Afinal, as grandes empresas de mídia esmeram-se em produzir fake news – Globo, Folha, Veja, um reino de inventores de fatos, estampados em corpo gigante na capa e desmentidos na página 22 do segundo caderno. Quando acontece. Antigamente corria a piada de que os grandes jornais mentiam até nos horários de cinema. Compulsão. O uso do cachimbo entorta a boca.

Recordar é viver. Nos anos 70, um jornal paulistano, daqueles impressos com sangue, inventou uma estória de arrepiar. O bebê-diabo teria nascido em São Bernardo do Campo. Calma, leitor assombrado, não era esse que vocês estão pensando, aquele lá do ABC é outro, nasceu em outro lugar. O rebento, com chifres, rabo e coloração rubra, teria fugido da maternidade e fora visto saltando sobre os telhados. No mês seguinte, o jornal noticiava que havia chegado ao outro lado da metrópole, assombrando os habitantes de Osasco, no lado oeste da Grande São Paulo.

 

Bebê-diabo: tempos inocentes perto do que estava por vir (Foto: Reprodução )

Nos anos 90, foi a vez do ET de Varginha. Aparentemente desabado naquela cidade mineira, vagara por vários cantos e fora finalmente capturado e abatido. O cadáver do alienígena teria sido mantido em sigilo.  Até mesmo a Unicamp entrou na estória – circulava à boca pequena que o ET estava sendo periciado nos laboratórios de nossos especialistas. Como surgiu, desapareceu.

Talvez isso já fosse o que hoje se chama de fake news, não importa o rótulo. Mas eram coisas amadoras, nas dimensões do que eram os meios de comunicação de massas em que medravam. Bebê-diabo e ET de Varginha raramente chegavam à TV. Chegavam ao jornal popular e aos programas de rádio voltados para o público de baixa renda. Eram programas que novelizavam o crime e hipnotizavam ouvintes como antes faziam os dramas da Rádio Nacional ou as estórias de aventura de Jerônimo, herói do sertão.

A TV trouxe ao mundo um outro gênero de fake news e um novo alcance. Poderíamos lembrar numerosos casos, mas sem dúvida o mais espantoso e instrutivo foi a sinfonia televisiva que celebrou a escalada bushiana – a invasão do Afeganistão e, depois, do Iraque. Muito se escreveu sobre isso, lá como cá. Um ex-repórter muito competente da TV Globo foi um dos autores: Deus é inocente, a imprensa não, de Carlos Dorneles. Em pouco tempo, um presidente com baixos níveis de aprovação tirava proveito de um ataque terrorista até hoje pouco explicado e transformava completamente as relações de força. Com a sinfonia de vozes repetindo mantras de guerra, quase todos os políticos e formadores de opinião cerravam fileiras em torno de crenças nada superiores às do bebê-diabo: Sadam era sócio da Al-Qaeda, tinha armas de destruição em massa. O Afeganistão passava a coadjuvante. Sadam era a encarnação do demônio. Bebê-diabo da nova era.

A mídia militantemente “criativa” vinha de antes, é verdade. A famosa Fox News tinha sido criada por Rupert Murdoch na metade dos anos 1990. E se tornou a grande inventora de realidades paralelas. Mas, no caso do Iraque, de modo algum a Fox foi grito solitário. Pelo contrário, toda a grande imprensa “séria” e “equilibrada” se entregou ao delírio belicista e à difusão de informações sabidamente duvidosas (para dizer o mínimo). Durante alguns anos Bush conseguiu inventar uma realidade paranoica, suficiente para afundar o país numa guerra sem saída, enriquecer as empresas nela envolvidas e… deixar correr o barco que trombaria no iceberg da grande crise de 2008. Uma proeza viabilizada pelo fake geral.

No momento, temos um novo capítulo desse romance das fake news. Talvez mais saboroso e menos sangrento (por enquanto) do que aquele do Iraque. Trata-se da captura do sistema eleitoral americano pelos russos, os pérfidos bárbaros da estepe. A mídia norte-americana, quase inteiramente envolvida com a candidatura Hilary Clinton, depois de cair de suas nuvens embarcou em outra aventura igualmente delirante. Descobriu, de repente, que o sistema político norte-americano (e não apenas o eleitoral) é muito vulnerável à captura de interesses sorrateiros. Não, não eram os banqueiros de Wall Street, o complexo militar-industrial ou as sete irmãs do petróleo. Neste caso, como dissemos, vinham a cavalo os perigosos neo-vermelhos.

