempo – à qual alguns autores denominaram “revolução política”. Isto implica uma distinção teórico-metodológica entre revolução no sentido amplo e de revolução num sentido estreito – entre revolução econômico-social e revolução política. Em geral, dentro de certa tradição histórica e sociológica, apenas a segunda é considerada propriamente uma revolução.

O Dicionário de Política, organizado por Bobbio e Matteucci, por exemplo, no verbete Revolução, afirma: “A Revolução é a tentativa, acompanhada do uso da violência, de derrubar as autoridades políticas existentes e de as substituir, a fim de efetuar profundas mudanças nas relações políticas, no ordenamento jurídico-constitucional e na esfera sócio-econômica (…). A revolução só se completa com a introdução de profundas mudanças nos sistemas político, social e econômico”. O próprio Lênin, em As Duas Táticas, escreveu: “o que é a revolução? A ruptura violenta da superestrutura retrógrada (…) a superestrutura se rompe em todas as suas emendas, cede à pressão, se debilita” (14). Ou seja, aqui os autores se referem, fundamentalmente, à revolução num sentido estreito – como revolução política. Mesmo essa ideia de revolução política burguesa – imposta pela violência (contra a aristocracia rural) e condensada no tempo é bastante problemática.

Essa fase da revolução burguesa, de curto prazo, se traduz na luta política mais ou menos aberta e direta da burguesia e/ou seus aliados pelo controle do aparelho de Estado e do poder político. No entanto, as tarefas políticas da revolução burguesa poderão ser realizadas por outras classes – como a pequena-burguesia – e mesmo pela burocracia de Estado de tipo bonapartista – num fenômeno chamado por alguns autores de substituísmo. O conceito de revolução burguesa, portanto, está ligado ao conteúdo das tarefas a serem necessariamente realizadas e não às forças sociais (classes, frações de classe e categorias) que a dirigem, ou mesmo que assumem, provisoriamente ou não, posições centrais no novo aparelho de Estado transformado.

Quando plenamente vitoriosa, a revolução política burguesa põe fim às formas políticas e jurídicas arcaicas que impedem o pleno desenvolvimento das forças produtivas capitalistas. A revolução política deve garantir, entre outras coisas, a igualdade jurídica formal de todos os cidadãos (pelo menos para os homens em idade adulta).

Em seu desenvolvimento histórico concreto, a revolução burguesa conheceu dois modelos distintos. Primeiro, o das revoluções denominadas clássicas, como a Revolução Francesa, quando a burguesia dirigiu a luta do conjunto do povo (pequena-burguesia urbana, proletariado, camponeses e pequena nobreza) contra a aristocracia feudal. Sua ação política foi o estopim para a eclosão de uma revolução camponesa que pôs fim aos privilégios feudais e aos latifúndios. Embora isso não estivesse nos seus planos iniciais e, em muitos casos, tivesse sido realizado à sua revelia.

O segundo, chamado por Lênin de “Via Prussiana”, engendrou outro padrão de aliança de classes. Esta ideia nos é apresentada em O programa agrário da social-democracia na primeira revolução russa de 1905-1907. Ali constatou: “existe somente o caminho de desenvolvimento burguês para a Rússia. Mas as formas podem ser duas. Os restos do feudalismo podem desaparecer, quer mediante a transformação dos domínios dos latifúndios quer mediante a destruição dos latifundiários feudais (…). O desenvolvimento burguês pode verificar-se tendo à frente as grandes propriedades dos latifúndios, que paulatinamente se tornarão cada vez mais burguesas, que paulatinamente substituirão os métodos feudais de exploração pelos métodos burgueses; e pode verificar-se também, tendo à frente as pequenas explorações camponesas, que, por via revolucionária, extirparão do organismo social a ‘excrescência’ dos latifúndios feudais e, sem eles, desenvolver-se-ão livremente pelo caminho da agricultura capitalista dos granjeiros (…) A estes dois caminhos do desenvolvimento burguês, objetivamente possíveis, chamaríamos de caminho do tipo prussiano e caminho de tipo norte-americano. No primeiro caso, a exploração feudal do latifundiário transforma-se lentamente numa exploração burguesa-junker, condenando os camponeses a decênios inteiros da mais dolorosa expropriação e do mais doloroso jugo (…)” (15).

