Imagens da dona da festa e de seus convidados sentados em uma cadeira e cercados de mulheres negras vestidas em trajes que poderiam ser de mucamas – escravas que trabalhavam dentro da casa dos senhores – repercutiram negativamente e foram criticadas por remeter ao período escravocrata. 

Como resposta às acusações de racismo, Meirelles afirmou, em seu perfil no Instagram, que a festa aludia ao candomblé: “nas fotos publicadas, a cadeira não era a de Sinhá, e sim de candomblé, e as roupas não eram de mucama, mas trajes de baiana de festa. Ainda assim, se causamos uma impressão diferente dessa, peço desculpas”. 

A Vogue Brasil também divulgou uma nota e anunciou a criação de um fórum permanente formado por ativistas e estudiosos que ajudarão a definir conteúdos e imagens da revista, com o objetivo de ampliar as vozes dentro da equipe e combater as desigualdades. No dia 13 de fevereiro, Meirelles pediu demissão do cargo na publicação. 

O segundo episódio ocorreu na madrugada de sábado (9) para domingo (10), em uma festa do Big Brother Brasil 19, reality show transmitido pela Rede Globo. 

O participante Maycon declarou ter sentido um arrepio ao ver Gabriela e Rodrigo, dois participantes negros da competição, dançando juntos a canção “Identidade”, de Jorge Aragão, uma afirmação da identidade negra. “Cumprimentei (a Gabriela e o Rodrigo), conversei e, de repente, senti um arrepio. Começaram a tocar umas músicas esquisitas. Olhei para os dois, num sincronismo legal. Achei legal, juro por Deus. De repente, comecei a olhar e escutar uns negócios. ‘Não faça igual a eles’. Aí veio Jesus Cristo na minha mente. ‘Se fizer igual a eles, eles ganharão mais força’”, disse Maycon Participante do BBB19.

Outra participante, Paula, já vinha sendo criticada nas redes por declarações de teor racista. Na tarde de 10 de fevereiro de 2019, a hashtag #BastadeRacismonoBBB19 estava no topo dos trending topics (tópicos mais compartilhados) do Brasil no Twitter. 

No dia seguinte, a Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância instaurou um inquérito para apurar as acusações de racismo e intolerância religiosa no programa. 

Em entrevista ao Nexo, Silvio Almeida, jurista, professor, autor de “O que é racismo estrutural” (ed. Letramento) e presidente do Instituto Luiz Gama, associação civil sem fins lucrativos que atua na defesa das causas populares, com ênfase nas questões das minorias e de direitos humanos, falou sobre como o racismo constitui os modos de vida e a vida social na sociedade brasileira, indo além de atos racistas individuais. 

O que a festa promovida pela diretora da vogue e as tensões raciais no BBB 19, assim como as reverberações geradas por esses acontecimentos, revelam sobre as relações raciais no Brasil hoje? 

SILVIO ALMEIDA – Acho que há dois aspectos importantes. O primeiro deles é relativo ao modo pelo qual o racismo é parte dos modos de vida que constituem as relações cotidianas no Brasil. 

Quando falo de cotidiano, estou me referindo às relações políticas, econômicas e afetivas. A normalidade dessas relações, que são parte da vida social, é atravessada pelo racismo e pelo que o racismo evidencia, que é a desigualdade. 

No caso da festa [de Donata Meirelles], dentro desse primeiro aspecto, veja que ali nessa festa as pessoas que se colocaram em defesa da diretora da revista são pessoas que mantêm uma relação afetiva com ela, e portanto, o racismo se naturaliza até mesmo dentro de relações que são afetivas. Não há possibilidade de constituir um país e uma sociedade com tanta desigualdade racial se não houver uma modelagem da afetividade, de maneira a colocar os afetos, as relações de amizade, amorosas, dentro desse quadro da desigualdade racial, naturalizando-a. 

O racismo faz parte da vida social e a gente não consegue compreendê-la de uma maneira objetiva, real, verdadeira, sem olhar de que forma ele se naturaliza e constitui os afetos das pessoas – de tal forma que uma pessoa pode se considerar “muito boazinha” e reproduzir nos seus atos hierarquias raciais, colocando-se no seu lugar e colocando os outros em seus lugares, apesar de ter relações afetivas com essas pessoas. 

O segundo aspecto é que é muito interessante notar como a desigualdade racial, em seu processo de naturalização, é metabolizada, digerida para dentro da cultura. 

O [psiquiatra, filósofo e revolucionário] Frantz Fanon tem um texto muito importante sobre isso chamado “Racismo e cultura”, em que ele mostra como o sofrimento, como as relações de poder e a violência racial são estetizadas e se tornam obras de arte que depois têm grande apelo de público, tornando-se até gêneros. 

