A política me deu alguns irmãos de caminhada, o último deles é do Rio, Marcelo Freixo. No dia seguinte à eleição, ele me liga para celebrar a derrota de Bolsonaro, cumprimentar pela nossa campanha e manifestar preocupação com os resultados eleitorais do PCdoB.

Sugeri a ele que, para entender os comunistas do Brasil na última eleição, seria preciso ver o filme, não apenas a foto. Explico.

Faz quase 100 anos que o Partido Comunista do Brasil surgiu, na cidade de Niterói. Dali se ramificaram várias organizações socialistas no país. Entre as que se reivindicam comunistas, o PCdoB, hoje, tem o maior destaque. Importa registrar que grande parte dessa história foi marcada por heroísmo de homens e mulheres que mantiveram erguida a bandeira em situação política adversa, quando não clandestina.

O Partido sempre construiu vínculos com a luta popular, atuando nos vários movimentos. E, no máximo, disputava mandatos parlamentares, em busca de audiência para defesa de suas ideias. Participar das disputas por governos foi algo tardio para o PCdoB. Aqui começam as dificuldades para a ocupação de um espaço político.

Entre os partidos de esquerda, todos sempre disputaram cargos majoritários como linha política, exceto o PCdoB. É aquela história: quem não é visto não é lembrado ou time que não joga não forma torcida. Tem partido que nasceu ontem e já disputou 4 eleições para Presidência da República. E o PCdoB, nunca.

E aí? O que fazer? É preciso disputar! Os primeiros resultados podem não ser muito animadores, mas é sempre assim com todo mundo no começo.

Aí tem outra questão, mais complexa. Como se portar diante dos temas cotidianos da luta política? A linha do PCdoB sempre foi combater a favor dos interesses gerais da Nação, a busca por espaço próprio do Partido era tema secundário. Nada mais altruísta.

Penso que a eleição de Jair Bolsonaro encerrou um ciclo aberto com a luta pela redemocratização do país.

No final dos anos 70, a luta democrática deu base a movimentos amplos, com destaque para a Anistia e as Diretas Já! Quando a ditadura derrotou o movimento para que o povo escolhesse o presidente da República, surge uma grande polêmica na esquerda: ir ou não ao Colégio Eleitoral?

O PCdoB decidiu ir. O mesmo Partido que enfrentou a ditadura de armas na mão, na heroica Guerrilha do Araguaia, foi ao Colégio Eleitoral colocar a pá de cal no regime militar. Decisão óbvia? Não! Houve quem não somasse para derrotar a ditadura com o objetivo de aparecer ao povo como a força política diferente, contra todos.

Veio a Assembleia Nacional Constituinte. Lá estava o PCdoB, lutando para garantir a democracia e direitos para o nosso povo. Ao final, aprovamos uma Constituição Federal avançada, que consolidou o pacto econômico e social do regime que emergia com o fim da ditadura.

O PCdoB assinou a Constituição. Decisão óbvia? Não! Houve quem não assinasse e denunciasse o novo texto constitucional, visando aparecer como antissistema. Curiosamente, os mesmos que, décadas depois, se viram obrigados a uma autocrítica prática, pois se agarram às garantias da Constituição de 1988.

A partir desse momento, o PCdoB passou a defender uma frente política patriótica para construir uma alternativa. João Amazonas, nosso presidente à época, identificou o líder do PT, Luís Inácio Lula da Silva, como o melhor porta-voz. Assim, ajudamos a organizar a Frente Brasil Popular e mantivemos uma aliança que dura mais de 30 anos. O PCdoB é o único partido que apoiou o PT em todas as eleições presidenciais, desde 1989.

Essa aliança produziu vitórias eleitorais e importantes mudanças no país, sobretudo no plano de políticas sociais. O PT realizou o seu programa e houve avanços em muitas áreas. Todas as correntes de esquerda apoiaram? NÃO! Houve quem abstraísse a luta de classes no Brasil e se colocasse como “oposição de esquerda” à construção que procurávamos fazer. Claro, já numa versão repaginada de força política de esquerda antissistema.

A partir daí a história já é mais recente e está na memória de todos. Ou seja, há quem colha hoje os frutos de ter sido oposição ao projeto liderado por Lula. Agora, quando há um rearranjo nas forças da esquerda, o espaço se abre para os críticos do passado.

Ironicamente, a história se repetiu. Dois partidos de esquerda, que se estruturaram como forças antissistema. Mas é sempre bom lembrar o vaticínio de Karl Marx no Dezoito Brumário.

