Um Partido Comunista que não é comunista. Ou pelo menos não totalmente comunista. Foi assim que o Comitê Executivo da Internacional Comunista definiu, no final de 1922, o Partido Comunista do Brasil, então com a sigla PCB – constatação que pautou sua militância por muito tempo. O desafio era dar forma à inspiração da Revolução Russa, centrada em uma direção capaz de conduzir as ações dos comunistas de maneira segura – missão complexa especialmente nos tormentosos anos do final do século XIX e das primeiras décadas do século XX. As dificuldades enfrentadas naquele período levaram o PCB a se inclinar para posições nem sempre afinadas com as diretrizes da Internacional Comunista.

Houve uma adaptação mecânica do que ocorrera na Rússia em 1917, o que fez os comunistas brasileiros definirem a tática revolucionária em duas etapas: a primeira como desdobramento das duas revoltas tenentistas — em 1922 e 1924 — e a segunda com o proletariado assumindo o comando da revolução. Seria uma frente com o proletariado como coadjuvante na primeira etapa e protagonista na segunda – uma adaptação do esquema agrarismo versus industrialismo; um aliado do imperialismo inglês e outro do imperialismo norte-americano. Cumpria superar o “capitalismo agrário semifeudal”, de acordo com o 2º Congresso do PCB, realizado em 1924, para em seguida enfrentar o “capitalismo industrial moderno”.

Essa tática seria revista no 3º Congresso, realizado na virada de 1928 para 1929, assimilando as teses do 6º Congresso da Internacional Comunista, ocorrido entre 17 de julho e 1º de setembro de 1928. O “caráter da revolução brasileira” era uma questão pendente como decorrência de insuficiências de natureza ideológica e teórica, de acordo com Octávio Brandão, um dos principais teóricos comunistas daquele período. Em seguida, o PCB, que redefinira o Bloco Operário criado em 1927 como Bloco Operário e Camponês (BOC), convidou Luiz Carlos Prestes para ser candidato a presidente da República nas eleições de 1930; diante da recusa do já lendário comandante da “Coluna Invicta”, a opção foi a candidatura de Minervino de Oliveira.

Mesmo com todas as debilidades, o PCB chegara ao final da década de 1920 como força política nacional considerável. Nesse período, os comunistas se pautaram basicamente pela conjuntura brasileira, mesmo distante do tenentismo num primeiro momento. Mas é possível que tenham considerado o apelo da Internacional Comunista de 1923, conclamando operários e camponeses da América do Sul para que se preparassem diante do conflito interimperialista no continente no contexto da “ação revolucionária mundial”. De acordo com Octávio Brandão, os comunistas foram sectários, passivos e negativos diante da “insurreição de Copacabana”, mas a partir de 1924 efetivaram alianças com os revoltosos.

Cumpre lembrar que até então não existia o birô sul-americano da Internacional Comunista, instituído em 1926; e os comunistas brasileiros se inspiravam no exemplo da Revolução de Outubro, interpretando a realidade nacional por esse viés político. A aproximação com a Internacional Comunista só ocorreria no 5º Congresso, em 1924, quando o PCB enviou o delegado Rodolfo Coutinho e Astrojildo Pereira, mesmo ausente, foi eleito para a Comissão de Controle do Comitê Executivo. O PCB passou a ser reconhecido como membro efetivo daquela organização. Antes, no 4º Congresso, realizado em julho de 1922, o representante brasileiro, Antônio Bernardo Canellas, teve uma atuação conturbada.

Contudo, a 1ª Conferência Comunista da América Latina, realizada em 1929 na cidade de Buenos Aires (Argentina), constatou que o Secretariado sul-americano – criado como órgão para intermediar as relações dos comunistas locais com a Internacional Comunista e coordenar o trabalho revolucionário na região – preocupou-se tarde com a situação e, em alguns aspectos, comportou-se de maneira conflituosa com alguns partidos, inclusive o brasileiro.

