Paulo FontelesVocê foi líder estudantil e parlamentar. O que te levou ao interesse pela questão da guerrilha do Araguaia?
PFF-
O meu interesse pela guerrilha surgiu no final da década de 70, ainda menino. Naqueles tempos meu pai iniciava sua atividade de advogado junto aos posseiros do sul do Pará e moravámos em Conceição do Araguaia, numa casa próxima às margens do caudaloso rio que batiza a cidade. Nossas histórias de "ninar" sempre havia guerrilheiros e essas eram as histórias da carochinha de minha infância.

Quando meu pai foi assassinado em 1987, ingressei nas fileiras do Partido Comunista do Brasil. Em 1988, participei em Marabá de um encontro com a Juventude Camponesa promovido pela UJS e um dos principais momentos fora um debate com a veterana comunista Elza Monnerat, que havia participado da preparação da insurgência nas terras araguaianas. Foi ali que entendi muitas coisas da guerrilha e reforcei meu interesse pelo tema.

Anos depois, estudando na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), fui ser uma espécie de secretário de Elza Monnerat e todos os sábados, durante mais de um ano, saía das reuniões da sede da Une, no Catete, e ia para seu pequeno apartamento no Flamengo para ajudá-la a organizar sua memória e arquivos. Muitas coisas ela deixou comigo que pretendo publicá-las no site "Memórias do Araguaia", que ajudo à construir, da Associação dos Torturados na Guerrilha do Araguaia, sediado em São Domingos do Araguaia. Aprendi muito com a Elza e tenho saudades dela, muitas.

Foi naquela época, sob seu comando, que participei de minha primeira expedição em 1996 na região.

Depois de uma conversa com ela e depois com o João Amazonas, em São Paulo, desloquei-me até Marabá para passar uns dez dias acompanhando uma Comissão do Ministério da Justiça. O que era para ser em dez dias se transformaram em quase um ano.

Larguei casamento, faculdade e as praias de Ipanema para passar meses morando com camponeses entre São Domingos e São Geraldo do Araguaia. Foi alí, naquele trabalho, sempre com os lavradores que tinham participado da guerrilha que encontramos quatro fotografias que denunciavam que muitos dos desaparecidos que ora procuramos foram mortos sob à custódia do Estado.

Os guerrilheiros Antônio de Padua Costa, o "Piauí", e o Daniel Callado, o "Doca", foram fotografados vivos junto aos agentes da repressão e à época o documento fotográfico ganhou repercussão nacional pelo ineditismo. Em 1997 fiz um depoimento na Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos do Ministério da Justiça e, além de entregar as fotografias, passei-lhes um mapa de possíveis locais de inumação de 19 guerrilheiros além de denúnciar que gente ligada ao Major Curió estavam fazendo exumações clandestinas, partircularmente na região da Serra das Andorinhas, que depois foi confirmada em relatório dos antropologos forenses argentinos. Estes argentinos, dois anos depois, encontraram os restos mortais do Che Guevara na Bolívia.

Nunca vou esquecer daqueles dias enfiado no mato com os camponeses. Todas as noites reuníamos vários deles e eu lia tudo que dispunha sobre a guerrilha e eles comentavam as informações, contavam suas versões. Eu, naqueles dias, também lia os poemas do Neruda para eles e eles cantavam as canções da guerrilha e tudo isso sob as noites, as imensas noites araguaiacas.

Alí foi meu batismo de fogo e meus amigos, família e até gente do Partido dizia que eu tinha ficado doido e eu até acho que fiquei um pouco porque quando saí da região tinha emagrecido uns 12 quilos e com leshmaniose, que tratei no Rio de Janeiro.

Foi naquela experiência que compreendi a generosidade humana e que tal manifestação é sempre ligada ao povo e aos seus anseios. Falo isso porque um dos grandes sentimentos dos camponeses do Araguaia é contar a história de suas vidas, de quem eram os combatentes do Araguaia e da repressão, para que os lobos da infâmia e da tortura nunca mais retornem com suas noites sombrias. Para mim esse é um legado decisivo para o futuro que queremos ter, sempre com mais liberdades e democracia.

Na atualidade, além de participar do Grupo de Trabalho Tocantins do Ministério da Defesa, tenho depositado minhas energias para que os camponeses sejam, em definitivo, reparados.

