O Brasil acaba de aprovar um novo marco regulatório para o saneamento básico. Chama a atenção que a medida, mais uma vez, vai na contramão dos países tidos desenvolvidos, como Alemanha e França, e que a votação no Senado Federal se deu em meio a uma pandemia. A despeito do malabarismo que parte da classe política e dos grandes oligopólios, que pretendem privatizar os serviços, tem colocado, o novo marco regulatório é a abertura para a mercantilização da água e do esgoto no Brasil.

Primeiramente, vamos destrinchar o que é o novo marco regulatório. O Projeto de Lei (PL) n. 4.162 foi apresentado em 02 de agosto de 2019 e teve sua votação na Câmara dos Deputados em 11 de dezembro de 2019, ou seja, nos últimos dias de trabalhos legislativos do ano. Quando olhamos as datas chama a atenção que uma medida que afeta pelo menos 90% da população brasileira é votada quando praticamente não tem mais os olhares e pressão sobre os parlamentares. Poderia ser um fato sem tanta importância e decorrente das tramitações normais do Congresso Nacional, porém alguns fatos chamam a atenção: o PL 4.162 foi apresentado pelo governo e colocado em votação em substituição ao PL 3.261, que veio do Senado e de autoria do Senador Tasso Jereissati (PSDB/CE), insuspeito defensor da ofensiva privatizante do setor no Brasil e representantes dos interesses da Coca-Cola no país. O PL aprovado essa semana não foi debatido na comissão especial e foi colocado em pauta na Câmara dos Deputados com a explicação que a própria Câmara teria a palavra final sobre o projeto.

Avancemos para os dias de hoje, em meio a uma pandemia, onde a pressão popular, nos moldes como conhecemos de ocupação das ruas, fica mais difícil de ser feita, o Senado Federal resolve colocar em pauta o novo marco regulatório para o saneamento básico. Outro fato importante sobre a votação, o conteúdo do PL já constava nas Medidas Provisórias 844 e 868 de 2018. Ambas só não conseguiram ser aprovadas por intensa mobilização de trabalhadores das empresas de água e saneamento e dos movimentos sociais. Todos os anos tentam mercantilizar e privatizar o serviço de água e esgoto no Brasil, mas foi só em meio a uma pandemia combinada com um governo que não se importa nem mesmo com as milhares de mortes do povo e sem possibilidade de mobilização social que finalmente conseguiram.

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O novo marco legal do saneamento básico possibilita que a iniciativa privada entre no setor com mais força se tornando hegemônica. É importante frisar que a legislação atual não impede a atuação do setor privado no saneamento, as formas de participação se dão mediante concessão total ou parcial, subconcessão, PPP, emissão de debentures e locação de ativos etc. O que muda, portanto, é que com o novo marco torna obrigatória a abertura de licitação envolvendo empresas públicas e privadas. Ou seja, empresas públicas não poderão mais ser contratadas diretamente para executar os serviços de saneamento. Municípios ou Estados terão que fazer uma concorrência aberta a empresas privadas, por meio de licitação, e as interessadas terão que se comprometer com a meta de universalização dos serviços. A ANA (Agência Nacional de Águas) passará a ser responsável pela regulação do setor.

A proposta prevê que os contratos que já foram assinados serão mantidos até março de 2022 e poderão ser prorrogados por 30 anos, apesar de não ser obrigatório. Para prorrogação os contratos deverão comprovar viabilidade econômico-financeira, ou seja, as empresas públicas devem demonstrar que conseguem se manter por conta própria – via cobrança de tarifas e de contratação de dívida, afastando cada vez mais a administração pública do setor.

Segundo o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (Sinis) de 2018, 83,6% da população brasileira tem acesso a serviços de abastecimento de água e 53,2% usam serviços de esgotamento sanitário. De acordo com as entidades, a privatização do serviço pode impedir, cada vez mais, o acesso aos serviços por uma parte da população.

Não apenas no âmbito do saneamento e distribuição de água, mas é amplamente irradiado junto a população brasileira que o serviço público é ineficiente, criando uma cultura política privatizante, evidentemente relacionado a uma ofensiva neoliberal que assola o Brasil e o mundo. Contudo, o setor do saneamento básico é um excelente exemplo para desmontar tal discurso, pois esquecem do desempenho do setor privado no saneamento, com resultados na prestação da prestação do serviço nos municípios de Manaus (AM) e Itu (SP) e no Estado do Tocantins, que privatizaram o serviço.