A farra começou a ficar engraçada porque logo alguns mais céticos lembraram o óbvio: a maior organização criminosa do planeta era especialista em fazer exatamente isso, manusear sistemas políticos e eleições em todo o planeta. Desde sua criação, depois da Segunda Guerra, a CIA criou divisões especializadas nesse delito – em operações abertas ou encobertas. A literatura sobre as suas desgraças é enorme. E fartamente documentada, sem fake news.

Uma das mais picantes cenas do debate recente ocorreu quando um antigo diretor da agência, Kent Harrington, publicou um artigo tentando explicar porque os norte-americanos eram tão vulneráveis a essas manobras de engana-trouxa.

O artigo – How Americans Became Vulnerable to Russian Disinformation – ESTÁ DISPONÍVEL AQUI.

Harrington afirma que os serviços de inteligência de Putin escolheram bem seus meios de ataque. Facebook e Google concentram muito da informação das redes. E suas regras permitiam um assédio fácil e… barato. O problema, diz Harrington, está além das tecnicalidades daqueles que vivem falando em algoritmos inteligentes, transparência e compromisso com a verdade: essas tecnologias não foram desenhadas para diferenciar verdadeiro de falso ou coisa parecida. Eles estão preparados apenas para maximizar cliques, compartilhamentos e “curtições”. Nos últimos dias, aliás, o Guardian e o New York Times reportaram como assessores de Trump faziam diabruras com a ajuda de uma empresa especializada nisso – e o algoritmo é poderoso mas aparentemente muito simples.

Trump na campanha eleitoral: Facebook é acusado de ser conivente com fraude | Reprodução – wikimedia.org
Então, diz o moço da CIA, o problema está um pouco além: “um eleitorado pobremente educado, suscetível de manipulação”. E daí vêm as razões de tal devastação. Nesse desastre cumpre papel fundamental a concentração da mídia, o desaparecimento dos jornais locais, comprados por grandes corporações e a deterioração do que se chama de “jornalismo”. Os resultados? Diz ele:

 “Considere a evidência: em 2005, uma pesquisa da Sociedade Americana de Advogados descobriu que 50% dos americanos não conseguem identificar corretamente os três poderes da república. O Annenberg Center for Public Policy fez a mesma pergunta em 2015 – a porcentagem de respostas como essas tinha subido para dois terços e uns 32% sequer conseguiam citar o nome de um dos ramos do governo”

A concentração da mídia veio casada com um irmão gêmeo: a busca empresarial pelo lucro máximo e rápido, de curto prazo. Harrington cita o depoimento de um manual do ramo: “Nosso cliente é o anunciante” diz o documento. “Leitores são os clientes de nossos clientes”, portanto, “nós operamos com uma equipe enxuta”.

Ao contrário do que dizem os comerciantes locais, não é exatamente com o leitor que o jornal tem rabo preso. Para bom entendedor…

Assim, o drama é muito maior do que o assalto de neo-bolcheviques perversos. Se Putin, lá de fora, conseguiu tal proeza – eleger o improvável Trump contra a glamurosa Hilary, o que não teria sido feito, ao longo do tempo, pelos gênios que povoam Wall Street, por exemplo? Basta ver como Robert Rubin forjou, com calma e engenho, o seu golpe de mestre, a educação de Obama, o melhor presidente negro que o dinheiro pode comprar. No primeiro ano de governo, salvou os bancos, deixou os endividados a ver navios e desandou a fazer shows. Enquanto isso, no plano interno, sua equipe econômica mantinha os sonhos de Wall Street e a dupla country Hillary e Kerry derrubava governos e financiava golpes. Mais até do que fizera o espalhafatoso Bush filho.

A tagarelice sobre as fake news pode até desviar os olhos de tantas notícias nada fake.  E pode também reforçar o medo dos grandes monopólios de mídia com o fato de ver novos concorrentes na criação de boatos. Faz algum tempo, numa greve de jornalistas de São Paulo, um gaiato engenhoso pintou uma frase nos muros: “Não compre jornais, minta você mesmo”. Talvez a era do Facebook venha a transformar este sonho em realidade.

Reginaldo Carmello Corrêa de Moraes é professor aposentado, colaborador na pós-graduação em Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. É também coordenador de Difusão do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-Ineu). Seus livros mais recentes são: “O Peso do Estado na Pátria do Mercado – Estados Unidos como país em desenvolvimento” (2014) e “Educação Superior nos Estados Unidos – História e Estrutura” (2015), ambos pela Editora da Unesp.

Publicado em Jornal da Unicamp