O Ministério da Justiça já os anistiou e, infelizmente, um Juiz Federal do Rio de Janeiro à pedido dos Bolsonaros suspendeu os pagamentos com uma espúria liminar. Em um ano e meio cinco dos anistiados foram a óbito, o que nos revolta imensamente. Quando tal liminar alcançou os anistiados do Araguaia houve um silêncio estranhissímo por parte da imprensa e poucos jornalistas atenderam nossos clamores. Apenas o Portal Vermelho e o Leonencio Nossa, do Estadão, se sensibilizaram com a questão na imprensa brasileira e repercutiram. Quase nenhuma entidade de direitos humanos se posicionou diante da questão apesar da posição firme da Comissão da Anistia, do Ministro Tarso Genro, da Secretaria Nacional de Direitos Humanos à época do Vannuchi. Os advogados que toparam defender os camponeses, naquela situação, foi o Ronaldo Fonteles, meu irmão, e o Cláudio Moraes, advogado paraense radicado no Rio de Janeiro.

Hoje a coisa ampliou e estamos preparando nosso contra-ataque, jurídico e político, e já contamos com o apoio da OAB nacional, de juristas como César Brito e Dalmo Dallari. A Comissão de Direitos Humanos na Câmara dos Deputados sob a presidência da comunista Manuela d'Avila já manifestou solidariedade e apoio. A Direção Nacional do PC do B está empenhada na causa e têm contribuído imensamente nesta construção política que é acompanhada diretamente por Aldo Arantes. A batalha é dura, durissíma, mas com o apoio de muita gente boa e com a confiança dos camponeses do Araguaia, vamos vencer.

Quais as medidas que o governo Lula tomou no sentido do resgate dessa história e qual a situação hoje?
PFF-
Uma das primeiras medidas do governo Lula foi a criação de uma comissão interministerial para tratar do tema e dar cabo nas buscas dos desaparecidos políticos, além de reforçar a Comissão da Anistia, do Ministério da Justiça e a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos da Secretaria Nacional dos Direitos Humanos. Ministros como o Tarso Genro e o Paulo Vannuchi sempre jogaram um papel avançado neste debate e revelaram compromisso desmedido com a questão.

Mas o governo Lula, sabemos, como experiência de transição para um perspectiva mais avançada do ponto de vista da dimensão democrática, sofreu internamente certas pressões de setores que tratam tal questão com conservadorismo. Isso ficou claro no contencioso entre os Ministros Vannuchi e Jobim e o debate que foi a público foi mediado de forma bastante hábil pelo próprio Lula.

A pedra de toque dessa realidade foi a sentença prolatada pela Juíza Federal Solange Salgado do DF, que julgou em favor das familías dos desaparecidos do Araguaia para que a União localize e identifique os desaparecidos políticos do Araguaia. A ação iniciada em 1982, que têm em seu nascedouro as contribuições de meu pai, Paulo Fonteles e que foi assumida pelo Luís Eduardo Greenhalgh só foi julgada em 2007, 25 anos depois. Tal decisão, em última instância, fez com que o governo Lula, através do Ministério da Defesa, criasse um grupo especial para o tema, o Grupo de Trabalho Tocantins.

O GTT-Md conta com a participação de diversos setores envolvidos no assunto, do Exército aos familiares dos desaparecidos no Araguaia, do PCdoB à jornalistas, de instituições cientifícas à Policia Federal, de pesquisadores até simples camponeses. Isso sem falar da presença da própria Secretaria Nacional de Direitos Humanos. É um grupo amplo, não-homogêneo. Teve seu inicio marcado por grande desconfiança por conta da presença do Exército e de um Oficial-General e eu mesmo fui sectário quando soube da composição do próprio GTT e fiz um cáustico artigo para o meu blog sob o título "Só falta o Major Curió".

A realidade, particularmente em 2009, demonstrou que o General Mário Lúcio Alves de Araújo teve amplo compromisso com os trabalhos na região e apoiou todas as iniciativas sugeridas por nós. Revelou que os militares podem ter compromisso com o poder civil democrático, diferente de setores ainda recalcitrantes e minoritários que insistem em existir na caserna ou em clubes militares.

Muitos dos relatos que vinham dos torturados no Araguaia deixavam os militares, em especial os de mais elevada patente bastante constrangidos, pude sentir isso por lá. E vai me parecendo que há setores nas forças armadas interessadas em resolver, em definitivo, à questão. E isso é luta política, sempre.