O intelectual comunista húngaro Georg Lukcás incorporou o conceito e o ampliou para além da resolução das tarefas da revolução burguesa no campo. Referindo-se à “via prussiana” escreveu em seu O Assalto à razão: “para certos setores decisivos da burguesia alemã, especialmente para a Prússia, oferecia-se o caminho mais cômodo do compromisso de classes, que permitia subtrair-se às consequências plebeias extremas da revolução democrático-burguesa e lhe brindava, portanto, com a possibilidade de alcançar seus objetivos econômicos sem a necessidade da revolução, ainda que fosse à custa de renunciar à hegemonia política no novo Estado (…). O pronunciamento de Lênin não deve ser entendido relacionado somente à questão agrária no sentido estrito, e sim estendido a todo o desenvolvimento do capitalismo e a superestrutura política que apresenta a moderna sociedade burguesa na Alemanha” (16).

Gramsci, por sua vez, para analisar fenômeno bastante semelhante, cunhou os termos “revolução passiva” ou “revolução-restauração”. Ele defendeu que a unificação e a própria revolução burguesa na Itália desenvolveram-se predominantemente como “revoluções passivas”. Essa constatação, no entanto, era válida “não só para Itália, mas para os outros países que modernizaram o Estado (…) sem passar pela revolução política de tipo radical-jacobina” (17).

Nos países de capitalismo retardatário – através da “via prussiana” ou “revolução passiva” – as transformações moleculares, graduais tenderam a predominar sobre os momentos explosivos. Ali não se procurou mobilizar revolucionariamente as massas populares, e sim se estabeleceram acordos, por cima, com as antigas classes dominantes, como os latifundiários.  Os processos de revolução burguesa na Alemanha e na Itália são exemplos desse tipo de “revolução pelo alto”.

A noção de “revolução pelo alto” está presente em alguns textos do próprio Engels. Na sua Introdução às Lutas de Classe na França (1895) escreveu: “O período das revoluções a partir de baixo estava por agora terminado; seguiu-se um período de revoluções a partir de cima (…). O seu imitador Bismarck adotou essa mesma política para a Prússia. Fez do seu golpe de Estado, a sua revolução a partir de cima em 1866” (18). No manuscrito inacabado O papel de violência na história, escrito entre 1887 e 1888, definiu a unificação alemã como revolucionária, embora tenha sido uma revolução “de cima para baixo”. Na sua Crítica ao Programa de Erfurt, escrita em 1891, Engels escreveu: “Não nos compete fazer retroceder a revolução feita por cima, em 1866 e 1870; pelo contrário, temos que lhe trazer o complemento e a correção necessários por um movimento a partir de baixo” (19).

Seguindo as indicações de Engels, o intelectual comunista húngaro Georg Lukács afirmou que o prussianismo foi uma espécie de bonapartismo progressista. Escreveu em O Assalto à Razão: “A Alemanha bismarckiana é, em muitos aspectos (…) uma cópia da França bonapartista. Porém, o próprio Engels faz constar, ao mesmo tempo, categoricamente, que ‘a monarquia bonapartista’, na Prússia e Alemanha, representou objetivamente um progresso em relação à situação anterior a 1848, posto que nos marcos daquele regime, viam satisfeitas as exigências econômicas da burguesia, abrindo amplas estradas ao desenvolvimento das forças produtivas” (20).

Os dois tipos de revolução burguesa correspondem a dois tempos históricos distintos. O primeiro, quando a burguesia ainda era uma classe revolucionária; o segundo, quando a burguesia deixou de sê-lo, após a experiência da revolta operária de julho de 1848 e da Comuna de Paris em 1871. Podemos mesmo dizer que essa precaução burguesa em relação aos trabalhadores tem sua origem na Revolução francesa de 1789, quando ela teve de enfrentar a ala radical do partido democrático – composto pelo jovem proletariado parisiense. Os países que chegaram atrasados ao “universo do capitalismo” tiveram diante de si o espectro da revolução social de base operária e popular.

Portanto, a ideia de revolução burguesa como movimento de médio e longo prazos também não é estranha ao marxismo clássico. Pelo contrário, ela é amplamente predominante. Em 1874, no Prefácio de As Guerras Camponesas na Alemanha, escreveu Engels: “Foi assim então que o estranho destino da Prússia quis que ela atingisse, em fins deste século XIX, sob a forma agradável do bonapartismo, sua revolução burguesa, começada em 1808-1813, e que deu outro passo adiante em 1848. E se tudo for bem, se o mundo permanecer sereno e tranquilo, quando todos nós já formos muito velhos, poderemos talvez, em 1900, ver o governo da Prússia suprimir as instituições feudais e a própria Prússia atingir enfim o ponto que se encontrava a França em 1792. (…) A supressão do feudalismo, se queremos ser positivos, significa a instauração do regime burguês. À medida que caem os privilégios aristocráticos, a legislação se torna burguesa. E aqui nos encontramos no próprio âmago das relações da burguesia com o governo” (21).