O mundo capitalista vivia o auge da sua primeira grande crise e o fascismo despontava no horizonte. A Internacional Comunista entendia que a tática mais acertada naquelas circunstâncias seriam políticas limitadas ao campo do proletariado, mesmo mantendo a ideia da revolução em duas etapas. No Brasil, os comunistas adotaram uma concepção “democrático pequeno-burguesa”, de acordo com a Resolução da Internacional Comunista sobre a questão brasileira, publicada no jornal A Classe Operária de 17 de abril de 1930. O PCB estaria sendo orientado por políticas “menchevista, antileninista e antimarxista”.

Como consequência, ao proletariado cabia um papel secundário, quando ele deveria ser a garantia essencial de que o poder seria conquistado e mantido, exercendo sua hegemonia na revolução democrático-burguesa. Mesmo as resoluções do 3º Congresso foram classificadas de “oportunistas” por defenderem a teoria de “terceira revolta”, que mantinham os comunistas e o BOC na expectativa de um novo levante tenentista. O PCB assumiu essa orientação, assim como os demais partidos comunistas da América Latina, na Conferência de Buenos Aires. O resultado foi o afastamento do tenentismo, e consequentemente do processo da Revolução de 1930.

Segundo Maurício Grabois e João Amazonas, no documento Cinquenta anos de luta, os comunistas adotaram “posições sectárias” e se afastaram da situação real, “aplicando mecanicamente as teses da Internacional Comunista”. As decisões de 1929 teriam outras condicionantes, segundo Grabois e Amazonas, como o afastamento das grandes massas, deixando de “influir sobre elas e se tornar uma corrente política de projeção nacional”. Os comunistas não souberam “disputar, no decorrer da luta, a liderança daquele movimento com os agrupamentos burgueses e pequeno-burgueses”, comentaram.

De acordo com eles, tentaram “combater a influência nociva das ideias pequeno-burguesas”, mas enveredaram “por um caminho errôneo”, adotando a “proletarização” com uma “campanha contra os elementos de origem pequeno-burguesa e em favor de um pretenso modo de vida proletário”, vendo “como causa de sua estagnação os indivíduos e não as concepções estranhas”.

Esse debate voltaria à tona quando o PCB conquistou a legalidade, em 1945, conforme revelaram as Teses publicadas no começo de 1947, para o 4º Congresso, que, previsto para maio daquele ano, seria adiado em consequência da cassação do registro do Partido e se realizou somente em 1954. Os quadros do PCB deveriam beber na fonte inesgotável dos clássicos do marxismo-leninismo e na obra História do Partido Comunista da União Soviética — Prestes, no seu “Informe” ao Comitê Nacional da reunião de agosto de 1945, havia dito que este era o livro de que mais os comunistas necessitavam — para a elevação do nível teórico e para sua têmpera política, recomendou o documento.

No Boletim de Debate, publicado no jornal A Classe Operária, Maurício Grabois escreveu que essa luta vinha de 1929, quando os comunistas começaram, tardiamente, a “proletarização”. “A história do Partido se identifica com a própria luta do proletariado e do povo brasileiro nestes últimos vinte e cinco anos pelo progresso e pela democracia e, especialmente, pela solução dos grandes problemas da revolução democrático-burguesa”, comentou Grabois, que foi protagonista daquela trajetória, complementando que o Partido, desde a sua fundação até 1929, inclusive durante a realização do seu 3º Congresso, sofrera influências pequeno-burguesas e não lutara contra elas.

Mesmo depois de 1929, disse, o PCB andou por caminhos tortuosos. “Não se pode também negar que durante os anos 1934 e 1935 predominavam o golpismo, o aventureirismo e a provocação na direção do Partido, apesar de muito se falar então em luta contra as influências estranhas. Ainda no período entre 1936 e 1940, esteve o nosso Partido sob uma orientação oportunista”, detalhou. O desligamento da massa, em sua avaliação, era o resultado da influência das “ideologias estranhas”, como o sectarismo, o oportunismo, o aventureirismo, e fundamentalmente a incompreensão das tarefas do proletariado na revolução brasileira.