Se formos observar a trajetória das forças armadas, particularmente do Exército, em todo o período republicano vamos percebendo que a caserna é prenhe de política, de debate político. É só vermos a instalação da República, a revolta dos tenentes, a Coluna Prestes, a Revolução de 30, o Estado-Novo,a FEB, a campanha "O Petroléo é Nosso" e a quartelada de 31 de Março de 1964. O Exército sempre foi bastante atuante politicamente e no curso da história brasileira, e em certos momentos pendeu para posições avançadas, como em 30 e, em outros, para posições reacionárias e entreguistas, como foi o caso de 64.

Falo isso para que a sociedade se assenhore destas questões que estão, muitas das vezes, circunscritas à poucos, bem poucos.

O fato é que o GTT-Md é o maior esforço nacional para a localização dos desaparecidos políticos no Brasil e, ás vezes, há contradições e o pau canta. Há visões sobre a guerrilha absolutamente conservadoras e pró-militares de 64, particularmente aquelas proferidas pelo jornalista e professor da Unb, Hugo Studart.

Mas o aspecto decisivo nesta questão e que destaco é o interesse do próprio Ministro da Defesa, Nelson Jobim, em ver resolvida tal pendência histórica. A decisão política do governo brasileiro é fundamental para o resgate histórico, creio eu.

Na entrada pelo terceiro ano do GTT-Md vamos compreendendo o funcionamento de todo o monumental aparato repressivo do país, os punhais e as tramas do lobo. Questões desconhecidas estão vindo a público, como o sequestros de filhos dos guerrilheiros do Araguaia por militares, o tratamento violento dispensado aos soldados, a brutalidade desmedida contra os desaparecidos políticos e camponeses e o controle exercido pelas forças de segurança que nos lembram os tempos de Hitler da Alemanha nazista.

Outro dado que vai aparecendo com força é o fato de que os militares ou remanescentes da ditadura, realizaram sucessivas operações-limpeza desde 1976 até, creio, à década de 1990. Alguns falam até em 2000, tenho dúvidas mas não descarto.

O fato é que, enquanto os militares que participaram da terceira campanha de cerco e aniquilamento às Forças Guerrilheiras do Araguaia, na famigerada "Operação Sucuri" e nas operações de retirada de corpos para lugares não-sabidos, será muito difícil alcançarmos resultados práticos satisfatórios do ponto de vista da localização de sepulturas.

E nesse sentido nossas instituições democráticas precisam radicalizar e ter severidade. O que não dá é para que nossos colaboradores e nós mesmos sejamos ameaçados, como acontece agora, por violentos como o Major Curió e outras viúvas da ditadura militar brasileira. O que não podemos permitir é o "sono dos justos" para quem tem as mãos sujas de sangue e por conta disso vermos o Brasil condenado em fóruns internacionais, como ocorreu recentemente.

Você têm expectativas que os restos mortais sejam encontrados?
PFF-
A esperança, segundo ensina o ditado popular, é sempre a última que morre. No curso destes dois anos encontramos duas ossadas que estão sob análise em Brasília. Há outras, também, retiradas em outros momentos e que diante meios cientifícos mais avançados de pesquisa genética podem oferecer revelações promissoras.

Já fizemos mais de 70 escavações em dezenas de polígonos por toda a região do Araguaia. Há, ainda, dezenas de outros locais para serem pesquisados.
Um aspecto importante é localizarmos os locais da operação limpeza porque, segundo dizem os antropólogos, a forma de retirada destas ossadas exige método e rigor cientifíco que seguramente os que operaram a terrível missão, não tinham.

Nossa luta é por corpos inteiros, mas as vezes é por um dente, uma falange, um diminuto osso. E em cada companheiro já encontrado e que possivelmente vamos encontrar há um roteiro macabro de torturas e assassinatos e essas ossadas revelarão para o país como foi a ditadura militar. Tenho a impressão de que os guerrilheiros do Araguaia vão revelar, através de seus poucos resquicíos materiais, o que lhes aconteceu e eles vão nos contar tudo.

O que os violentos pretendem é silenciá-los, sempre. Assim foi na década de 1970 e assim o é em nossos dias. Nossa tarefa é, também, libertá-los e através da ciência dar-lhes a voz que foi emudecida há tempos e assim eles terão vencido os coturnos covardes, porque haverá mais democracia no país.

Afinal, a luta no Araguaia, era para restabelecer a democracia e para isso foi preciso recorrer a luta armada. E aquele tempo exigiu medida extrema e a resistência é um aspecto importante diante do liberalismo moderno e um direito básico diante das quarteladas é o da insurgência.

Muitos companheiros desta luta, os melhores, acham que não acharemos mais nada. Eu acredito que vamos pelo caminho certo e que não vamos parar por aí.

