Uma vez aprovada a reforma da Previdência, o governo Bolsonaro pretende avançar para a Reforma Administrativa do setor público. Partindo de visão ideologizada e negativa acerca do peso e papel que o Estado deve ocupar e desempenhar em suas relações com os mundos econômico e social no país, os ideólogos e propagandistas dessa agenda ancoram seus dados e argumentos em conclusões falaciosas que supõem ser o Estado brasileiro:

1) grande ou inchado em termos de pessoal ocupado;
2) caro ou ineficiente em termos de desempenho institucional, e pasmem!
3) contrário aos interesse do mercado ou do capitalismo como modo de produção e acumulação dominante das relações econômicas no país! Pois bem, contra tais falácias é que o restante desse texto buscará se posicionar.

Em primeiro lugar, surpreende o aparente desconhecimento e enorme fragilidade técnica que tanto documentos como discursos governamentais revelam sobre tais assuntos. Em trabalhos científicos publicados desde o início dos anos 2000 no Brasil, vários deles pelo Ipea, inclusive listados na Plataforma Atlas do Estado Brasileiro, uma gama atualizada de informações confiáveis sobre pessoal empregado, remunerações, diferenças territoriais e de gênero, despesa global de pessoal no setor público, etc. para os três níveis federativos e para os três poderes da república, vem sendo dado destaque a alguns fatos empíricos relevantes, tais como:

• O movimento de recomposição de pessoal no setor público brasileiro, observado durante as duas primeiras décadas de 2000, não foi explosivo e se mostrou simplesmente suficiente para repor o mesmo estoque e percentual de servidores ativos existentes em meados da década de 1990.

• Ao longo do período em estudo, houve, em particular, uma preocupação em conferir maior capacidade burocrática ao Estado brasileiro, mediante reforço a carreiras em áreas estratégicas, tais como: ensino técnico-profissionalizante e superior, advocacia pública, arrecadação e finanças, controle administrativo, planejamento e regulação.

• Tampouco se deduz dos dados analisados que os gastos com pessoal tenham saído do controle do governo federal, pois, em termos percentuais, essa rubrica permaneceu praticamente constante ao longo da primeira década de 2000, em um contexto de retomada relativa do crescimento econômico e também da arrecadação tributária. Mesmo depois de 2014, já em contexto de estagnação econômica e perda de iniciativa arrecadatória por parte do governo federal, tampouco houve explosão de gastos com pessoal relativamente à carga tributária total ou ao PIB.

• Do ponto de vista qualitativo, evidências das pesquisas indicam que o movimento atual de recomposição de pessoal no setor público deve trazer melhorias gradativas ao desempenho institucional, uma vez que esses servidores:

1) vêm sendo selecionados a partir de critérios meritocráticos, por meio de concursos públicos, e mais para atividades-fim, que exigem nível superior de escolarização, do que para atividades-meio, indicando a possibilidade de maiores impactos sobre a produtividade agregada do setor público; e

2) têm assumido a forma de vinculação estatutária, em detrimento do padrão celetista ou de várias formas de contratação precárias, o que os coloca sob direitos e deveres comuns e estáveis, podendo com isso gerar mais coesão e homogeneidade no interior da categoria, aspecto considerado essencial para um desempenho satisfatório do Estado a longo prazo.

• Outras tendências recentes acerca do assunto no Brasil são igualmente importantes, tais como:

1) o crescimento mais que proporcional dos vínculos privados, relativamente aos públicos, ao longo de todo o período estudado;

2) a municipalização da ocupação no setor público;

3) a substituição de terceirizados por servidores concursados sob regime jurídico único, e de pessoal administrativo (áreas meio) por pessoal técnico em áreas finalísticas da ação estatal; e

4) o aumento da escolarização e da profissionalização da força de trabalho ocupada no setor público, bem como o aumento da presença feminina na ocupação pública.

Desta maneira, cabe refazer as perguntas: O Estado brasileiro é grande? Seria ele realmente ineficiente? E, de fato, será que opera contrariamente aos interesses da acumulação capitalista no país? Vejamos.

O Estado brasileiro é grande?

Ora, grande em relação a quem? Grande em relação a quê? A resposta depende do tamanho da ambição, da ousadia, do escopo, do perfil do projeto de desenvolvimento nacional almejado. Significa que o problema não é o tamanho (em abstrato!) do Estado, mas sim qual o arranjo institucional necessário (Estado/Mercado/Sociedade) para levar a cabo o projeto de desenvolvimento pretendido.

Em perspectiva desenvolvimentista: para um projeto includente, sustentável, soberano, democrático, o Estado brasileiro decididamente não é grande! Pelo contrário, sua ossatura e modus operandi são de índole liberal, está assentado — por incrível que pareça! — numa concepção de Estado mínimo! Significa que suas lógicas de organização (ossatura) e funcionamento (modus operandi) trabalham sempre abaixo do potencial.

