O manifesto consta de três princípios. O primeiro é que as empresas devem colaborar com todos as partes interessadas implicadas em seu funcionamento, e não apenas para atender os interesses de seus acionistas. Essas “partes interessadas” abrangem não só os diretamente relacionados à empresa, como seus trabalhadores e fornecedores, mas também os interesses difusos, mais amplos e globais, que dizem respeito `a tributação, direitos sociais e ambientais. Os compromissos assim assumidos serão vinculantes, incluindo as responsabilidades e consequências deles decorrentes.

O segundo princípio redefine a empresa capitalista, que não deve ser apenas uma unidade geradora de riqueza, devendo também “atender às necessidades humanas e a um “marco do sistema social público”. O terceiro princípio é sobre a natureza das empresas multinacionais, que – em decorrência do primeiro princípio – devem ser consideradas um grupo de interesses, tal como os governos e as sociedades civis, “a serviço do futuro global”.

Os dois primeiros princípios do manifesto — ao negar a exclusividade da direção do capital aos acionistas — ele rompe o mais importante preceito do capitalismo histórico. Um preceito que foi definido por Milton Friedman nos seguintes termos: “Só existe uma e apenas uma responsabilidade social dos negócios, é ele usar seus recursos e se engajar em atividades projetadas para aumentar seus lucros”.

Já o terceiro princípio avança no sentido de igualar a responsabilidade social da empresa capitalista `a de um governo ou da sociedade civil. O que também borra a identidade específica do capital, que o torna distinto dos demais entes sociais, fundamentando suas reivindicações de liberdade de livre ação frente ao governo, exceto as regulamentações por ele consideradas necessárias, como o direito à propriedade e a defesa da livre concorrência.

Como se vê, o manifesto expressa coisas extraordinárias. E mais extraordinárias são quando ele é uma proposição do próprio Fórum de Davos e apoiado por entidades como a Business Roundtable, que reúne quase mais de duas centenas de dirigentes responsáveis por gigantescas corporações americanas, reunindo gente como o CEO do JPMorgan Chase, Jamie Dimon (que preside a entidade); Alex Gorsky, da Johnson & Johnson; Ginni Rometty, da IBM; e Larry Fink, do Fundo Blackrock, citando os mais conhecidos.

O principal formulador da ideia do “capitalismo das partes interessadas” é o acadêmico Klaus Schwab, fundador e presidente do Fórum Econômico Mundial. Em recente artigo na revista Foreing Affairs (*), um dos principais think tankers do pensamento conservador, Schwab fundamenta sua ideia do “capitalismo das partes interessadas”. Para o autor, o atual ‘capitalismo de acionistas”, que só persegue seus lucros de curto prazo, está ultrapassado, e se os capitalistas não o abandonarem, eles acabarão sendo forçados a isso “por seus funcionários, clientes e eleitores”.

Schwab faz uma dura avaliação do “capitalismo de acionistas”. Ele o considera responsável pela exaustão do meio ambiente do planeta, até o ponto de sua irreversibilidade; pela desigualdade social que atinge pela quebra dos sistemas sociais de bem-estar; pelo nível recorde de concentração de renda e de propriedade de ativos; e por economias “que não mais impulsionam um crescimento inclusivo”.

E, por fim, acusa os grandes capitais que se furtam a ser tributados de forma proporcional e justa; utilizando as facilidades da globalização e dos paraísos fiscais, fazendo com que os governos possam financiar sistemas sociais adequados, capazes de reparar os problemas sociais e ambientais que o capitalismo de acionistas causa à sociedade.

A natureza do capitalismo das partes interessadas e o seu irrealismo

Os extraordinários princípios trazidos pelo manifesto representam, sem dúvida, uma fratura política interna às ideias do neoliberalismo. Ele fundamenta até várias das críticas radicais feitas contra os efeitos maléficos da globalização capitalista e da ganância da acumulação que maximiza a riqueza privada, e de ser capaz de prover prosperidade às sociedades.

No entanto, deve-se considerar três pontos que, a nosso ver, contradizem, limitam ou mesmo inviabilizam a reforma das partes interessadas.

O primeiro deles é que o capitalismo das partes interessadas, é uma reforma no âmbito de um “liberalismo esclarecido”. Um fato importante é que a “reforma” não reserva nenhum papel aos governos. Ela será uma autorreforma ou não será. A negação do Estado contradiz o terceiro princípio do manifesto que iguala a responsabilidade do governo e da sociedade civil ao do capital. A ausência do poder mandatório do Estado torna impossível resolver conflitos de interesses que aflorará do novo capitalismo, não apenas entre os interesses diversos do capital e destes com os da sociedade, mas também entre a diversidade de interesses sociais existentes. Sem a participação mandatória dos governos, torna-se impossível a gigantesca concertação voluntária exigida.

O segundo ponto é o quanto a impossibilidade de alterar o princípio basilar do capital como relação social. Como afirma Marx (e Friedman concorda), o capital é uma relação social cujo único objetivo é se valorizar e acumular infinitamente. Essa é a pulsão que funda o capital e a sua própria existência.

Mesmo na reformas do pós-guerra, que permitiram se restringir certas liberdades do capital e a criação e financiamento dos estados de bem-estar social, o poder exclusivo do capitalista em decidir como lucrar e usar este lucro para gerar mais lucro nunca foi sequer posto em questão. E não será por uma autorreforma que tal pulsão possa ser restringida.

O terceiro ponto diz respeito `a suposta sustentação de que a reforma teria dado a sua origem em uma cúpula do capitalismo internacional. Isso, no entanto, o que parece. É significativo o apoio de executivos do grande capital, mas não figuram no manifesto os acionistas multimilionários que mandam nesses executivos. Há acionistas, como por exemplo Warren Buffett e Bill Gates, que até reivindicam ser mais tributados, mas nenhum deles se revela comprometido com o manifesto.

Por fim, o mais importante a ganhar neste manifesto do Fórum de Davos é o seu diagnóstico de que a globalização capitalista não está trazendo um mundo melhor para os povos, e o neoliberalismo, como sua ideologia, está a sofrer importantes rupturas internas.

Essa perda de legitimidade do neoliberalismo, como uma ideologia que tem conduzido a globalização, as sociedades e seus governos, enfraquece mais a globalização capitalista, em um processo político e econômico, iniciado já a partir a partir da crise de 2008, tornado mais visível a partir de 2015-2016.

*Lecio Morais, economista e mestre em Ciência Política

(*) Klaus Schwab. Capitalism must reform to survive, from shareholders to stakeholders. Foreign Affairs, edição janeiro/fevereiro de 2020.