O livro mostra que seu verdadeiro objetivo não era a constitucionalização do país e sim o retorno à velha ordem oligárquica, derrubada pela Revolução de 1930. Para cumprir seus objetivos, mostrando o movimento reacionário como democrático, a intelectualidade conservadora paulista foi obrigada a alterar a ordem dos fatos e adulterar a cronologia. Operação que acabou sendo avalizada pela grande maioria dos estudiosos daquele movimento. O portal divulga a entrevista feita pelo historiador Augusto Buonicore com o autor desse instigante e polêmico livro. Nela Francisco de Moraes expõe as principais descobertas de sua pesquisa. Leia o texto abaixo. 

Como surgiu a ideia do livro e como se deu a sua pesquisa?  

A ideia da pesquisa surgiu quando percebi que a maioria absoluta dos historiadores e pesquisadores repetia acriticamente o discurso dos participantes do movimento de 1932. Quando o Governo Provisório triunfou sobre o levante, espalhou-se a ideia de que São Paulo havia perdido a guerra, mas vencido moralmente, porque a Constituinte teria sido convocada. Esta ideia segue forte até hoje sendo constantemente repetida, em especial durante a data comemorativa do início do movimento: o dia 9 de julho. Que os participantes do levante de 1932 exaltem sua importância e tentem achar uma vitória em sua derrota me parece natural, agora que a imensa maioria dos pesquisadores acredite nesta propaganda e a repita até hoje me parece um absurdo.

Você afirma que existem erros graves na cronologia daqueles que buscam justificar a eclosão daquele movimento. Quais são esses erros?

 

Cartaz Livro 1932

Durante o processo de pesquisa, notei que um grave erro cronológico era recorrentemente repetido, invertendo completamente a interpretação do movimento. Os pesquisadores dizem: “Sufocado o movimento, Getúlio Vargas marcou as eleições” ou “o término do movimento paulista marcou o início do processo de constitucionalização”, mas na verdade o processo de constitucionalização começara muito antes do 9 de julho. Os primeiros pedidos de constitucionalização na verdade partiram de membros do Governo Provisório, como João Neves da Fontoura. Tiveram inúmeros debates e comissões organizados por Getúlio Vargas para elaborar um projeto de Constituinte. Mesmo as medidas práticas para a constitucionalização começaram antes do levante. No dia 24 de fevereiro de 1932, Getúlio Vargas promulgou o Decreto 20.076, sancionando novo código eleitoral bastante avançado para a época, permitindo o voto feminino, criando a justiça eleitoral e estabelecendo o voto secreto. Era muito mais democrático que o processo eleitoral anterior, caracterizado pelo “voto de cabresto” (como era conhecido o processo eleitoral da República Velha).  Logo depois, em 14 de maio de 1932, Vargas marcou para maio do ano seguinte a eleição para uma Assembleia Constituinte, que de fato ocorreu. Portanto, a constitucionalização não pode ser resultado do movimento iniciado em 9 de julho. A Constituinte ocorreu apesar do levante paulista e não por causa dele.  Uma consequência não se torna causa simplesmente pela vontade e pela retórica dos envolvidos. No entanto, no que tange a  história do levante paulista de 1932, o carro costuma ir à frente dos bois.

O que mais me impressionou é que independentemente da linha política, do lugar do país ou do instituto ao qual a pesquisa está relacionada, este erro aparece. Nem oCentro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), um dos centros mais respeitados de produção de história no país, escapa desses erros. E a ironia está no fato de o CPDOC ser ligado à Fundação Getúlio Vargas.

A grande parte das narrativas históricas afirma ter sido a Revolução Constitucionalista um movimento de caráter democrático, por exigir a constitucionalização do país pós-Revolução de 1930.  Isso corresponde à realidade? 

Na verdade, quando os revoltosos de São Paulo falavam de Constituição era para pedir a volta da velha Constituição republicana de 1891. Não há elemento que caracterize mais o reacionarismo do movimento de 1932 do que sua principal bandeira. Os chefes paulistas queriam voltar ao federalismo da Constituição anterior, queriam voltar à República Velha e à relação de dominação quase inquestionável que tinham sobre a Nação. Nada menos do que isso. Ibrahim Nobre, conhecido como “O tribuno de 1932” e cujos restos mortais habitam o obelisco do Ibirapuera dizia: “Queremos que seja respeitada essa constituição que a ditadura rasgou”. De mesmo modo, no dia 12 de julho de 1932 os chefes civis e militares do movimento lançaram um manifesto com as linhas gerais de sua política, proclamando que se deve “pôr em vigor imediatamente a constituição de 24 de fevereiro de 1891”.  Aliás não é à toa que importantes manifestações e comícios dos paulistas durante a organização do levante foram realizados no dia 24 de fevereiro. A alusão à Constituição de 1891 era constante.

