O Brasil está há mais de 4 meses afundado em uma das mais graves crises de sua história, sem que o governo dirigido pelo capitão consiga oferecer alguma resposta digna à maioria de nossa população. No campo do enfrentamento da pandemia do corona, o desastre acompanha o Presidente da República e seu séquito desde o início. Convencido de que tudo não passava mesmo de uma “gripezinha provocada por um vírus chinês”, Bolsonaro subestimou as consequências da covid-19.

As trocas incessantes no comando do Ministério da Saúde e a interinidade longeva de um general que não entende absolutamente nada do assunto na pasta são os maiores exemplos de tamanha irresponsabilidade. Somam-se a tal quadro de desfaçatez os péssimos exemplos de conduta do presidente em suas aparições cotidianas sem máscara e seu insistente contato físico com a população, justamente no período em que se recomenda um maior confinamento.

Desse ponto de vista, pouco importa se o resultado de seu teste mais recente foi positivo ou negativo. A conduta criminosa e irresponsável daquele que deveria se comportar como chefe de Estado certamente contribuiu para aprofundar ainda mais a gravidade da pandemia em nosso meio. Bolsonaro insiste com a esdrúxula tese da cloroquina, ao passo em que a área econômica não libera os recursos para que a ajuda chegue à maioria de nosso povo nem para a aquisição de material e equipamento para nosso sistema de saúde.

O governo federal manteve-se sempre na mesma estratégia desde o início: desconsiderar o vírus inimigo e disputar junto à população a narrativa de que o desemprego e a tragédia social e econômica são de total e exclusiva responsabilidade de governadores e prefeitos. Para tanto, Bolsonaro não deixa de passar um único dia sem repisar a tecla de que por ele ninguém deveria ficar em casa. Para o chefe do clã, o Brasil não pode parar e se – por acaso! – há mortes, que pena. Afinal, esse é o destino de todos nós. Uma loucura!

Guedes: bons serviços ao financismo

No comando da economia, Paulo Guedes tem procurado oferecer a contraparte que prometeu desde a época da campanha de 2018. Ele trabalha com o binômio de desmontar e destruir. Ao implementar a política de desmonte das políticas públicas e de destruição do Estado brasileiro, o banqueiro oferece aos seus pares a oportunidade de avançar seus negócios privados para o interior mesmo de áreas estratégicas, antes de atuação predominante do setor público em nosso País.

Com sua conhecida obsessão pelo rigor da austeridade fiscal cega e burra, ele impediu que os recursos orçamentários chegassem na ponta na urgência e no volume necessários para o combate à pandemia. A rapidez com que ele liberou mais de um trilhão de reais para o setor financeiro logo no início da crise desapareceu quando se tratou de direcionar as rubricas para compra de equipamentos na área de saúde ou para liberar os valores relativos ao auxílio emergencial para a população mais necessitada. O mesmo dinheiro que o Tesouro Nacional tinha para destinar aos bancos sumiu na hora de creditar as contas dos mais desfavorecidos. Até hoje há milhões de casos de famílias que não viram a cor da “fortuna” de R$ 600, valor que todos sabemos ser totalmente insuficiente para sobreviver às agruras da crise da pandemia.

Como ficou evidente que a batalha de 2020 está perdida e o pibinho de 1,1 % colhido em 2019 foi um verdadeiro estelionato face às promessas de fartura da época da campanha, Paulo Guedes tenta atravessar a turbulência sem provocar muito desgaste em sua imagem. Com o intuito de se fortalecer junto a Bolsonaro, ele busca solidificar seu apoio no interior dos representantes do sistema financeiro. Assim, lança pela enésima vez o mote da privatização. Suas declarações mais recentes são um tanto genéricas, mas ele promete vender “umas quatro grandes” empresas estatais no período de 3 meses.

Austericídio e privatização

Manter a austeridade a todo custo e transferir riqueza do setor público para o setor privado. Essa é a estratégia do old chicago boy para o período pós-pandemia. É bem verdade que o STF ofereceu uma bela ajuda ao governo, com a sua inusitada decisão de permitir a venda de empresas sem autorização do Congresso Nacional, quando se tratar de subsidiárias. Trata-se de um grande absurdo, mas ainda assim não permite que Paulo Guedes possa fazer tudo sozinho. Ele tem reiterado uma predileção toda especial pelos Correios, por exemplo, e não vai conseguir realizar sua venda apenas por meio de um edital de seu superministério.

Em ano eleitoral, por mais conservadora que seja a composição da maioria dos deputados e senadores, tudo indica que deverá ser bastante complicado para o governo obter autorização legislativa para esse intento. Paulo Guedes promove um blefe, tentando bater no próprio peito a exclamação de fidelidade canina aos interesses do financismo. Sim, pois mesmo dentro da obtusa lógica fiscalista, é amplamente sabido que o pior momento para se desfazer de qualquer patrimônio é durante uma recessão como a que vivemos atualmente. Os preços dos ativos estão na bacia das almas e o melhor negócio é comprá-los em tais condições. O país perde, o Tesouro perde, a população perde e os grandes grupos financeiros internacionais são os únicos que ganham com a bravata privatizante.

