A China já começou a refazer a globalização à sua imagem. O presidente Xi Jinping anunciou que o seu governo irá investir US$ 124 bilhões (o equivalente a R$ 418 bilhões) em uma nova iniciativa para interligar a China e o resto da Ásia a partes da Europa e da África através de infraestrutura física e digital. A iniciativa Cinturão e Rota (em inglês, One Belt One Road, ou Obor) teria como inspiração a histórica Rota da Seda, que interligava Oriente e Ocidente e contribuiu para o desenvolvimento de civilizações complexas em diversas partes da Eurásia. Apesar da alusão histórica, o Obor é um projeto moderno, idealizado em um mundo já interconectado, e é impulsionado por uma economia emergente que não esconde mais sua ambição de tornar-se uma potência global. Longe de ser uma simples plataforma de cooperação econômica transregional, é um ambicioso projeto geopolítico; caso venha a ser colocado em prática, terá efeito cascata em todo o mundo.

Em termos de escopo, o Obor é a iniciativa econômica internacional mais ambiciosa da China desde a fundação da República Popular. A plataforma giraria em torno de dois eixos: uma via terrestre (o “cinturão”), que se estenderia da China até o norte da Escandinávia; e um corredor marítimo (a “rota”), composto de rotas comerciais. No total, a iniciativa atravessaria cerca de setenta países na Ásia, na África e na Europa, englobando nada menos que um terço do PIB mundial e 65% da população do planeta. Estima-se que um quarto de todos os bens e serviços do mundo passariam pelo Obor, que promoveria investimentos maciços em transporte e energia, tais como pontes, portos, gasodutos e ferrovias.

Ainda não há um consenso acerca da viabilidade da plataforma. Circulam, no entanto, três interpretações gerais. A primeira, altamente otimista, é a de que a iniciativa poderá reconfigurar o comércio global e revolucionar as dinâmicas geopolíticas da Ásia e do seu entorno. Os otimistas defendem que as novas instituições de financiamento ao desenvolvimento, tais como o Banco Ásiatico de Investimento em Infraestrutura (AIIB) e o Novo Banco do Brics, representam fontes promissoras de financiamento para o Obor. Além disso, apostam na capacidade diplomática chinesa — respaldada pelo gigantesco portfólio do país em cooperação para o desenvolvimento — de superar visões conflituosas na região e colocar para escanteio as grandes potências com presença na Ásia, sobretudo os Estados Unidos. Algumas relações bilaterais entre potências regionais já passam por melhorias significativas. Pequim e Moscou, por exemplo, não se entendem tão bem desde a Aliança Sino-Soviética, dos anos 1950.

De acordo com a segunda interpretação, mais cética, a iniciativa enfrenta tantos desafios financeiros e políticos que, na prática, a plataforma não sairá do papel. Mesmo com a criação de novos fundos e o envolvimento de bancos multilaterais, o Obor demandaria uma quantia gigantesca: anualmente, entre US$ 2 trilhões e US$ 3 trilhões. E, mesmo que essa soma seja disponibilizada, não está claro se os países incluídos na plataforma direcionariam o financiamento para projetos previstos pela iniciativa. Além disso, o projeto engloba diversas zonas de conflito, dentre as quais o Afeganistão e a Síria, onde a introdução de infraestrutura, quando plausível, é altamente arriscada. No espaço marítimo, as relações entre a China e alguns dos seus vizinhos no Pacífico são marcadas por altas tensões e risco de conflito. Além disso, no plano geopolítico, a realização do Obor também depende da “boa vontade” de parceiros que historicamente veem a China com desconfiança, inclusive a Índia (que decidiu não participar do fórum) e a Rússia.

Uma terceira via é a ideia de que o Obor é excessivamente ambicioso e, portanto, jamais será aplicado na íntegra; componentes-chave, sim, serão realizados, com efeitos que se estenderão bem além da Grande Eurásia. A julgar pela cúpula que organizada em maio em Pequim, esse é o cenário mais provável. O Fórum Internacional sobre a Nova Rota da Seda conta com dezenas de chefes de Estado de ao menos três continentes, além dos líderes de organizações multilaterais de peso, como a ONU, o Banco Mundial e o FMI. O nível de interesse no Obor aumentou desde que o presidente Trump retirou os Estados Unidos da Parceria Transpacífica. Pequim não perdeu tempo em promover seus próprios arranjos de cooperação. Mais de quarenta países já assinaram acordos de cooperação com a China prevendo investimentos alinhados com o Obor. Embora a Índia tenha resolvido se ausentar do fórum, os Estados Unidos enviaram representante, e o Japão – em que pese o conflito com a China acerca de ilhas no Pacífico – marcou presença com uma delegação robusta.

Embora o desfecho da iniciativa ainda seja incerto, três aspectos do Obor já estão claros. O primeiro é que, longe de ser uma “mera” iniciativa comercial, a plataforma é um hercúleo projeto geopolítico, cujo peso aumenta de forma significativa com o fim da Parceria Transatlântica. Em segundo lugar, mesmo que ele seja colocado em prática apenas parcialmente, teria reflexos bem além da Eurásia, inclusive para a América Latina. A reconfiguração de fluxos comerciais e de investimentos, a criação de novos mercados, as mudanças nos alinhamentos políticos e o intercâmbio cultural que o Obor fomentaria trariam novas oportunidades. Por outro lado, algumas portas também se fechariam, sobretudo para os países que optam por permanecer de fora — não apenas do cinturão e da rota em si, mas também dos debates em torno da plataforma e do seu modelo de desenvolvimento. Não é à toa que cerca de vinte países latino-americanos também enviaram representantes ao fórum.

A China já é o principal parceiro comercial do Brasil. O Obor, embora tenha origem no país asiático, ultrapassa os limites do continente. No mínimo, é fundamental que atores brasileiros acompanhem de perto os debates e as iniciativas associadas. Mas um engajamento mais institucionalizado e estratégico daria ainda mais peso a essa participação. Uma comissão interministerial, com representantes de diversos órgãos que lidam com planejamento econômico e de política externa, ajudaria a garantir a presença brasileira e a fortalecer a participação substantiva nos principais debates acerca do Obor. Por meio do Novo Banco do Brics ou se vier a tornar-se sócio do AIIB, o Brasil também deve participar dos debates normativos acerca da iniciativa e do modelo de desenvolvimento que ela busca promover. Da mesma forma, a sociedade civil deve engajar-se nas discussões, fomentando pesquisas e debates sobre o assunto através do setor privado, de centros de pesquisa e de ONGs. Em um mundo cada vez mais multipolar, o Brasil não pode se dar ao luxo de ficar de fora das principais discussões e iniciativas geopolíticas.

*Adriana Erthal Abdenur é pesquisadora do Instituto Igarapé; e Robert Muggah é diretor de pesquisa do Instituto Igarapé.