Ele está falando, por exemplo, do blues, do jazz, que de alguma maneira falam do sofrimento dos negros; dos filmes que tratam da escravidão, que mexem com as emoções das pessoas, causam reações de indignação, provocam debates como os que foram gerados por esses dois casos. Isso faz parte também de uma certa catarse que é fundamental dentro do mercado da cultura. Esse tipo de coisa vende jornal, mantém o noticiário, movimenta todo um mercado, [dá origem a] produtos para negros. 

O mesmo racismo que é responsável por tanta violência, morte, tanta subjugação, só pode funcionar e continuar se reproduzindo se for possível também fazer do racismo parte de uma cultura. 

As pessoas vão se moldando, se posicionando a partir de uma cultura racista e não apesar dela. Essa nossa conversa só é possível hoje porque estamos posicionados dentro de uma cultura. 

Veja que isso [um debate sobre racismo] não para o país, não nos leva a fazer um “reio de arrumação”. Nos leva a fazer uma discussão pra ver como podemos lidar com o problema, e não necessariamente superá-lo. 

Um dos aspectos fundamentais da normalização do racismo é justamente submeter a uma certa subordinação culturas ou formas de vida que não sejam aquelas voltadas para a centralidade dos padrões de branquitude, dos padrões eurocêntricos. 

É como se se “admitisse” que outras culturas penetrassem naquela cultura [branca], que é hegemônica e central. 

O debate sobre racismo ampliou, recentemente, seu alcance na sociedade brasileira? 

SILVIO ALMEIDA – Sim, é um debate que se ampliou, sem dúvida alguma. Mas temos que entender como essa ampliação se deu, e para isso é preciso compreender as mudanças políticas e econômicas que ocorreram nos últimos anos. 

A ampliação desse debate tem relação com o fenômeno das crises socioeconômicas. Elas levam a uma reorientação das instituições, do processo de composição das subjetividades, a uma reorientação cultural e ideológica. 

Falar de diversidade é também uma forma de lidar com as tensões que a desigualdade promove, à medida que as crises vão se aprofundando. 

Quando começa a haver um processo de destruição dos empregos, das condições de sustento os maiores afetados com isso são as pessoas mais pobres, as pessoas trabalhadoras e, dentro desse grupo, as minorias. Estou falando aqui dos negros, das pessoas racializadas que geralmente são aqueles que vão ocupar os lugares mais subalternos dentro da economia. 

Isso vai gerar uma tensão enorme, vai gerar uma série de problemas. Nesse sentido, a questão da diversidade é um elemento que pode, de alguma maneira, no plano da representatividade, diminuir um pouco a tensão vinda dessa desigualdade profunda. 

Agora, sempre chamo atenção para o seguinte: diversidade é fundamental, é importante, representatividade é algo essencial, mas temos que pensar como se dá a conexão entre diversidade e igualdade, porque são relacionadas mas não são a mesma coisa. Muitas vezes, o discurso da diversidade é utilizado para encobrir a desigualdade. 

A desigualdade tem um aspecto que não é meramente simbólico, não é um aspecto meramente relacionado às identidades, mas que relaciona identidade com condições de utilização do poder político e de subsistir materialmente.

O que vem mudando em decorrência disso e o que, por outro lado, segue inalterado?

SILVIO ALMEIDA – O debate [sobre o racismo] muda [a situação] porque partimos de um patamar no qual, durante muito tempo, não se admitia a discussão racial. Raça era uma coisa tida como inexistente [no Brasil], acreditava-se ser melhor não falar em racismo para que ele deixasse de existir, apesar de ele continuar existindo, das pessoas continuarem tendo suas vidas afetadas por parâmetros racializados. 

A gente mudou de um padrão em que o racismo era tratado apenas sob o ângulo do direito penal ou então como uma questão moral, para uma situação em que discutimos o racismo como uma questão política dentro do debate público (embora intelectuais já discutissem essa dimensão há muito tempo). 

A gente mudou isso. E muito por conta da luta dos movimentos sociais, dos movimentos que se voltam para a promoção da igualdade [racial]. 

O que não avançou muito e que precisa avançar é que há, sim, uma resistência muito grande em se tratar a questão racial como parte integrante das grandes discussões sobre política e economia. 

A questão racial tem que ser discutida para além de uma questão moral. O racismo é uma imoralidade, isso é indiscutível, mas não é apenas um problema jurídico, que se resolve nos tribunais, até porque eles também são perpassados pela desigualdade racial, e isso se reproduz na sua composição. 

