Alice no país das maravilhas é um clássico da literatura, escrito por Lewis Carroll, que narra a fábula da menina Alice que deitada sobre a relva, e inquieta, vê o coelho branco falante, aflito com as horas no relógio, se penitenciando: “eu sou uma fraude”. Intrigada, ela o segue e se precipita no buraco da toca dele. Depara-se, então, com um lugar povoado por criaturas alegóricas e antropomórficas. Diante de um salão redondo e repleto de portas fechadas espia pela fresta da fechadura, que revela um jardim. Vê sobre a mesa a chave e um líquido. Bebendo-o ela encolhe e passa pela pequena porta, mas se esquece de que a chave ficara do outro lado.

Certamente como Alice, outra ‘Alice’, na sua jornada, se deixou ingenuamente guiar por seus sonhos. Ao adentrar o jardim do ‘Basalto’ é que ‘Alice’ realmente toma conhecimento dos indivíduos que habitam e querem comandar aquele país, e das situações inexoráveis advindas dos mexericos da despeitada Lagarta Aéssia, cachimbando narguilé, nas suas conversas e conselhos sediciosos. O Rato Ditanaro e as aves de rapina: Abastácia, Zérra, Surtey, Jucácá, Meigrelles (de prontidão) e outras tão terríveis a voar, que a menina não quisera amedrontar a gatinha, ao relatar suas histórias. Miguel, o Lagarto acostumado a receber ordens, imaginando Marcélia, a Lebre de Março, no seu chá eterno, na preocupação com a manteiga, fielmente escoltada pelo Chapeleiro Maluco, nas suas charadas, e, na companhia, ainda, do Caxinguelê dorminhoco. Dudunha, a Rainha de Copas, partidária e atroz, sempre exigindo cortar a cabeça de qualquer um e por qualquer motivo.

Alice se defronta com um terreno demarcado como um tabuleiro de xadrez, cheio de provações mascaradas do jogo. Essa literatura de travessia, na qual são evidenciadas as criaturas mais esdrúxulas e as situações mais questionadoras, se adapta perfeitamente aos homens de nosso tempo. Trazendóvisky, na Tribuna máxima, agindo de acordo com um dos passatempos de Dudunha, a rainha de Copas, que, além de requisitar execuções, gosta de croquet, No País das Maravilhas as bolas são ouriços vivos e os tacos são flamingos. A finalidade da regra seria que os flamingos acertassem as bolas, ou seja, os ouriços.

Contudo, Alice do país das maravilhas chega à mesma conclusão que ‘Alice’ do país das armadilhas, ao considerar o fato de que os flamingos (pernaltas, peraltas e de bico grande curvado) podem se voltar contra os jogadores. Os tais delatores. Igualmente pela tendência dos ouriços de sair pulando, esperando não serem acertados ou escaparem de alguma Lava Jato. Quando se sente ameaçado, o ouriço-cacheiro (do poder) enrola-se sobre si próprio, ocultando as partes desprotegidas do seu corpo, transformando-se numa bola espinhosa bastante complicada de penetrar. Assim, fogem os ouriços diante da iminência de serem evidenciados seus parasitas e suas patologias.

Os soldados serviçais da rainha Dudunha funcionam como arcos encaixados no campo do jogo, nas terras do croquet. Mas têm que parar de serem arcos cada vez que a rainha requisita uma execução a fim de arrastar a vítima até um lugar distante, de modo que, no fim do jogo, nessa história, os únicos jogadores que sobram são: a própria rainha Dudunha, junto com o rei (Globo) de ouro e Alice, para ser sacrificada naquele reich tirano. É por isso que o coelho branco, Mouro, insiste em manter ‘Alice’ no mundo subterrâneo das injúrias: quer ajudar a rainha a acusá-la de ter comido uma fatia do bolo. Aliás, recorde-se que a maior notoriedade do croquet foi sua única participação como modalidade olímpica durante os Jogos de 1900, em Paris. No país das armadilhas, coincidente com as Olimpíadas de 2016, o croquet se revela numa intensa modalidade dos bastidores políticos.

Maliciano, o rei de Copas, pastor pernicioso, silenciosamente perdoa muitas ovelhas condenadas quando a rainha não está olhando (quer mostrar sua imensa compaixão diante das coletas que recebe) e seus soldados humorizam, contudo, não obedecem as ordens. Ele sempre repete: “Se Dudunha é malvado, é meu malvado favorito”. Novamente a rainha sentencia ‘Alice’, agora, por defender Lulalá, o valete de copas ou o valente guerreiro, e abona uma visão conveniente da justiça: “sentença antes do veredito”. Submergida nesse mundo, em algum momento há um diálogo, no cume de uma árvore, entre Alice e o gato da Duquesa que ela salvara:

Alice – “Você pode me ajudar?”
Gato – “Sim, pois não.”
Alice – “Para onde vai essa estrada?”
Gato – “Para onde você quer ir?”
Alice – “Eu não sei, eu estou perdida”.
Gato – “Para quem não sabe para onde vai, qualquer caminho serve”.

Lewis Carroll já teria tido uma antevisão escrevendo em Alice no país das maravilhas: “Vejam só, tantas coisas estranhas tinham acontecido ultimamente que Alice começara a pensar que muito poucas coisas eram na verdade realmente impossíveis.” A Duquesa avisara acerca da criptografia: “Você não sabe muito, Alice. Isto é um fato”. Assim, todas as criaturas temem a rainha de Copas no país das maravilhas, exceto Alice, além da ‘Alice’ do país das armadilhas. Ambas sabem o caminho de retorno pra ‘casa’. ‘Alice’, essa segunda, volta na sua humildade, não precisa da chave que permanecera do outro lado da porta. Afinal, a primeira Alice havia ensinado: “Vocês não passam de um baralho de cartas!”

*Cristiane Lisita é jornalista, advogada, escritora. Pós-PhD pela Universidade de Coimbra.

Publicado em A Voz da Girafa.