Para ele, essa debilidade facilitava a subida aos postos da direção de “golpistas, esquerdistas extremados e, entre eles, alguns aventureiros facilmente transformáveis em provocadores policiais”. Da sua fundação em 1922 até 1928, os comunistas tinham uma espécie de “partido operário radical”, sem teoria revolucionária, sem perspectivas políticas, dominado pela ideologia pequeno-burguesa, com “as relações mais ou menos secretas com os dirigentes tenentistas”, agulhou ele. As Teses, comentou, mostravam que a crise do capitalismo trouxera “rápida diferenciação da pequena burguesia no Brasil e determinou séria crise interna em nosso Partido que, para não desaparecer no charco imperialista a que foram ter em sua quase totalidade de revolucionários pequeno-burgueses do tenentismo, precisou iniciar vigorosa luta pela sua efetiva proletarização”.

Só na 2ª Conferência Nacional, realizada em 1943, conhecida como “Conferência da Mantiqueira”, e que representou “um marco histórico na luta contra as ideologias estranhas” — ainda forte naquele período de legalidade, de acordo com Grabois —, o Partido começou o processo efetivo de ligação com as massas. Foi quando a União Nacional dos Estudantes (UNE) ganhou força e a Liga de Defesa Nacional, fundada em 1918, ressurgiu com forte presença comunista. Uma das tarefas prioritárias seria a mobilização popular a favor da entrada do Brasil na guerra contra o Eixo nazi-fascista (Alemanha-Itália-Japão), a Segunda Guerra Mundial, especialmente com a formação da Força Expedicionária Brasileira (FEB), que lutaria na Itália.

A 2ª Conferência, que homenageou o líder soviético Josef Stálin como a principal referência das forças aliadas contra o Eixo, conclamou a unidade nacional na defesa da “guerra de libertação dos povos nacionalmente oprimidos pelo fascismo”, “guerra de preservação da liberdade dos povos contra a ameaça de dominação fascista”, “guerra de todos os povos pelo esmagamento do fascismo, sob o exemplo da União Soviética dirigida por Stálin”. E avaliou como importante vitória a reviravolta na política exterior do governo brasileiro, em 1942, declarando guerra ao nazi-fascismo, resultado de poderosa pressão das massas, e indicando o caminho de todo apoio à abertura da segunda frente de batalha no conflito mundial — até 1944, a União Soviética, contando somente com suas forças, travaria uma batalha épica na frente oriental.

Grabois, embora protagonista da trajetória que analisou, olhava aquele período ainda recente historicamente com lentes que limitavam o alcance necessário para uma avaliação mais apurada, só possível com o decorrer de um maior espaço de tempo. Com todas as inegáveis debilidades, cumpre enfatizar o esforço dos comunistas brasileiros daquele período para darem consequência ao curso que o marxismo percorreu desde a chegada das ideias de Karl Marx na América Latina, no final século XIX. Só na década de 1920, com a fundação dos partidos comunistas, essa concepção teórica começou a ganhar forma política, especialmente com a constituição do Secretariado Sul-Americano da Internacional Comunista.

Caio Prado Junior, em sua obra Revolução Brasileira, afirmou que desde 1926 essa organização preconizara a política de frentes populares, tomando como exemplo a experiência da China, ideia que daria forma à Aliança Nacional Libertadora (ALN) — que comandou o Levante de 1935 — e à “união nacional”, formulação do PCB defendida até a cassação dos seus mandatos parlamentares, em 1948. A política de frentes populares ficou melhor definida no 7º Congresso da Internacional Comunista, realizado em agosto de 1935, quando George Dimitrov apresentou o seu célebre Informe.