O que você acha da polêmica sobre a criação da Comissão da Verdade?
PFF-
As polêmicas são sempre importantes para o avanço das mentalidades. Com elas vamos comprovando teses e examinando os erros, faz parte da vida humana. A Comissão da Verdade é uma necessidade histórica brasileira e está ligada ao nosso desenvolvimento democrático. Em todos os lugares que ocorreu, e são em torno de 40 experiências nacionais, sempre jogou papel para consolidar os processos democráticos e as unidades nacionais em torno de posições avançadas.

Um caso clássico é o da Africa do Sul, pós-apartheid. Nelson Mandela e o Congresso Nacional Africano (CNA), cuja força dos comunistas é significativa, conseguir consolidar, o que é hoje a maior força econômica africana, o país, e fazê-lo avançar sob a premissa da Comissão da Verdade que experimentaram.

Na América-Latina vários processos estão em curso e em estágio avançado, como Chile, Uruguai, Argentina e Perú e essas realidades têm vacinado a consciência democrática destes nossos irmãos.

O projeto enviado ao congresso brasileiro não trata de punições ou revanches, como gritam os reacionários de plantão. Sua missão é revelar a verdade dos fatos, apenas isso. Afinal, o país precisa saber o que houve naquele período e este é problema de que tipo de conteúdo queremos para o país e seu povo para os desafios futuros da Nação brasileira.

Uma nação, segundo Paulo Sérgio Pinheiro, não pode sufocar a verdade e nem deixar de contar o que houve para as atuais e futuras gerações. Esse é um problema de dimensão democrática e a democracia é perene, está sempre sendo construída. A Comissão da Verdade vai engendrar um país mais avançado.

É certo anistiar os torturadores?
PFF-
A tortura deve ser considerada como um crime imprescrítivel e a posição adotada neste tema pelo STF é conservadora, atrasada. Parte da premissa que a Lei da Anistia, promulgada em 1979, foi realizada numa realidade de democracia, o que não é verdade. Havia uma ditadura atroz que perseguia adversários políticos, censura e tudo mais do enredo daqueles tempos. Recentemente publiquei um artigo no "Vermelho" onde abordo a questão.

O que precisamos entender é que se não situarmos historicamente a questão vamos cometer erros em nossa análise. Se por um lado a lei de 1979 anistiou a todos, inclusive torturadores, permitiu que exilados pudessem retornar ao Brasil, como o Betinho, Miguel Arraes, Brizola e João Amazonas. Para os de cabeça-curta pode parecer a coisa de "dois pesos e duas medidas", mas não é. O retorno dos exilados e a libertação dos presos políticos foi uma conquista do povo brasileiro e essa conquista foi desaguar na memorável luta das "Diretas-Já", decisiva para unir o nosso povo para a derrubada do regime, que aconteceu através do Colégio Eleitoral de 1985.

O problema é que em 1979 a ditadura, mesmo em crise, dirigia o país e naquela época as posições avançadas não haviam se tornado hegemônicas como hoje, pelo menos nessa questão.

A questão é que as leis mudam quando a sociedade muda e nunca deverá haver cláusulas pétreas que nos prendam eternamente ao passado. E essa é uma questão do universo da política, sobretudo da política.

A punição dos torturadores é uma exigência do país que vivemos na atualidade e que queremos construir.

Quais são suas perpectivas futuras de ação política?
PFF-
Estou abrindo um ciclo de vida quando, recentemente, decidi vir morar no Sul do Pará. Faço isso para me dedicar mais ao trabalho do GTT-Md e poder contribuir com o Partido nessa luta já que minha indicação é da Direção Nacional do PC do B e tenho a honra de atuar sob a direção e experiência do camarada Aldo Arantes, principal responsável pelo Comitê Central para a tarefa. Isso sem falar da convivência com os camponeses e com a Diva Santana, também comunista, e uma das mais dedicadas militantes em direitos humanos que conheço.

Sou daqueles que acha que o futuro é fruto de visão histórica e ação cotidiana. Ação política não é apenas participar de eleições, apesar de toda sua importância. Ação política é também sistematizar a luta heróica que desenvolve nosso povo para sua efetiva emancipação e o Araguaia escreveu uma bela história que sempre nos servirá para o futuro, porque designa o cárater e o conteúdo dos brasileiros.

Não sei quanto tempo vou ficar por aqui, tavez um ano, talvez a vida inteira. Minha pretenção é ajudar a escrever as belas e duras histórias de luta de nosso povo