Qual é a origem desses livros?

Esses livros fazem parte de uma biblioteca do meu avô, Júlio Manfredini, que foi dirigente do Partido nas décadas de 1940 e 1950, por muito tempo dirigente principal no Paraná. Acumulou uma biblioteca que ficou conhecida na cidade. Era um homem muito estudioso, embora de origem muito simples; ele era marceneiro.

Meu avô foi um caso raro por ter entrado no Partido com mais de 50 anos. Ele nasceu em 1882 e entrou no Partido em 1935. A diferença de idade entre ele e outros camaradas lhe valeu o apelido de “Vovô” ou “Professor”. Até hoje, remanescentes e filhos de comunistas daquela época se referem a ele por esses apelidos. Tinham muito carinho por ele. O Vovô fazia parte de uma célula partidária chamada Marcílio Dias, e aos 67 anos saía para fazer pichação com a rapaziada de 17, 18 anos.

E esses livros são a sobra de um patrimônio ainda maior que a família acabou se desfazendo por conta das perseguições políticas após o golpe de 1964 e, principalmente, o AI-5. Mas quando meu avô morreu, eu fui o único que tinha interesse nesses livros que sobraram; nessa época eu já estava na Ação Popular e já quase entrando no Partido. E eu fiquei com esses livros. Esse patrimônio incluia, por exemplo, toda a coleção da revista Problemas, outras revistas, vários jornais que ficavam numa caixa nos fundos da casa e parte disso foi se perdendo.

Por que você resolveu doar esses livros?

Pode ser útil para pesquisas e estudos sobre a história do movimento comunista internacional e brasileiro. Tem muitos livros interessantes sobre a luta pelo petróleo no Brasil que o Partido dirigiu no início dos anos 1950.

Eu achei que não haveria nenhum sentido esses livros ficarem comigo na minha casa, por outro lado eu já não tinha mais espaço e nem condições de cuidar deles e, então, eu comecei a procurar locais onde alocá-los. Primeiro eu fiz uma doação de 545 livros para a biblioteca pública do Paraná; desses nem todos eram da biblioteca do meu avô. Foi uma doação basicamente de obras literárias. De uma maneira ou de outra era preciso ser socializado.

Cheguei a indagar no Partido para saber se os comunistas tinham uma biblioteca. Soube que outros camaradas também se indagavam sobre isso. E o PCdoB, que seria o melhor lugar para guardar esses livros, não tinha uma biblioteca. Veja bem, isso foi num tempo anterior ao Centro de Documentação e Memória.

Quando eu soube do CDM e o visitei, pensei: “É aí que devem ficar os livros!” Então estou começando a trazer, não faço isso de uma vez só por questões materiais. Tenho certeza que esse conjunto de livros ajuda aos objetivos do CDM que é organizar uma biblioteca especializada na produção editorial dos comunistas e na história da esquerda brasileira.

E o CDM tem uma estrutura excelente de guarda e de método de catalogação. Minha função é trazer esses livros pra cá.

Essa coleção fez parte da sua formação política?

São livros que expressam um padrão de militância muito vinculado aos princípios da União Soviética, que tinham um acento muito grande de renúncia, de “devoção” revolucionária, que eu acho muito específico daquelas épocas.

O que eu trouxe aqui, na maior parte, faz parte da Coleção Romances do Povo. A coleção era dirigida pelo Jorge Amado [entre 1954 e 1956] e editada pelo Editorial Vitória, que era uma editora do Partido. O Editorial Vitória, se não me engano, começou quando o Partido ficou legal [em 1945] e depois [da ilegalidade em 1947] continuou [até 1964]. Aqui tem livros principalmente da década de 1950.

A Coleção Romances do Povo, em todos os seus 25 livros, fala sobre episódios da luta dos trabalhadores no mundo. Desde a luta de Espártaco, que é um livro do Howard Fast, até livros de temas mais contemporâneos.

Esta coleção, veja bem, no tempo em que eu fui adolescente e comecei a militância política, eram livros proibidos. Tanto é que eu fui preso por conta de algum desses livros. Eu morava em São Paulo e vinha de Curitiba pra cá. Trazia documentos da AP e alguns desses livros numa malinha e, no dia 17 de julho de 1969, fui preso. O livro que mais me influenciou, “Assim se tempera o aço”, também era da Coleção Romances do Povo, estava nessa mala e agora eu não o possuo mais.

Um outro que me marcou muito foi “O grande norte”, que foi a expansão da revolução socialista soviética para as áreas do norte daquele continente. Eu achei fantástico quando eu li, com 18 ou 19 anos, por que é um negócio heroico. Outro, também, é “A Colheita” [Galina Nikolaieva], que trata do pós 2ª Guerra. Trata de todo o processo de recuperação da União Soviética, parcialmente destruída naquela guerra, a atuação do Partido, enfim, o livro fantástico para a formação ideológica da rapaziada. Quem tinha emprestava e assim esses livros proibidos eram lidos.

Há outra coleção que eu trago nesta doação que é um pouco mais antiga, da década de 1940, da editora Brasiliense. Provavelmente são livros resultantes da legalização do Partido. Tem autores soviéticos, chineses e tantos outros.

Tem outro lote de livros mais antigos, este dos anos 1930, de outras editoras. Provavelmente editoras ligadas ao Partido, como o caso de “O cimento” que é de 1933 de Fedor Gladkov, da Edições Unitas. Nem sei se essa editora existia mesmo, pode ser fachada para despistar a repressão. Ou então não era uma editora oficial do Partido, mas um grupo próximo ao Partido que montou a editora. Mas esse livro é muito interessante, trata dos primeiros anos de construção da União Soviética. Interessante: é prefaciado pelo Victor Serge, intelectual que acabou tendo problemas por sua inclinação trotskista.

Há dois livros de memórias sobre Lenin, um deles da [Nadejda] Krupskaia (companheira de Lênin), da Selma Editora, antiqüíssimos. Nem data consta e um deles está praticamente esfarelando. Há também um sobre educação na Rússia soviética; outro sobre sabotagem do primeiro Plano Quinquenal “Processo dos Engenheiros de Moscou” que, como se apurou, queriam sabotar a estruturação material da Rússia.

É uma coleção datada. São livros sobre a União Soviética, China e tantos outros temas escritos naquela época. Podem ser consultados por pesquisadores interessados nesses temas. Talvez não sejam parte de um bibliografia prioritária, mas servem como uma boa bibliografia auxiliar.

Foram do Júlio Manfredini e agora serão disponibilizados pelo CDM para outras gerações de militantes e pesquisadores.