De acordo com sua formulação, o capitalismo, diante da grave crise que enfrentava, precisava do fascismo para resolver seus problemas. E a principal ação seria “atalhar” o crescimento das forças revolucionárias, com sua destruição, e tomar de assalto militar a União Soviética, o baluarte da revolução. A luta antifascista, segundo o relatório de Dimitrov, era abrangente e exigia um amplo espectro de forças, uma ferrenha batalha contra a ideologia do fascismo que, pela gravidade da crise, exercia forte influência nas massas.

O diagnóstico se revelou preciso, inclusive no Brasil; o golpe de 1937 foi uma guinada do governo do presidente Getúlio Vargas à direita, se aproximando ideologicamente do Eixo. Com o protagonismo da União Soviética no teatro da guerra e a formação dos “Aliados”, houve a reviravolta na política exterior. Quando os canhões silenciaram fogo na Europa, em 1945, os comunistas despontaram como poderosa força moral e política em quase todo o mundo, inclusive no Brasil. As bandeiras vermelhas que tremularam a cada lance da guerra foram importantes para a tática do PCB de unir o país contra o que restou de ameaça nazi-fascista e fazer avançar a democracia.

Como vítimas principais da barbárie fascista do Estado Novo, os comunistas sabiam que as boas relações do Brasil com a União Soviética seriam determinantes para a sua ação política. Logo após o estabelecimento de relações diplomáticas entre os dois países, em 2 de abril de 1945, Luiz Carlos Prestes, ainda na prisão, telegrafou a Getúlio Vargas cumprimentando-o e cobrando anistia aos presos políticos.

Maurício Grabois também liderou um telegrama ao presidente da República, com várias assinaturas, dizendo que a aproximação do Brasil com a União Soviética contribuía “eficazmente para elevar o prestígio internacional da nossa pátria e ampliar as condições para o progresso e efetiva democratização do nosso país”. Era uma medida que concretizava os “anseios longamente alimentados pelo povo brasileiro, já irmanado com as armas soviéticas na luta pelo aniquilamento do nazi-fascismo, através da gloriosa Força Expedicionária Brasileira”.

Prestes seria libertado em 18 de abril de 1945, segundo o jornalista Murilo Melo Filho, no livro Testemunho político, como cumprimento de parte de um pacote negociado pelo Brasil com a União Soviética para o restabelecimento das relações diplomáticas. O PCB, com sua política de “união nacional”, intensificou a campanha para democratizar o país, especialmente após a conquista da legalidade, condição que julgava diretamente ligada ao progresso das relações entre as potências.

Essa posição foi oficializada no “Pleno da Vitória”, como ficou conhecida a primeira reunião legal da direção nacional depois de vinte e três anos de vida clandestina, realizada entre 7 e 12 de agosto e de 1945. Falando no encerramento da reunião, Prestes evocou os horrores do fascismo, mostrando como foi importante a colaboração das demais potências com a União Soviética, que teve como consequência no Brasil a politização do povo, um fator importante na luta pelo afastamento dos fascistas de posições-chave do governo.

Naquele momento em que os comunistas saíam para a vida legal – ao ar puro da livre discussão, ao sol meridiano da crítica e da autocrítica, disse Prestes –, os comunistas deveriam ter em conta a importância do Brasil no continente e no mundo. Por sua grandeza geográfica, por suas riquezas potenciais, por sua importância política como fator decisivo na luta pela consolidação da paz no período de desenvolvimento pacífico daquele pós-guerra. “Não é atitude patrioteira afirmar que o Brasil pode ser colocado ao lado das grandes potências do mundo. Se nos anos de 1937 a 1942 tivéssemos seguido outro caminho, se os aliancistas não tivessem sido derrotados em 1935, outra seria nossa situação hoje, e poderíamos estar ocupando o lugar de sexta potência, ao lado da União Soviética, dos Estados Unidos, da China, da Inglaterra e da França”, afirmou.

