A frase do Carlos Alberto Parreira causou espanto entre os jornalistas esportivos: “o gol é detalhe”. Detalhe? O evento que marca a vitória de uma equipe? Mas a idéia era simples: se você impõe sua hegemonia no campo de jogo, o gol se transforma em um evento quase natural. Detalhe.

Um livreto de Donald Cohen de certo modo transplanta essa sabedoria dos gramados para o campo da política. Dismantling Democracy: The forty year attack on government and the long game for the common good (Strong Arm Press, 2018)

O tema é a eleição de Trump: seu resultado, diz o autor, é um marco significativo dentro de uma campanha de “cerco e aniquilação do governo”, algo que dura uns quarenta anos.  E é condicionado, nos Estados Unidos, mas também em vários outros países, por um quadro de circunstâncias:  concentração da riqueza e do poder, mercado de trabalho contingente e inseguro, desinvestimento em serviços públicos, desregulamentação selvagem, ataques a direitos civis, desconfiança generalizada na representação política e no poder público, esgarçamento da coesão social. 

Somando tudo isso, Trump é o detalhe, diria a dupla Parreira-Cohen. No popular: “uma hora um troço como esse tinha que surgir”. Com tudo o que ele faz vir à tona, com tudo o que ele ‘empodera” na vida cotidiana. O leitor talvez pense que não falo apenas de Trump. E está certo. Há sempre um pequeno aspirante a Trump ali na esquina. Alguns usam fardas, outros são jumentos, mas todos despertam os mesmos sentimentos bárbaros.

Mas no cenário norte-americano, os políticos e intelectuais reformistas que haviam criado história desde o New Deal perderam a guerra pela “alma da nação”, nas últimas décadas do século XX. As atitudes de desconexão com o governo, de desconfiança na política redundaram em suporte cada vez maior para uma ideologia de “livre mercado” desagregante. Voltava com vigor um modo de pensar que vivia nas catacumbas, desde a vitória do keynesianismo e do Estado de Bem Estar. A agenda da austeridade, da privatização e da desregulamentação das relações sociais avança a passos largos, recriando o “capitalismo das selvas”. 

Não foi sempre assim. E não aconteceu de repente nem por acaso. Não é um plano coerente e centralizado, mas está longe de ser acidente. Em certo sentido, é projeto. E seu embrião pode ser encontrado lá no início dos anos 1970, diz Cohen, resumindo um grande número de estudos: 

“desde a década de 1970, uma constelação – composta de instituições conservadoras, grupos de base temáticos, acadêmicos, intelectuais, líderes da indústria e políticos – têm sido enormemente bem sucedida em mudar as atitudes básicas com relação ao governo e seu papel fundamental na sociedade americana”.

O que essa disputa de hegemonia ideológica conseguiu foi bem mais do que um gol, uma eleição. Foi o controle do campo de jogo. Em grande medida, sua vitória foi estabelecer…  “um conjunto de crenças e sabedoria convencional, uma filosofia nacional vagamente definida que protege os privilégios dos ricos e poderosos”

Um dos resultados desse avanço neoconservador foi a desconfiança frente ao governo e à representação politica. Em algum sentido, mais do que conquistar adeptos para partidos e organizações de direita, o neoconservadorismo tem conseguido uma outra vitória importante: a produção do desalento, da indiferença, do alheiamento.  Para isso contribuíram os “grupos de base” inventados pelos neoconservadores. Fundações “filantrópicas”  financiaram a criação de “astroturfs”, isto é, empresas promotoras de eventos políticos fantasiadas de movimento social. E grupos juvenis “libertários” e agressivos.

Ao longo do tempo, tiveram diversas vitórias praticas. Por exemplo, a carga tributária foi clara e sistematicamente alterada na sua distribuição: 

“A carga fiscal deslocou-se dos ombros das corporações e dos ricos para os indivíduos e para a classe média e levou a cortes nos serviços públicos — o que, a seguir, provoca descontentamento popular com as instituições públicas.”

Por outro lado, os ataques às “falhas do governo” eram acompanhadas por uma exaltação das virtudes do “eficiente” e “meritocrático” setor privado. Daí, ganham apoio as campanhas de privatização de ativos públicos e de redução dos regulamentos trabalhistas, ambientais, fito-sanitários, etc.