A ineficiência do Estado, deste modo, decorre na verdade da contradição latente entre projetos de ambição desenvolvimentista e instrumentos de governo de cunho liberal, cuja orientação geral consiste em dificultar ou bloquear o gasto público real, mas deixando praticamente livre de restrições o gasto público financeiro que sustenta o pagamento de juros aos rentistas de plantão.

Dois indicativos disso são a carga tributária brasileira e o percentual dos trabalhadores empregados no serviço público. Em ambos os casos, a posição brasileira está bem abaixo da média da OCDE: 35,6% contra 42,4% no primeiro caso; e 12,11% contra 21,28% no segundo caso.

O Estado brasileiro é ineficiente?

Ora, para usar apenas um único parâmetro de avaliação, temos hoje no Brasil um Estado cujo contingente de servidores ativos (civis e militares) em nível federal é praticamente o mesmo de quando foi promulgada a Constituição Federal: 912.739 em 1988 contra 1.174.945 em 2018. No entanto, desde então, esse mesmo Estado ampliou em muito as suas competências e áreas institucionais de atuação, bem como o acesso da população e a cobertura social de todas as políticas públicas de âmbito federal.

São bastante expressivas as quantidades observadas em itens de acesso da população e das empresas a bens e serviços dependentes da expansão das redes de infraestrutura. Sem ser exaustivo, basta verificar que o número de bilhetes pagos em voos regulares nacionais, a movimentação de passageiros em aeroportos, a frota de veículos automotores, a movimentação de contêineres e cargas nos portos brasileiros, o número de unidades consumidoras de energia, o número de telefones móveis ativos e de assinantes de TV a cabo, apenas para ficar em algumas dimensões representativas da modernidade, mais que duplicaram no intervalo de uma década.

Da mesma maneira, é possível constatar uma enorme ampliação da cobertura social havida sob vigência da CF 1988/2018 no país, viabilizada por meio das políticas e programas de assistência e previdência social, trabalho e renda, saúde e educação, desenvolvimento urbano e agrário.

Em todos esses casos, para além das concessões de bens e serviços finalísticos de natureza social, há que se levar em conta as respectivas redes de infraestrutura física necessárias ao atendimento dos diversos segmentos populacionais contemplados em cada caso. São equipamentos públicos que, embora diferentes e específicos em cada caso, guardam em comum o fato de precisarem estar fisicamente perto das pessoas para as quais se destinam; algo que não é trivial num país continental como o Brasil.

Claro está que, para tais resultados positivos no cômputo geral das políticas públicas implementadas desde a CF 1988, houve forte incremento de tecnologias inovadoras (TIC), aumento da arrecadação (desde 2003, sem a criação de novos impostos e sem aumento de alíquotas dos impostos já existentes), aumento do orçamento e da sua respectiva execução físico-financeira, recursos humanos mais escolarizados e presentes mais em áreas finalísticas da ação estatal que em áreas intermediárias, ligados mais ao atendimento direto à população que a funções meramente administrativas, além de outras características que denotam, na verdade, um incremento no desempenho institucional agregado do setor público federal.

Significa que, em termos de eficiência, faz-se hoje muito mais que no passado, seja por unidade de pessoal, de TIC ou mesmo de orçamento per capita. Disso não se depreende que a agenda da eficiência não seja relevante! Pelo contrário, todos reconhecem serem necessários e urgentes novos e permanentes ganhos de eficiência da máquina pública. Porém, de mais eficiência não se obtém, automaticamente, mais eficácia ou efetividade da ação governamental.

O Estado brasileiro é contra o mercado?

Ora, a índole liberal (mais que social!) do Estado brasileiro faz com que seja, historicamente, mais perfilado a atender os interesses do Capital e do processo de acumulação capitalista que os interesses diretos e imediatos de sua população, a grande maioria, aliás, ainda hoje distante ou alijada da cidadania efetiva e do desenvolvimento integral.

Por outra: o capitalismo brasileiro (como qualquer outro, aliás!) é altamente dependente da capacidade de o Estado mobilizar e canalizar seus recursos e instrumentos de políticas públicas em favor do processo de acumulação de capital, em bases privadas.

Não obstante, como demonstrado pela — curta, mas exitosa — experiência de desenvolvimento no Brasil entre 2004 e 2014, houve combinação virtuosa de decisões e políticas públicas que tornaram possível realizar, em simultâneo, aumento de renda per capita e redução das desigualdades de rendimentos no interior da renda do trabalho, cf. Gráfico abaixo.

Gráfico 1: combinação virtuosa entre renda per capita e índice de Gini

 

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Ocorre que tal combinação de fenômenos, tida como situação desejável, não é obra do acaso ou da atuação de livres forças do mercado. Requer, ao contrário, certa combinação virtuosa e longeva de decisões e políticas públicas, orientadas a objetivos complementares e compatíveis, propícias ao crescimento econômico, ao combate à pobreza e à redução das desigualdades.

(*) Doutor em economia pelo IE-Unicamp, desde 1997 é técnico de Planejamento e Pesquisa do Ipea. Atualmente exerce a função de presidente da Afipea-Sindical.

Fonte: Diap