Em meados de 1942, Prestes recebeu a visita do deputado comunista cubano Blas Roca, que no dia seguinte visitaria o ministro das Relações Exteriores, Osvaldo Aranha, e lhe pediria para dizer a Vargas que se o governo fosse ao encontro dos anseios do povo e se colocasse à sua frente na luta contra o nazismo, declarando imediatamente guerra ao Eixo, seu nome iria para a história ao lado dos de Franklin Delano Roosevelt, Josef Stálin e Winston Churchill. “Mas o senhor Getúlio Vargas não quis seguir esse caminho. Sabemos o quanto custou ao nosso povo, povo antifascista, chegar à guerra contra o nazismo”, lamentou.

A existência legal do Partido Comunista, segundo ele, era uma garantia para a democratização, um poderoso esteio da democracia em todo o continente. “Não era por acaso que em Cuba, no México, no Chile, pediam a nossa liberdade, a liberdade dos presos brasileiros antifascistas, a liberdade do Partido Comunista do Brasil”, observou. “Não era por simples sentimentalismo que se fazia isso; os povos irmãos compreendiam a necessidade da existência da democracia no Brasil. Não pode haver democracia onde não existe o Partido Comunista legal. O Partido Comunista é, hoje, um fator de paz, de ordem, de tranquilidade, de evolução pacífica pela democracia”, enfatizou.

Prestes defendia a existência de um Partido Comunista poderoso no Brasil, como existia na União Soviética. Em visita ao escritor Monteiro Lobato, ele falou do assunto – registrado pelo jornal Tribuna Popular. “Capitão, que de melhor e mais útil o senhor viu na União Soviética, que mais lhe impressionou?”, indagou o escritor. “Vi muita coisa, mas de uma me convenci: o quanto é difícil construir o socialismo! E mais: que isso só é possível com um poderoso instrumento — o partido comunista bolchevista”, respondeu. Lobato quis saber se no Brasil era possível organizar um “instrumento” semelhante. “Temos todas as condições para construir em nosso país um poderoso Partido Comunista”, disse. “É preciso, é preciso, capitão!”, respondeu o escritor.

A União Soviética era, naquele momento, a mais destacada referência para os comunistas brasileiros, segundo disse João Amazonas num ato de comemoração do 28º aniversário da Revolução Russa, realizado na noite de 7 de novembro de 1945. Ali estava se comemorando uma data muito cara ao coração de todos os trabalhadores de todo o mundo e à humanidade em geral, afirmou. Segundo ele, o Partido “sempre a comemorara, nos heroicos anos da ilegalidade, e os comunistas jamais deixaram de render homenagem à grande data mesmo quando se achavam lançados pela reação fascista nas suas imundas cadeias”.

Amazonas lembrou que a reação fascista escolhera justamente o dia 7 de novembro, aniversário da Revolução, para conduzir Prestes brutalmente ao nefasto Tribunal de Segurança Nacional, em 1940. “Mas Luiz Carlos Prestes reafirmou-se na sua grandeza: perante o nefasto Tribunal, saudou os imortais povos soviéticos, prestou sentida e profunda homenagem à Revolução Socialista, dando-nos, assim, com sua corajosa atitude, um exemplo que jamais será esquecido e que os comunistas sempre terão presente em sua luta contra o nazi-fascismo, pela democracia, progresso e bem-estar da pátria e do povo brasileiros”, discursou.

No mesmo ato, Grabois afirmou que comemoração como aquela estava ocorrendo em todos os países onde existiam correntes verdadeiramente democráticas, porque a humanidade devia a sua liberdade à vitória esmagadora das Nações Unidas sobre Hitler, das quais a União Soviética fora durante a guerra, e continuava sendo na paz, um dos mais decisivos esteios. “As forças reacionárias podem dizer cinicamente o que bem entendem, mas a verdade é que aqui se homenageia os povos soviéticos que varreram da sua pátria a tirania que sobre ela pesava e que, esmagando militarmente o nazi-fascismo, varreram da face da terra a tirania que pretendia escravizar para sempre toda a humanidade”, acrescentou.