Lênin expressou a mesma ideia no folheto Sobre o direito das nações autodeterminação: “Na Europa Ocidental, continental, a época das revoluções democrático-burguesas abarca um período de tempo bastante determinado, aproximadamente de 1789 a 1871, Foi exatamente esta época dos movimentos nacionais e de formação dos Estados nacionais. No fim desta época a Europa Ocidental tinha se transformado num sistema de Estados burgueses e, regra geral, Estados nacionalmente homogêneos (…). Na Europa Oriental e na Ásia a época das revoluções democrático-burguesas não fez mais do que começar em 1905 (…). Na Áustria ela (a revolução democrático-burguesa) começou no ano de 1848 e terminou em 1867. Desde então, ao longo de quase meio século impera ali uma Constituição burguesa mais ou menos estabelecida na base da qual atua legalmente o partido operário” (22).

Referindo-se ao processo de revolução burguesa na França Gramsci constatou: “Efetivamente, só em 1870-1871, com a tentativa da Comuna, esgotam-se historicamente todos os gérmenes nascidos em 1789. Não só a nova classe que luta pelo poder derrota os representantes da velha sociedade que não quer confessar-se definitivamente superada, mas derrota também os grupos novíssimos que acreditam já ultrapassada a estrutura surgida da transformação iniciada em 1789. Assim, ela demonstra a sua vitalidade tanto em relação ao velho como em relação ao novíssimo (…). Os historiadores de modo nenhum concordam (…) ao fixar os limites daquela série de acontecimentos que constitui a Revolução Francesa (…). Em todas estas maneiras de ver há uma parte de verdade. Realmente, as contradições internas da estrutura francesa, que se desenvolvem depois de 1789, só encontram uma relativa composição com a Terceira República” (23).

Leiam também:

Notas sobre o marxismo e as classes sociais

http://www.grabois.org.br/portal/artigos/152879/2016-06-24/notas-sobre-o-marxismo-e-classes-sociais

 

Notas sobre o marxismo e o Estado burguês

http://www.grabois.org.br/portal/artigos/152998/2016-08-17/notas-sobre-o-marxismo-e-o-estado-burgues

 

A construção do conceito marxista do Estado

http://www.grabois.org.br/portal/autores/148598-39541/2015-05-18/a-construcao-do-conceito-marxista-do-estado

 

* Esta é a primeira parte do texto elaborado para mesa “História e Revolução” integrante do Simpósio Internacional “Os Rumos da História”,  promovido pelo Departamento de História da FFLCH-USP. Publicado no livro “Marxismo, história e revolução brasileira: encontros e desencontros”.

 

** Augusto C. Buonicore é historiador, presidente do Conselho Curador da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira: encontros e desencontros, Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas e Linhas Vermelhas: marxismo e os dilemas da revolução. Todos publicados pela Editora Anita Garibaldi.

 

Notas:

(1) MARX, K. e ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista, p. 64-65.

(2) Idem.

(3) CLAUDIN, Fernando de. Marx y la revolucion 1848, p.36.

(4) MARX, K. A burguesia e a contrarrevolução, p. 83.

(5) MARX, K. e ENGELS, F. Obras escolhidas, vol. 3, p.146.

(6) CLAUDIN, F. Marx y la revolucion 1848, p. 190.

(7) Idem, p. 192.

(8) Idem, p. 199.

(9) Idem, p. 232.

(10) SPILIMBERGO, J. E. A questão nacional em Marx, p. 72-73.

(11) Idem.

(12) LÊNIN, V. I. Duas táticas da social-democracia na revolução democrática, p. 14-15.

(13) LÊNIN, V. I. Duas táticas da social democracia na revolução democrática, p. 34-35.

(14) Idem, p.114.

(15) Idem.

(16) LUKÁCS, Idem, p. 41.

(17) GRAMSCI, Cadernos do Cárcere, vol. 5, p. 209-210.

(18) ENGELS, F. in Marx, Luta de classes em França, p.19.

(19) MARX, K. e ENGELS, F. Crítica do Programa de Gotha e Erfurt, p. 50.

(20) LUKÁCS, G. El asalto a la razon, p.45.

(21) ENGELS, F. As guerras camponesas na Alemanha, p. 17.

(22) LÊNIN, V. I. Obras Escolhidas, vol. 1, p. 519.

(23) GRAMSCI, A. Maquiavel, a política e o Estado moderno, p. 47-48.

 

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