Temos que tratar o racismo como uma questão política: acho que o caso da festa e o caso do programa de televisão demonstram que o racismo muitas vezes é modo de vida de muita gente. Muitas pessoas têm a posição que tem, consegue o que têm por viver em uma sociedade desigual e essa desigualdade ser racialmente constituída.

A gente só consegue entender como a raça configura as relações de poder em nível institucional e político se entendermos a força que o racismo tem na nossa vida. 

Saímos de uma sociedade de molde escravocrata, em que a escravidão era absolutamente natural e todo mundo tinha escravos, de uma sociedade contra os escravos, para uma sociedade que, depois do fim da escravidão, moldou sua estrutura desigual a partir do racismo. Saímos de “todo mundo contra os escravos” para “todo mundo contra os negros”. 

É comum que pessoas acusadas de racismo tentem justificar ou esclarecer a situação negando ser racistas, argumentando não se tratar de preconceito ou dizendo ter havido um mal entendido. Por que isso acontece? 

SILVIO ALMEIDA – Quando a gente fala de racismo estrutural, o adjetivo estrutural indica que o racismo não é apenas o resultado de atos voluntários, que se limitam ao plano individual. O racismo está para além disso. 

Ele é, na verdade, um processo no qual, até mesmo de maneira inconsciente, as pessoas reproduzem as condições em que a desigualdade racial é possível. 

Quando a pessoa [acusada de racismo] diz que foi um mal entendido, de fato, o racismo só pode acontecer numa sucessão de mal entendidos. O racismo é isso. Ele se manifesta nos espaços vazios, no mal entendido, naquilo que não é dito – e exatamente pelo fato de não ser dito e ser possível o mal entendimento é que o racismo consegue se naturalizar. 

Porque senão, bastaria uma reforma da consciência, bastaria educação, bastaria ler livros e, em algumas gerações, as pessoas deixariam de ser racistas. Mas isso não acontece, exatamente porque o racismo está no espaço do não dito e do mal entendido. 

Qual o papel dos indivíduos no combate ao racismo estrutural? 

SILVIO ALMEIDA – A única forma de não ser racista e de realmente não compactuar com o racismo é ter uma posição antirracista, o que significa lutar contra essas tendências de reprodução do mundo em que a gente vive. 

Isso tem que ser feito de maneira permanente. [Significa] ter, a todo momento, uma posição ativa contra o racismo. 

Não existe possibilidade de combater o racismo a não ser dentro de uma postura ativa contra ele, o que significa se voltar inclusive contra si mesmo, em um processo de autoavaliação permanente, de olhar para si mesmo e verificar o quanto seus atos enquanto indivíduo estão compactuando para a reprodução das condições em que o racismo se manifesta. Falar que o racismo é estrutural não significa, de maneira nenhuma, retirar a responsabilidade individual que as pessoas têm em uma sociedade racista. 

Muito pelo contrário: sabendo que o racismo é estrutural e que, portanto, se manifesta pelos não-ditos, pelos mal entendidos e até mesmo de maneira inconsciente, é fundamental estar atento a todo momento – e falo isso também em relação ao machismo e à homofobia – para não se deixar levar pelas tendências que constituem a sociedade, o que é algo muito difícil. 

A única forma [de reagir a uma acusação] é dizer: “foi um erro, mas foi um erro que eu não pretendo reproduzir”. É fundamental reconhecer aquilo que se faz, reconhecer estar em uma sociedade racista, reconhecer o próprio privilégio e agir de maneira antirracista. 

A projeção que casos como estes ganharam com a internet e as redes sociais ajuda ou atrapalha nesse processo de autoavaliação? 

SILVIO ALMEIDA – A internet torna possível olhar para o problema, entender as reações, verificar o que as pessoas estão pensando em torno disso. Nesse sentido, ela é um instrumento que nos permite, inclusive, entender as nuances desse debate. 

A questão toda é como se dá o comportamento das pessoas dentro da internet. As redes sociais não são o único lugar em que esse debate tem que ser feito – ele precisa ser feito em outras instâncias, de outra forma, com reflexão. 

Costumo dizer que a única maneira de compreender o racismo e de desmantelar uma sociedade racista é por meio da reflexão e da autorreflexão, o que não se faz nas redes sociais. 

Eu sei a que você se refere: a um comportamento quase obsessivo de ficar simplesmente repetindo a mesma coisa que já se constatou, que aquilo de fato foi a manifestação do racismo. 

Para além disso, é preciso entender como e por que isso é possível, e mais, como fazer para que esse tipo de coisa não volte a ocorrer. Essas perguntas dificilmente serão respondidas por meio da dinâmica das redes sociais, que não permitem um debate mais profundo, mais propositivo nesse sentido.

Fonte: Nexo Jornal, por Juliana Domingos de Lima