Foi certo o PCdoB apoiar os governos de Lula e Dilma? Penso que sim. E sempre lamentei correntes políticas de esquerda em oposição a esses governos. Por mais limites e erros que existissem – e haviam -, se tentava consolidar uma alternativa mais avançada para o país. É certo que não seria apoio acrítico, mas responsabilidade com a manutenção de um projeto.

Enquanto isso, todos – repito, TODOS! – os demais partidos de esquerda se colocaram como alternativa. A exceção foi o PCdoB, que tardou para se apresentar nas disputas majoritárias. Mas, quando o fez, brilhou, conquistou vitórias e realizou muita coisa bacana. Flávio Dino, no Maranhão, é o exemplo mais vistoso.

Trouxe esses fatos ao tempo presente porque a foto nos diz pouco. É preciso ver o filme.

E o filme deve nos inspirar. Para não sermos tragédia nem farsa. Devemos perseverar, aparecer à sociedade brasileira com face própria, chamar as coisas pelo nome, projetar nossas ideias para transformar a Nação e dar oportunidades ao nosso povo.

Vejamos o exemplo de São Paulo. Estivemos na linha de frente do combate ao bolsonarismo, fizemos a defesa de quem vive do trabalho, apontamos a gravidade do racismo estrutural. Na campanha eleitoral, procuramos politizar o debate. Há quem considere, à luz do não cumprimento de nossas metas eleitorais, que tenha sido um erro. Eu sustento a linha. Seria capaz de repeti-la? Sim. Faria tudo de novo, outra vez. É hora da semeadura.

Então a situação em São Paulo está uma maravilha? Claro que não! Sofremos uma derrota duríssima. Ocorre que precisamos perseverar na construção da identidade do Partido. E criar mais vínculos com a luta popular real. Os movimentos e organizações se renovam permanentemente, nas estruturas e pautas. Estamos ligados? Tenho dúvidas. Mandatos, lideranças e movimentos não se encastelaram? Não se acomodaram? Para facilitar, gostaria de fazer avaliação a partir do nosso mandato. Quais as opções que fizemos? Elas foram as melhores? Permanecem atuais? Algo diferente a fazer? Os vínculos com trabalho de base são os que procuramos? Há alternativa?

Espero que façamos uma boa avaliação, serena, profunda e ampla, para tirar desse processo uma energia renovadora.

Um balanço justo precisa valorizar as vitórias alcançadas e buscar compreender como foi possível conquistá-las em ambiente tão adverso. Investigaria com bastante atenção o fenômeno Manuela D’Ávila e o Partido na Bahia.

Manu é uma construção própria, no sentido de que ela é quem melhor trabalhou os contornos de sua personalidade política. Aliás, trabalho, muito trabalho para ocupar o espaço que alcançou. Manu é digital. Não é que ela sabe manejar redes sociais, ela é digital, pensa digital, age digital, sente digital, na forma e no tempo digitais. Sabe viver o fluxo com naturalidade. Manu tem identidade, personalidade, conteúdo, num todo coerente. Ela consegue dar nitidez ao melhor conteúdo, com a melhor forma. No tempo presente precisamos de Partido e lideranças digitais.

Então ela é a “nova fórmula”? Não! Ela nos ensina que é possível. E necessário. Nós devemos sair da zona de conforto, nem que seja por instinto de sobrevivência. E quem não se dispuser deve dar lugar para outras pessoas.

O Partido na Bahia trilhou um caminho próprio desde a luta pela redemocratização. Lá, nossa orientação sindical, por exemplo, teve linha distinta, o que nos permitiu um acúmulo distinto. A diferença foi tanta que deu cadência diferente ao desenvolvimento do PT. Também ousamos mais cedo participar de disputas majoritárias, fizemos até quando não estava na orientação política. Isso fez de nossa seção baiana um núcleo dissidente? Não, ao contrário! Pela força e experiência conquistadas, devemos ter lá uma fonte de inspiração.

Tanto Manu quanto o Partido na Bahia devem ser aplaudidos pela performance em 2020.

Adiante, quando a foto se revelar mais bonita, o filme, de novo vai nos fazer compreender. E renderemos tributos a Manu e aos baianos. E a Flavio Dino, que protagoniza uma bela cena no filme.

Sigamos!

*Orlando Silva é presidente estadual do PCdoB-SP, deputado federal e membro do Comitê Central do PCdoB.