O risco é de se promover uma nova grande onda de negociatas, como as que ocorreram no período das vendas escandalosas sob o mandato de Fernando Henrique Cardoso. A privatização de estatais como Embraer, Vale do Rio Doce, empresas de energia e de telecomunicações estão registradas na memória nacional como uma péssima opção adotada à época. Os valores pagos pelos adquirentes foram ínfimos, o setor público ofereceu ainda todo tipo de ajuda aos compradores e a população foi prejudicada em termos dos preços e da qualidade dos serviços públicos oferecidos.

Mas Paulo Guedes tem oferecido também algumas surpresas em suas propostas sobre o pós-pandemia. Voltou a mencionar a possibilidade de retomar algum tipo de imposto similar à extinta CPMF. Lembremos que há alguns meses a ideia foi abortada pelo seu chefe e lhe custou a cabeça do Secretário da Receita. A aprovação de tal proposta é bastante difícil na conjuntura atual, ainda mais com a oposição declarada dos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Não contente com tal ousadia, o superministro retomou um tema caro à oposição e que se revela como uma verdadeira bomba deixada por ele junto aos seus pares do sistema financeiro. Em uma entrevista inusitada, falou em eliminar a isenção tributária que beneficia os lucros e dividendos em nosso país. Tão amalucado com a necessidade de cumprir o torniquete fiscal que ele mesmo ajudou a criar, Guedes sonha com novas fontes de receitas a qualquer custo. No caso, já deve estar arrependido de tamanho sincericídio.

No entanto, o interessante é registrar tudo aquilo que não foi tratado por ele para o período pós-pandemia. Muitas das vezes, a essência das proposições se revela pelo que elas não incorporam. Assim, nada foi dito a respeito da necessidade de flexibilizar o rigor da austeridade fiscal, a exemplo da Emenda Constitucional 95, que congelou o teto de gastos por vinte longos anos. Nada foi dito a respeito de utilização dos bancos públicos como importantes instrumentos para promover crédito a setores estratégicos em nosso parque produtivo. Aliás, muito pelo contrário. Para Paulo Guedes, o destino natural para Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, BNDES e demais instituições financeiras federais seria a sua completa privatização.

Guedes não falou do essencial

Ele não disse nada a respeito da necessidade de uma ampla reforma tributária que incorporasse elementos de progressividade e passasse a exigir a colaboração aos cofres públicos dos setores que nunca pagaram um centavo sequer de tributos. Para esses falsos liberais, o que interessa é recolher sempre menos, reduzindo a carga dos impostos e promovendo a panaceia da simplificação tributária.

Tampouco ele mencionou alguma coisa a respeito de consolidar mecanismos de proteção social e trabalhista aos setores mais desfavorecidos de nossa população, ou seja, aqueles que mais sofrem com o aprofundamento da crise nos tempos de covid-19. Mas talvez seja pedir demais para alguém que acredita piamente que força de trabalho não passa de mera mercadoria e que as condições laborais e os níveis salariais nada mais são do que os preços “justos” definidos a partir da livre negociação de oferta e demanda nesse mercado.

Enfim, para Paulo Guedes, as alternativas existentes para o período que se seguirá à pandemia resumem-se ao conhecido método de “mais do mesmo”. Os economistas que se orientam pela rentabilidade da planilha não aprendem nada com a dramaticidade das crises – nem com esta atual nem com as anteriores. Morte, miséria, fome, falência, desindustrialização, desemprego, desnacionalização e outros aspectos terríveis associados ao austericídio intencional e à inércia frente à pandemia são explicados como fenômenos inescapáveis. Aguardemos, pois, uma vez que a retomada da atividade se dará naturalmente pela livre iniciativa dos agentes da oferta e da demanda, sempre motivados pela fadinha das expectativas. Essa última, aliás, anda um tanto sumida de nossos cantos.

O difícil caminho de retomada de um projeto de desenvolvimento social e econômico passa pela saída de Bolsonaro e Guedes do comando de nosso país. Essa é a única possibilidade de superação dos obstáculos que enfrentamos atualmente. A urgência da formação de uma ampla frente pela restauração da democracia deve contemplar a elaboração de um programa de reconstrução nacional, onde a recuperação do protagonismo do Estado seja elemento central e fundante. A defesa da manutenção dos direitos sociais básicos previstos na Constituição deve se combinar com a busca de recursos para sua implementação de forma sustentável.

*Paulo Kliass é Doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.
Fonte: Outras Palavras