Arrefecido o clima de tensão entre o governo Bolsonaro e os velhos jornais, que encontrou seu auge semana passada, quando o presidente disparou ofensas excessivas – até para seus padrões – aos principais veículos de comunicação, sobretudo aos jornalismos da Globo e da Folha de São Paulo, um forte clima de boa vontade com o governo chamou a atenção nessa terça-feira. O motivo: a “agenda econômica” de Paulo Guedes.

O governo enviou três Propostas de Emenda Constitucional (PECs) ao Senado nesta terça-feira, 5/11. A PEC “Mais Brasil”, que Guedes chama de Pacto Federativo, altera novamente o regime fiscal e propõe, entre outras coisas, a soma do mínimo obrigatório de recursos destinados a educação e saúde. A PEC da Emergência Fiscal institui gatilhos de contenção de gastos públicos. Uma terceira PEC visa rever – na prática, eliminar – diversos fundos públicos, com o objetivo de direcionar esses recursos para um suposto abatimento da dívida pública1.

O tom otimista espalhou-se pelos jornalistas do carioca O Globo e contagiou também no Estado de São Paulo. Sua manchete de capa anunciava uma esperada retomada dos investimentos privados, revelando abaixo, em letras menores, que a fonte do otimismo era o próprio governo… Por fim, a Folha de São Paulo, dedicou um editorial de apoio explícito às propostas de Guedes onde afirma:

Guedes mostra realismo quando reconhece ser politicamente impossível abrir caminho para uma redução dos montantes aportados em educação e saúde. A solução de agregar as duas rubricas pode ser um bom caminho intermediário. (FSP, 05/11)

Conforme o mesmo jornal revela em outra matéria, a proposta original do ministro da economia era retirar os pisos para essas áreas, mas foi alertado para as dificuldades políticas em fazer passar tal proposta. Permaneceu então a ideia de somar os gastos com os inativos aos limites mínimos dessas áreas, o que provavelmente produziria enorme pressão sobre os gastos de custeio.

Desindexar, desvincular e desobrigar gastos públicos são os lemas de Paulo Guedes. Suas justificativas são o “excesso de gastos públicos” e a rigidez orçamentária – isto é, o fato de que a maior parte dos recursos são de destinação carimbada. A quebra dessa rigidez, de acordo com o ministro, aumentaria o papel da classe política na decisão sobre alocação dos recursos.

No entanto, por trás das tecnicalidades e dos dados de difícil compreensão nos quais se apoia intransigentemente a retórica governamental – dados que não raro se mostram equivocados – está o objetivo geral de reduzir de modo drástico e generalizado o papel do Estado brasileiro. Busca-se fazê-lo seja no fomento a determinados setores da economia, seja na defesa desses setores diante do interesse de outros países e seus capitais, ávidos por incorporar ativos rentáveis e ampliar seus poder geoeconômico.

As propostas de Guedes, portanto, revelam muito mais do que a crença em uma política macroeconômica equivocada, incapaz de enxergar a atual insuficiência de demanda e o excessivo endividamento das famílias. Revelam também uma visão rudimentar do mundo social, segundo a qual a pura lógica do mercado produziria uma magnífica eficiência alocativa dos fatores de produção sem entrar em qualquer conflito, mas, ao contrário, reforçando, a “ordem democrática”. Esta última, vale dizer, de importância secundária, sempre aparecendo em sua retórica como um verniz mal pincelado, como denota sua declarada predileção pelo modelo econômico chileno, implementado sobre a força das armas e da eliminação física de seus oponentes. Por isso causa constrangimento sua rasa menção a Rousseau em entrevista recente.

O que a festejada artilharia de PECs do governo também revela é que se pretende, no curto espaço de tempo de um mandato presidencial desfazer à força da britadeira os fundamentos do pacto social-democrático acordado em 1988. Não é à toa que as medidas são todas enviadas em forma de emendas constitucionais.

É difícil prever o grau de sucesso da empreitada, pois as medidas deverão passar pelo crivo do Parlamento. O que está se revelando essa semana, no entanto, é que o governo ainda dispõe do apoio entusiasmado da velha imprensa. Une-os uma agenda econômica marcada por medidas que combinam uma visão torpe sobre o funcionamento do mundo social com os interesses mais mesquinhos de um empresariado que segue sem visão de país. Ao requentar o velho discurso fiscalista e anti-Estado, sempre que lhe convêm, Executivo e mídia seguem também sem criatividade.

1 Ainda na terça-feira, especialistas ouvidos pelo jornal Valor Econômico refutaram a ideia de que tal medida produziria efeito sobre a dívida bruta. De acordo com eles, por razões técnicas e contábeis, o efeito sobre a dívida seria nulo.

 *FELIPE CALABREZ – Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e Doutor em Administração Pública e Governo pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP), é professor de Relações Internacionais na FMU