O que permitiu essa distorção histórica amplamente aceita, inclusive na academia?  

É difícil acreditar que um erro de cronologia desse porte passe despercebido por tanto tempo. Mais de oitenta anos depois dos eventos de 1932, os pesquisadores seguem incapazes de acertar a ordem dos fatos. Geralmente os historiadores não se atém a cronologia dos acontecimentos, alegando que analisar linha do tempo é uma coisa da “velha história”. A cronologia, porém, é um parâmetro objetivo. O que aconteceu antes: a lei eleitoral e a marcação da Constituinte ou o levante de nove de julho? Não existe possibilidade lógica de se argumentar que o levante veio antes da lei eleitoral; no entanto, a maioria absoluta dos livros que tratam do tema segue repetindo que Getúlio só marcou as eleições depois que o levante acabou. Ou se está invertendo de má-fé a ordem dos fatos para provar que o levante foi constitucionalista, ou se está repetindo outros autores sem o mínimo de espírito crítico. Independentemente do motivo, este erro recorrente é nocivo para a compreensão da história do Brasil. 

A reivindicação de um civil paulista para comandar São Paulo era outra bandeira dos revoltosos de 1932. Parece que isso também era mais um álibi, pois já se tinha conquistado isso?  

Dois interventores paulistas e civis foram nomeados por Getúlio Vargas antes do levante paulista de 9 de julho. Primeiro, Laudo de Camargo que substituiu João Alberto e ficou no cargo de 6 de julho a 13 de novembro de 1931. Também Pedro de Toledo que assumiu em 7 de março de 1932 e foi interventor até o levante de 9 de julho. Na verdade, Pedro de Toledo foi um dos organizadores do levante paulista e continuou como “Governador de São Paulo” depois do início da revolta. Foi um dos principais chefes civis do movimento, amplamente aceito pela oligarquia paulista. Novamente, basta analisar a cronologia dos fatos para ficar evidente que o descontentamento com o interventor não pode ter sido um dos motivos do levante paulista. 

O interventor realmente odiado pela oligarquia paulista foi o pernambucano João Alberto, apoiado pelos tenentes revolucionários, mas esse fora retirado do cargo em 6 de julho de 1931. Não obstante, a bandeira do “civil e paulista” continua aparecendo como a segunda principal justificativa paulista para o levante de 1932. E, do mesmo modo que a constitucionalização do país, é justificada através da inversão temporal dos acontecimentos. São inúmeros os autores que dizem que só se nomeou um interventor paulista e civil para São Paulo após o “9 de julho”. Informação duplamente falsa, cuja função só pode ser justificar o levante paulista mascarando suas verdadeiras motivações. A informação é duplamente falsa, pois dois interventores anteriores ao levante eram paulistas e civis (Laudo de Camargo e Pedro de Toledo), ao passo que o interventor nomeado após a derrota paulista foi Valdomiro Lima que era militar, gaúcho e identificado com a Aliança Liberal. 

Quais medidas do interventor João Alberto, apoiado pelo tenentismo, tanto haviam amedrontado as elites paulistas e levaram à sua substituição?

Antes das medidas que ele tomou como interventor, a biografia de João Alberto já o indispunha com a oligarquia paulista. Militar pernambucano (o que logo lhe rendeu apelidos xenofóbicos do tipo “o forasteiro”), ligado aos levantes de 5 de julho de 1922 e 1924, ex-comandante de um destacamento da invicta Coluna Prestes. Além disso, quando chegou a São Paulo (mesmo antes de se tornar interventor), proibiu a perseguição e demissão de operários que participassem de greves – até então na República Velha a questão social era caso de polícia, segundo uma frase atribuída ao ex-presidente Washington Luiz. Aumentou salários, promulgou leis trabalhistas, botou o Partido Comunista do Brasil (PCB) em situação de semilegalidade (ainda que os comunistas não tenham aceito esta legalização) e criou uma organização intitulada Legião Revolucionária. Essas são só algumas das medidas tomadas por João Alberto em poucos meses e que colocaram as elites paulistas em pé de guerra contra ele.