Novo ambiente, novas referências, novas escolhas

Segundo o economista Jared Bernstein, na maior parte dos países, nas ultimas décadas do século XX, houve uma mudança de padrão no comportamento ou na inserção dos indivíduos no mundo. Entra o  padrão YOYO (you’re on your own – cada um para si) no lugar do WITT (estamos juntos), o padrão de sacrifícios, responsabilidades e benefícios compartilhados. Nesse novo padrão…

 “cada um depende de si mesmo e a conexão com o governo se dá apenas através de serviços especíoficos que nós “consumimos”. Daí, podemos deixar de perceber o compromisso de pagar pelos serviços – como a educação – que os outros usam. Dessa perspectiva podemos nos perguntar porque um homem deveria pagar por seguro de saúde que inclui pré-natal e maternidade, já que não vai parir”

Para a análise política, um elemento importante a estudar é “como o desenvolvimento dessa infraestrutura (thinktanks, mídia, grupos organizados) conseguiu mudar o ecossistema ideológico, conseguiu mudar crenças populares e estabelecer uma nova sabedoria convencional a respeito de governos e mercado.”

Afinal, para ter impacto, as ideias precisam se tornar uma “sabedoria” amplamente compartilhada, crenças populares sobre “como funciona o mundo” – precisa se corporificar em um senso comum, enfim.

 “Uma filosofia pública é a forma mais profunda do poder político. É mais potente do que ter os votos para aprovar uma lei no Congresso e mais potente mesmo do que ter o poder de impedir que um projeto chegue à votação. Ela é mais potente porque é invisível, porque não é sustentada em nenhum funcionário, autoridade ou grupo, e porque isso influencia a maneira como pensamos sem que notemos uma fisgada no cérebro”

A mudança no enquadramento dos fatos é o que permite que certas práticas, antes inviáveis, tornem-se quase imperativas, de tanto apoio que parecem receber. 

Um fator precisa ser destacado. Os democratas – e a esquerda – sempre fixaram seus olhos na disputa da presidência. O que não percebiam era a possibilidade de ter um presidente “progressista” (ou parecendo isso), devidamente emparedado por governos e legislaturas estaduais, congresso e judiciário. Todos eles sabotando, impedindo, chantageando. Vinha de longe a estrutura que permitia isso. Nos anos 1980, Reagan dera um passo além na tradicional tática conservadora de garantir o atraso através das oligarquias locais. Descentralizou responsabilidade e manteve o controle sobre a grana. Cortou recursos para estados e localidades, mantendo um alto orçamento militar em Washington.

Os governos estaduais e locais ficavam com mais atribuições e… menos dinheiro federal. Dai começaram a “cortar”, a aplicar a “austeridade”. E a substituir serviços públicos e funcionários públicos por serviços sub-contratados e contingentes.

Os republicanos apostaram no controle dos governos estaduais e dos legislativos estaduais. E foram muito bem sucedidos, avançando paulatinamente. Assim, no final dos anos 1970, os democratas controlavam 31 estados, contra 11 dos republicanos, oito eram divididos. Em 2016, os republicanos tinham 32, contra 14 dos democratas e quatro divididos ao meio.

Um resultado mais do que determinante, foi este:

“desconfiança e até mesmo desprezo pela ação do governo (e o outro lado da moeda, a crença nos chamados mercados livres) definem as características da política americana, tal como se manifesta em todas as eleições, em cada campanha política, em todo o debate público sobre as questões cotidianas”.

Em suma, o gol é detalhe. Do modo como o bagulho está montado, uma hora dessas ia cair um Trump na cabeça da galera. Lá como cá, ontem como hoje, algo se aprende com essa estória. Ou se deveria aprender. Feita a conta, o que sobra para a galera é pagar. Com suor e, em muitos casos, com sangue.

*Reginaldo Carmello Corrêa de Moraes é professor aposentado, colaborador na pós-graduação em Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. É também coordenador de Difusão do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-Ineu). Seus livros mais recentes são: “O Peso do Estado na Pátria do Mercado – Estados Unidos como país em desenvolvimento” (2014) e “Educação Superior nos Estados Unidos – História e Estrutura” (2015), ambos pela Editora da Unesp