A ideia de um Partido Comunista forte para fortalecer a democracia, contudo, esbarraria na correlação política que começou a se formar tão logo a guerra terminou. Comentando a Revolução Russa em artigo na Tribuna Popular de 10 de novembro de 1945, Grabois escreveu que os jornais reacionários brasileiros procuravam desmoralizar os comunistas, chamando-os de “bolcheviques”. “Não poderia haver elogio maior para um comunista do que chamá-lo de bolchevique, nome dado ao membro de um partido que conseguiu realizar o socialismo na sexta parte do mundo e contribuiu decisivamente para o aniquilamento militar do fascismo, trazendo para a humanidade a certeza de melhores dias. O bolchevique é um exemplo para todos os comunistas do mundo inteiro”, comentou.

Era a primeira vez que se comemorava livremente aquela data no Brasil. “Consideramos a queda do czarismo na antiga Rússia como um fato histórico que interessa a todos os povos progressistas, como interessa a Grande Revolução Francesa, que significou um grande passo no caminho do progresso da humanidade. É, portanto, com o mais profundo sentimento democrático que saudamos o 7 de novembro, justamente no momento que o povo brasileiro está lutando corajosamente para garantir a democracia em nossa pátria contra os manejos dos remanescentes do fascismo, que tudo fazem para impedir a marcha do país no sentido de sua democratização”, escreveu.

Poucos dias antes, um golpe militar, desfechado em 29 de outubro, depusera o presidente Vargas e atacara o Partido, 48 horas após a concessão do seu registro provisório pelo Tribunal Superior Eleitoral. Os comunistas continuaram na legalidade, mas começava ali o recrudescimento da ofensiva da direita, o que fez o PCB manter discreta proximidade com a embaixada soviética, na linha da “união nacional” para isolar os “restos fascistas” existentes no governo. O embaixador soviético no Brasil, Iakov Zakarovitch Suritz — a troca de embaixadores só ocorreu no final de 1945 —, por exemplo, foi anunciado com uma pequena nota na Tribuna Popular comentando a notícia de uma rádio de Moscou e com discretas reportagens.

Nenhum membro do Partido compôs a Comissão de Recepção ao embaixador, apesar da importância que a União Soviética atribuiu ao posto, de acordo com uma agência de notícias de Moscou. A nota dizia: “O generalíssimo Stálin designou o senhor Iakov Zakarovitch Suritz, veterano diplomata soviético, como primeiro embaixador da União Soviética no Brasil. A nomeação do senhor Suritz para a embaixada do Rio de Janeiro indica claramente quão importante Stálin considera esse posto no Brasil. O senhor Suritz é um dos poucos diplomatas soviéticos da velha guarda, tendo ele entrado para o serviço exterior russo pouco depois da Revolução.”

Em 25 de março de 1946, a Comissão Executiva do PCB reuniu-se e divulgou uma nota denunciando a existência evidente de um “plano organizado” contra a marcha ascendente da democracia, mais particularmente contra os comunistas. A situação mundial explicava em parte os ataques, uma diretiva dos “elementos mais reacionários do capital financeiro americano e inglês”, que buscavam “mais uma vez uma saída guerreira” diante do “ascenso da democracia em todo o mundo, com o prestígio crescente da União Soviética”.

A cassação do registro e dos mandatos do PCB, em 1947 e 1948, respectivamente, azedou de vez a convivência com o governo do general Eurico Gaspar Dutra, eleito em 1945. Ainda em 1947, as relações diplomáticas com a União Soviética seriam rompidas, quando o país se viu envolvido em uma polêmica decorrente dos rumos que a situação internacional tomava após a morte do presidente norte-americano Franklin Delano Roosevelt. Os Estados Unidos usaram o Brasil, que pleiteava um lugar permanente no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), em suas intrigas internacionais.