Explique a palavra de ordem de alguns paulistas mais exaltados: “hegemonia ou separação” (Monteiro Lobato) e “confederação ou separação” (Alfredo Ellis Jr.). As classes dominantes de São Paulo realmente chegaram a pensar em se separar do Brasil?

 

Cartaz Revolução 1932

São as palavras de ordem dos intelectuais mais radicais do movimento. Ellis Jr. e Monteiro Lobato preconizavam a autonomia completa dos paulistas, ou então São Paulo deveria separar-se do Brasil. Logo no título destas obras, isso fica explícito. Estes autores mostravam também que o federalismo da Constituição de 1891 não era suficiente para acalmar a ânsia autonomista da parcela mais radical do movimento de 1932. Ainda que preferissem a Constituição de 1891 frente à centralização promovida pelo Governo Provisório, quando se pensava em um modelo ideal de nação imaginava-se uma Federação de Estados completamente autônomos ou São Paulo independente. Portanto, existia sim um movimento separatista no interior daquele levante. Esta foi a principal acusação utilizada pelo Governo Provisório contra o movimento insurrecional paulista. Os principais organizadores da rebelião perceberam que a bandeira autonomista era muito mais palatável politicamente que a separatista.

Qual era o tipo de democracia proposto pelos “constitucionalistas” paulistas, especialmente em relação aos trabalhadores e às forças socialistas?

Quanto ao projeto de democracia dos paulistas, a discussão geralmente era feita em abstrato. Normalmente os discursos misturavam valores gerais com propaganda. Falava-se da “inerente capacidade de se autogovernar do glorioso povo bandeirante”. Nas raras vezes que se falava de um projeto concreto de governo, era para retornar ao passado. Em relação aos trabalhadores e às forças socialistas, o proposto era a repressão pura e simples. Quase todos os dias, durante o período que os revoltosos dominaram São Paulo, os jornais noticiavam a prisão de comunistas e trotskistas. Consta que os trotskistas da Liga Comunista, principal organização deste cunho em São Paulo, tiveram 34 de seus 35 membros presos durante o movimento, mesmo tendo abertamente defendido a constitucionalização do país. O mesmo aconteceu com os membros do Partido Comunista do Brasil (PCB) que atuavam em São Paulo.

Você vê alguma relação, no plano ideológico e de classe, entre o levante de 1932 e o golpe militar de 1964? Sabemos que uma das faixas presentes na famigerada Marcha da família com Deus pela liberdade dizia 32 32=64 e muitos combatentes de 32 desfilaram naquele dia pelas ruas de São Paulo. 

Existe uma relação direta entre 1932 e 1964. No início da década de 1960, era mais clara a ligação existente entre João Goulart e Getúlio Vargas. Não tenho dúvidas de que o golpe de 1º de abril de 1964 foi contra o tal do “legado Vargas”, que havia sobrevivido ao golpe e ao suicídio de Getúlio, ocorridos em agosto de 1954.

Os paulistas pró-ditadura identificavam diretamente o movimento de 1964 com o de 1932.Mas, para os militares, isso era um pouco mais complicado. Primeiro porque uma boa parte da oficialidade do Exército ficou ao lado de Getúlio em 1932. Segundo porque o exército brasileiro tem uma visão de nação que passava pela existência de uma indústria pesada de caráter nacional. Nisso coincidiam com o projeto de Getúlio Vargas. Terceiro, o aspecto separatista (ou autonomista) do movimento de 1932 nunca foi bem visto pelos militares, seja em 1932 seja em 1964.

Mas os militares e a oligarquia em geral em 1954 e em 1964 concordavam plenamente em se opor ao trabalhismo, que era totalmente identificado com Getúlio Vargas e, consequentemente, com Jango. Vale lembrar que um dos principais episódios da crise de 1954 foi o Manifesto dos Coronéis, após o aumento de 100% do salário-mínimo anunciado pelo ministro do Trabalho de Getúlio Vargas, ninguém menos que João Goulart. O trabalhismo, na ótica dos seus opositores, ficava ainda mais assustador quando se misturava ao medo do comunismo. A alusão era constante, sempre que se aumentavam os direitos dos trabalhadores a oposição denunciava o “complô bolchevique posto em marcha no Brasil”. Foi o antitrabalhismo e o anticomunismo que uniu liberais e militares em 1954 e 1964.

Leia também o artigo A Revanche Oligárquica