É importantíssimo que os municípios brasileiros recebam apoio técnico e financeiro para planejar o setor, especialmente, os municípios como menores densidades populacionais. A título de exemplo, é inadmissível que o setor de saneamento básico brasileiro não tenha um fundo nacional que proporcione a universalização do serviço, a exemplo de outros setores.

O saneamento básico brasileiro é fundado no princípio do subsídio cruzado. Isto quer dizer que municípios com mais recursos subsidiam municípios mais pobres, ou seja, o dinheiro da conta dos municípios com mais dinheiro ajuda a bancar investimento nos municípios que tem menos dinheiro. No modelo privado aprovado no novo marco, os pequenos municípios – que tendem a ser mais pobres – não são atrativos para a iniciativa privada, já que a busca por maior lucratividade inibe qualquer investimento nestas regiões. Isto fará com que mais de 5 mil municípios fiquem sem investimento em água e esgoto, comprometendo além da população local, os rios que devem passar a ter maior despejo de esgoto sem tratamento.

É brutal que tal projeto tenha passado em meio a uma crise sanitária em que o que está em discussão é como aumentar medidas básicas de higiene. Parte pequena da população que mora no centro das regiões urbanas, não deve sofrer grandes prejuízos, mas a população periférica é quem deve ser mais afetada. Se no futuro tivermos uma segunda crise sanitária combinada com este novo marco regulatório os efeitos podem ser ainda piores do que o que, infelizmente, estamos assistindo agora.

A entrada de empresas privadas no setor de água e esgoto nos municípios brasileiros não nos deixa nada otimista com o que deve vir a acontecer em ampla escala. Como já dito, o exemplo de Manaus é ímpar para demonstrar o “legado” que o setor privado vem deixando no país. A capital do Amazonas, após 20 anos de gestão privada, tem 12,5% de coleta de esgotos e mais de 600 mil pessoas sem acesso à água. O Instituto Trata Brasil coloca o saneamento de Manaus – 6° maior município brasileiro – em 96º lugar entre os 100 maiores municípios do país. Não por acaso, as regiões da cidade mais assoladas pela covid-19 são as mais desassistidas em saneamento básico. Este estudo também aponta que as dez melhores cidades são operadas por autarquias ou empresas públicas e apresentam indicadores elevadíssimos de atendimento.

Como se já não estivéssemos na contramão do mundo no combate a pandemia, agora somamos mais este ponto em retrocesso. Estudo publicado em maio de 2020 pelo Instituto Transnacional (TNI), sediado na Holanda, demonstra que 1.408 municípios de 58 países, nos 5 continentes, reestatizaram seus serviços, sendo que 312 municípios na área de água e/ou esgoto de 36 países entre os anos de 2000 e 2019. Também reestatizaram os sistemas a Alemanha, nos EUA, no Canadá, na Espanha e na França, país onde 152 municípios, inclusive Paris, sede das duas maiores empresas multinacionais que atuam setor, tiveram os serviços remunicipalizados. Ou seja, o processo de reestatização por questões materiais, visto que a privatização piorou a universalização do sistema nesses locais. O interesse do lucro sobre a qualidade no abastecimento do serviço, a estagnação na expansão das redes de distribuição ou a deficiência dos órgãos reguladores para garantir a prestação do serviço foram as grandes questões. É possível que vejamos isso acontecer no país.

Na prática, o PL cria condições e força um cronograma de privatização dos serviços de água e esgoto baseado na ingênua visão de concorrência econômica quando na verdade o mais provável que venha a acontecer é a criação de monopólios naturais devido a baixíssima capacidade da ANA regular. Ao final do processo o que teremos será a cobrança de altas tarifas, serviço de baixa qualidade e inacessível para a maior parcela da população. Nada de novo para um governo que minimiza a morte de mais de 50 mil brasileiros.

*Camila de Caso – mestranda em desenvolvimento econômico pela Unicamp
**Caio Moura – Advogado e pós-graduando em direito e processo do trabalho

Fonte: Outras Palavras