A pressão da direita fez o PCB ir para o esquerdismo, com uma retórica de defesa enfática da União Soviética. As palavras de Stálin serviam de referência em meio ao vendaval de informações e contrainformações que rodava no mundo. Na defesa de Prestes, violentamente atacado, por exemplo, Grabois escreveu no jornal Voz Operária que os comunistas brasileiros “assumiram o compromisso de que jamais faríamos guerra à gloriosa União Soviética, ao mesmo tempo em que também se comprometeram, caso os ingentes esforços que atualmente realizam os povos pela paz não pudessem evitar o desencadeamento de uma nova guerra imperialista, tudo fazer para transformar essa guerra imperialista em guerra de libertação nacional”.

Nessa época, os comunistas brasileiros procuravam uma sintonia mais precisa com o mundo socialista. Em abril de 1950, João Amazonas foi enviado ao 9º Congresso do Partido Comunista da Tchecoslováquia. Lá, além de saudar o evento em nome de Prestes e dos comunistas brasileiros, ele fez um breve comentário sobre a conjuntura do Brasil e retomou o contato com os soviéticos. Para o PCB, só a União Soviética, que saíra da guerra ainda mais poderosa e fora reforçada com a Revolução Chinesa, poderia evitar a catástrofe de uma nova guerra mundial.

Seguindo aquela tendência, o Partido assumiu com entusiasmo a campanha contra a bomba atômica e em defesa da paz. O Congresso Mundial dos Partidários da Paz, reunido em Paris em 1949, recomendou a organização, em cada país, de comitês nacionais. O movimento ganhou força quando, em março de 1950, o comitê permanente do Congresso Mundial dos Partidários da Paz, reunido em Estocolmo, lançou um apelo pela proibição da bomba atômica com uma campanha de assinaturas em sua defesa. Os comunistas brasileiros, que denunciaram a intenção do governo de enviar tropas à Guerra da Coreia, conseguiram mais de 4,2 milhões de assinaturas.

Os contatos de Amazonas permitiram que Diógenes Arruda Câmara participasse do 19º Congresso do Partido Comunista (bolchevique) da União Soviética — que mudou o nome para Partido Comunista da União Soviética (PCUS) —, realizado em outubro de 1952. Segundo Arruda, Stálin foi muito receptivo. “O camarada Stálin tinha bastante carinho pelo nosso Partido e nos ajudou do ponto de vista teórico”, afirmou. Os comunistas brasileiros estavam discutindo o Programa que seria aprovado no 4º Congresso do PCB, realizado em 1954.

Arruda voltou convicto de que, com a mudança de rumo no mundo, o PCB deveria se preparar melhor. O Brasil estaria, de acordo com as análises de Stálin, no epicentro da crescente tempestade política mundial e os comunistas brasileiros deveriam se preparar à altura. Com esse objetivo, o Partido começou a enviar grupos de dirigentes e militantes para cursos intensivos de marxismo-leninismo em Moscou. Esse intercâmbio foi muito valorizado pelo PCB, uma vez que as informações sobre a pátria do socialismo chegavam ao Brasil com dificuldades.

Quando a terceira turma estava na União Soviética, estourou a bomba do 20º Congresso PCUS, que provocaria abalos profundos no movimento comunista mundial. No Brasil, criaram-se dois campos: um, ligado ao Partido Comunista do Brasil reorganizado, que assumiria a sigla PCdoB e se afastaria da órbita soviética; e outro, formado com o surgimento do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que se manteve aliado às novas teses do PCUS. Apesar das acirradas divergências entre as duas organizações, o novo PCB, tido pelo PCdoB como revisionista, conservou em sua trajetória aspectos da teoria e da prática comunista, ao mesmo tempo em que estreitou seus vínculos com a União Soviética — inclusive prosseguindo com o envio de integrantes para cursos naquele país.

Para o PCdoB, contudo, o 20º Congresso reviu princípios do marxismo-leninismo, fazendo do PCUS um instrumento político sem viés revolucionário. Consequentemente, quem ficou nesse campo se alinhou com o revisionismo. Na crise, uma prolífica publicação de documentos mostrou o abismo que se formara entre a China e a União Soviética. Na mesma margem ficaram o Partido Comunista da China (PCCh), o Partido do Trabalho da Albânia (PTA) e o PCdoB. O estudo da “guerra popular” — tida como um caminho revolucionário — passou a ser reforçado e se transformaria em prática quando veio o golpe militar de 1964. A Guerrilha do Araguaia foi o auge dessa experiência.

