Volto a janeiro de 2015, um mês depois da posse da presidenta Dilma Rousseff para seu segundo mandato. Estou numa reunião de análise de conjuntura na Fundação Perseu Abramo, no bairro da Vila Mariana, em São Paulo, onde participo como convidado. Essas reuniões quinzenais da FPA têm história, reúnem sua diretoria, conselheiros, pesquisadores, professores, analistas e personalidades com currículo de luta política no PT, nos movimentos sociais e em mandatos no Executivo e Legislativo, ladeados por outros da CUT e da direção do partido. É uma janela de observação do Brasil e do mundo.

Uma miniusina de produção de conteúdo sobre a conjuntura nacional e internacional. A sala tem simbologia. É ornamentada por um mosaico de cartazes ampliados de centenas de campanhas do PT, onde Lula aparece inúmeras vezes e em diferentes jornadas dos primórdios do partido, das décadas de 1980 e 1990. Ali, a par dos dados do presente, de olho no passado, busca-se o futuro.

A diretoria da Fundação decide convidar o então ministro do Planejamento, Nelson Barbosa, para um debate sobre os primeiros dias do governo e as expectativas. As festas de fim de ano não tinham sido digestas para os apoiadores de Dilma. Seu ministro da Fazenda era Joaquim Levy, uma indicação de que o novo governo seguiria a fórmula de Lula ao colocar um banqueiro, um homem do mercado, na condução das finanças. Porém, viriam do próprio Lula as primeiras críticas a Levy. “Ele discute tudo, mas faz o que quer, tivemos experiência com ele”, diria Lula a círculos fechados de colaboradores do seu Instituto.

Algo começa a não ir bem para a República do Brasil com a edição das Medidas Provisórias 663 e 664 no último dia do mandato anterior, cujo conteúdo surpreendeu a militância ao propor redução do auxílio-doença, aposentadoria por invalidez, auxílio-reclusão, pensão por morte, seguro-desemprego, abono social e seguro-defeso na véspera da nova posse. O movimento sindical que apoiou Dilma reagiu de imediato condenando as MPs e se perguntou por que os trabalhadores seriam os primeiros a pagar o pato. E iniciaram uma campanha contra aquelas medidas gerando uma confusão de comunicação. O que aconteceu?, perguntaram-se dirigentes e bases sindicais.

Foi o início de uma situação contraditória, quando os sindicatos apoiadores da reeleição de Dilma passaram rapidamente a criticá-la, transformando o então positivo em negativo em poucos dias. Vieram as declarações de reforma da Previdência e da desindexação do salário-mínimo, depois desmentidos, gerando ainda mais confusão sobre o que faria o governo. Meses depois, Carlos Gabas, ministro da Previdência, desafiava a direção nacional da CUT a se empenhar em uma reforma da Previdência. “Façamos nós a reforma, protegendo algumas conquistas, antes que ‘eles’ a façam e do modo deles, que será a destruição do regime geral para liberar mercado aos programas privados de aposentadorias vendidos pelos bancos.” Gabas ainda sonhava que o tucanato chegaria ao poder em uma próxima eleição, talvez em 2018. Mas, o “eles” chegaria muito antes do previsto.

Adeus, Lênin!

Uma situação surreal dominou uma das últimas reuniões de 2014 da FPA. Foi unânime entre os presentes que os vitoriosos estavam caídos e desorganizados e os derrotados estavam eufóricos e mais organizados. Esse primeiro sinal foi ignorado pelo novo governo. Meses depois, a então oposição acertou o eixo ao fazer uma crítica pela esquerda, de cobrar o prometido nas eleições e acusar o novo governo de estelionato eleitoral. Virou um mantra nos discursos e manifestações pelo impeachment.

