O uso da palavra “recursos” os relaciona com a economia, e isso permite aos capitalistas falar em “bens comuns públicos”, mas também em “bens comuns privados”, deixando clara a possibilidade da apropriação pessoal do comum. Isso acontece, por exemplo, com a privatização das águas no Chile, e também em muitos outros casos.

Fora do âmbito econômico, os direitos humanos também são de interesse e pertencimento comuns. Para não entrar em discussões doutrinárias, devemos lembrar que os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais são direitos coletivos, e entre está consagrado o direito à saúde e à educação. Mas eles não são “bens”, de modo que ninguém pode privatizá-lo, já que também pertencem ao campo do bem comum.

A pandemia integra a crise mundial da saúde pública, como uma nova expressão da crise capitalista multilateral. Além da recessão anunciada, resultante da crise da superprodução, hoje temos uma contenção simultânea e severa de oferta e demanda, além da tendência comprovada de queda a taxa de lucro da burguesia, que para manter esse privilégio, sempre aposta nos piores extremos, incluindo guerras ou a ditaduras assassinas, como a de Augusto Pinochet.

Também leva à falência negócios que são o pretexto de resgates milionários com dinheiro público, usando os Estados como fonte de benefício dos mais ricos. Em outras palavras, a pandemia questionou o neoliberalismo, expondo o fato de que ele não passa de um mecanismo para recuperar e aumentar a taxa de lucro dos capitalistas.

Situação inédita, sem dúvida, que nos obriga a pensar no que fazer hoje, e no que fazer quando a pandemia passar. Por hoje, a resposta humana deve ser a da vida primeiro e depois os lucros injustificados dos ricos. Mas onde predominam os interesses da burguesia, como alertou Marx, os beneficiados certamente se tornam mais agressivos, quando o lucro em jogo for maior, na medida em que estiverem preparados para crimes maiores.

Esse momento de crise torna visível a contradição entre o bem comum (e a comunidade), em oposição à propriedade privada dos grandes meios de produção.

Do lado do comum estão a saúde e outras necessidades básicas, mas os defensores da propriedade privada preferem pagar a dívida externa aos detentores de títulos, cuja identidade está oculta. No Equador, isso já foi feito, em uma quantidade significativa, e com 100% do valor nominal, e se deu logo depois que a possibilidade de uma moratória foi anunciada, diminuindo o preço dos títulos de mercado, permitindo a compra segura de alguns, e depois cobrando o país.

O extremo está naqueles que estão dispostos a ficar sem parte da população humana, um tópico que é insistentemente abordado em certos círculos do poder mundial.

A preferência por beneficiar a propriedade privada já era claramente vista na crise de 2008-2009. O economista Manfred Max-Neff contrastou os 30 bilhões de dólares por ano, necessários para superar a fome em todo o planeta, segundo os cálculos da FAO (Departamento das Nações Unidas para a Alimentação e a Comida), com os 17 bilhões de dólares que os estados entregaram para salvar bancos e certas grandes empresas .

O que foi entregue é equivalente a 600 anos de um mundo sem fome. Definitivamente, é um crime contra a humanidade manter o enriquecimento privado em níveis nunca vistos na história anterior.

Agora, enquanto até o FMI e o Banco Mundial falam em priorizar a solidariedade internacional, os capitais privados, através de Donald Trump, buscam exclusividade no uso da vacina que está sendo experimentada na Alemanha, para agregar lucros à já perversa indústria farmacêutica.

E a “solidariedade” do FMI e do Banco Mundial chora. Eles falam em perdoar as dívidas dos 76 países mais pobres, mas já estão propondo novos empréstimos com interesses altíssimos, e, ao mesmo tempo, resgates direcionados a milionários: a Corporação Financeira Internacional do Banco Mundial já está negociando investimentos em 300 grandes empresas transnacionais, e os Estados Unidos preparam um resgate de 2 bilhões de dólares, para não comprometer as grandes empresas.

Legalmente, pode-se supor que os resgates são uma compra de ações de empresas transnacionais, e que essas ações pertencem aos Estados e deixam de ser propriedade privada, para se tornar um bem comum. No entanto, na verdade, são simplesmente entregues, a um grupo de poucos poderosos, grande parte da riqueza da sociedade, colocando em risco a maioria da população.

A contradição entre o bem comum e o privado é vista hoje, mais fortemente, nos sistemas de saúde. Somente sistemas públicos são capazes de garantir o direito à saúde de toda a população.

Os governantes da Irlanda não podem ser acusados %u20B%u20Bde serem esquerdistas, mas, por esse motivo, optaram por uma “nacionalização provisória” dos serviços de saúde e, da mesma forma, outros países agiram, tomando das garras das empresas privados que, em muitos casos se recusaram a cuidar de pessoas afetadas sem dinheiro ou que aumentaram brutalmente os preços de máscaras e medicamentos, aproveitando a relação entre demanda e oferta.

Emmanuel Macron, presidente da França, teve que admitir que “a pandemia revelou que os cuidados de saúde gratuitos, sem condições de renda (…) não são custos ou cargas, mas bens preciosos, vantagens indispensáveis %u20B%u20B(…) e esses tipos de bens e serviços precisam estar fora das leis do mercado”.

Poderíamos continuar comparando, e concluindo que o bem comum sempre será necessário, humanamente prioritário, e melhor. É um bom teste da superioridade das sociedades comunitárias e do socialismo, sobre o capitalismo.

Todavia, muito vem sendo dito e feito por aqueles que insistem em defender a propriedade privada e o sistema de exploração, desde que Margaret Thatcher repetia a frase de que “a sociedade não existe, apenas os indivíduos existem”. Assim como outros capitalistas, que falam em reformar o sistema (incluindo a última cúpula de Davos), enquanto outros estão sim dispostos a desistir de algo para não perder, como acontece com aqueles que, hoje, aceitam entregar benefícios à população em geral, ou aos desempregados, mesmo entre as potências, preocupadas em evitar revoltas em massa.

 O que está por vir é objeto de outro debate. Mas, certamente, isso não ocorrerá sem o confronto dos interesses de classe e da luta social, nem será um resultado mecânico da pandemia. Os povos terão que aprender, com essa nova experiência, a escrever esse novo momento histórico, para defender e recuperar o bem comum da sociedade humana.

Edgar Isch é acadêmico e ex-ministro do Meio Ambiente do Equador, associado ao Centro Latino-Americano de Análise Estratégica (CLAE)
Fonte: Carta Maior
*Publicado originalmente em estrategia.la | Tradução de Victor Farinelli