Com a débâcle do bloco soviético e da Albânia, nos anos 1989 a 1991, o PCdoB se voltou para uma análise histórica da experiência socialista. No seu 8º Congresso, realizado em 1992, João Amazonas conclamou a militância a enfrentar a crise do marxismo e do socialismo. O Congresso concluiu que os comunistas da União Soviética, com Stálin na liderança, não haviam respondido à altura, na elaboração teórica, à evolução do socialismo. Houve uma estagnação no desenvolvimento do marxismo, constatou-se. Amazonas, com sua experiência e vasto conhecimento teórico, liderou aquele exame clínico do socialismo e indicou a importância de se ultrapassar a fronteira do 20º Congresso do PCUS para ter a devida compreensão da crise.

O PCdoB fez um amplo balanço das conquistas da Revolução Russa de 1917 e indicou que ela – embora o novo sistema não tivesse ainda alcançado o nível de desenvolvimento econômico dos grandes países capitalistas – demonstrou inequívoca superioridade no equacionamento e na solução dos problemas angustiantes com que se defronta a humanidade. A União Soviética havia avançado séculos na luta por um mundo melhor, avaliou. O Partido também passou em revista o período revisionista iniciado em fins da década de 1950 e começo da de 1960, avaliando que uma tendência antissocialista, de fundo liberal-burguês, assumira o comando do país dos sovietes.

Sobre Stálin, o PCdoB concluiu que ele, como principal dirigente do PCUS e teórico marxista-leninista, teve responsabilidade no ocorrido. Não deixou cair a bandeira revolucionária, mas revelou deficiências, cometeu erros — alguns graves —, equivocou-se em questões importantes da luta de classes. Particularmente no fim da vida, Stálin exagerou seu papel de dirigente máximo. Caiu no subjetivismo e, de certo modo, no voluntarismo. Permitiu o culto à sua personalidade que conduziu à subestimação do PCUS. O PCdoB também constatou que as debilidades ideológicas no enfrentamento com os revisionistas, em 1956-1957 – quando toda a velha guarda bolchevique tinha deixado se envolver nas maquinações de Kruschev –, demonstravam que Stálin não dera atenção suficiente, em especial a partir da década de 1940, à formação leninista e à luta ideológica.

O Partido afirmou ainda que a tese de Stálin de quanto mais avança a construção do socialismo, maior é o acirramento da luta de classes mostrou-se equivocada. Conduziu a repressões continuadas e possivelmente desnecessárias, com repercussão negativa na credibilidade do regime. Dificultou o fortalecimento da legalidade democrática e socialista. Ressalvou, entretanto, que os ataques a Stálin eram um artifício para manifestar oposição a certos conceitos básicos do socialismo. O PCdoB concluiu que avaliava a figura de Stálin no plano histórico e que não era stalinista nem tampouco antisstalinista.

O 8º Congresso chegou à crise do marxismo do tempo de Vladimir Lênin, o líder da Revolução Russa, para fazer um paralelo com aquela situação soviética. De acordo com a Resolução aprovada, seria necessário um esforço idêntico para o desenvolvimento da teoria revolucionária. E o ponto de partida deveria ser a reafirmação da identidade dos comunistas. Amazonas sistematizou, no Congresso, o que acumulara em suas pesquisas e prosseguiu nesse estudo enquanto esteve à frente do PCdoB, dando base à formulação do Programa Socialista, aprovado na 8ª Conferência em 1995, centrado na tese de que não existe modelo de socialismo. Começava, no processo do 8º Congresso e da 8ª Conferência, uma nova compreensão do PCdoB sobre a luta pelo socialismo.

Osvaldo Bertolino é jornalista, escritor e pesquisador da Fundação Maurício Grabois