A reunião da FPA abriria o ano e a presença do ministro do Planejamento Nelson Barbosa daria músculo ao debate. Até o local foi alterado; em vez de ser na sede, a reunião foi para um auditório de hotel. Nos momentos de espera da chegada do ministro as conversas eram sobre qual o papel que Barbosa desempenharia no novo governo. Havia uma visão de que Joaquim Levy seria o ministro do mercado e Barbosa o contraponto pelo lado dos trabalhadores. De fato, ele tinha um currículo de atuação a favor dos planos de inclusão social e de gestão das finanças voltados para resolver os conflitos sociais. Era o canal que os trabalhadores teriam no novo mandato. Mas esqueceram de avisar os russos.

Barbosa fez uma serena, mas determinada análise de que o governo estava iniciando no caminho certo e que Levy deveria sim dialogar com o mercado, que as MPs eram necessárias e que deveríamos nos preparar para a reforma da Previdência, para uma gestão que mudaria tudo em relação ao primeiro mandato. Fez questão também de distanciar seu nome e a sua história pessoal dos novos tempos. Quando questionado se faria o contraponto, foi bastante claro: “a equipe econômica é uma só”.

Rapidamente ficou bastante evidente que a presença do ministro não tinha a missão de debater linhas gerais do novo governo. Barbosa estava ali para convencer um segmento importante dos pensadores do partido e da esquerda de que um ajuste era necessário e viria.

A reação dos sindicalistas presentes no encontro foi de impulso, o tom de análises ganhou espaço de discurso contra o que ali se apresentava. Parecia assembleia. Recorri a uma comparação com o filme Adeus, Lênin! – uma comédia dramática alemã. “Dormi no dia da vitória do segundo turno, acordei agora e percebi que tudo mudou.” Repeti a analogia com o filme em dois outros fóruns de debates, mas a comparação virou farsa e, depois, tragédia. Os experts de economia lá presentes foram direto ao ponto. O ajuste fiscal vai gerar recessão, haverá redução da atividade econômica e da arrecadação, o desemprego virá rapidamente, os investimentos sumirão e o governo estará em perigo.

O curto-circuito

Menos de 40 dias depois veio a manifestação pelo impeachment em 15 de março, que reuniu centenas de milhares de homens brancos, cinquentões, empresários, com palavras de ordens chulas e toscas em um protesto que teve a sensação de milhões pelas ruas. A crítica do estelionato eleitoral ganhou densidade. Estabeleceu-se uma aliança judicial-midiática superior às forças dos próprios partidos de direita. Em contraposição, as forças progressistas saíram em defesa do governo Dilma com seguidas manifestações de rua, mas pesava na estratégia a própria dificuldade do governo de decidir e de se comunicar. Pesou profundamente a ausência de uma política de comunicação de massa de rádio e televisão, enquanto a atuação na blogosfera saiu de um ativismo vitorioso nos dois turnos eleitorais para uma dispersão total de produção de conteúdo.

Instalou-se um enorme curto-circuito entre o novo governo, seus antecessores e os movimentos populares. Foram produzidos três densos documentos com propostas econômicas para sair da crise, um da CUT, outro da Fundação Perseu Abramo e mais um do Fórum 21, que não foram considerados, gerando mais mídia negativa, de que “o PT queria mandar no governo”.

Um ano depois, um já ex-ministro avaliou que a principal causa da derrota foi que a oposição – que perdera as eleições presidenciais –, tendo Eduardo Cunha à frente da Câmara dos Deputados, isolou e bombardeou o novo governo sem dó, com ares de conspiração e golpismo.

Isso é verdade, mas falta explicar por que, de 54 milhões de votos, o apoio ao governo caiu para 8%. Agora falta a autocrítica.

Este artigo integra o livro Golpe 16 (224 págs.), organizado por Renato Rovai e editado por Glauco Faria, ambos do portal Fórum. É uma coletânea de textos produzidos por jornalistas e midiativistas – a história da consumação do atentado contra a democracia brasileira, contada no calor dos acontecimentos. A obra traz entrevista com a presidenta Dilma Rousseff e tem prefácio do ex-Presidente Lula. Para adquirir, clique aqui. (R$ 35 R$ 7 de frete)