CONHEÇA O ESPECIAL: 120 ANOS SEM ENGELS, 120 ANOS SOB SUA INFLUÊNCIA

No último artigo (1) já dissemos que Engels, há muito, vem sendo desqualificado tanto pela direita liberal quanto por alguns expoentes de esquerda. Numa apresentação aos escritos filosóficos de Lênin, Lucio Colletti falaria do abismo existente entre “o rigor e complexidade que caracterizariam cada página de Marx e vulgarização popularesca e o diletantismo dos trabalhos de Engels”. Afirmava que o nosso autor era “positivista”, “naturalista”, “mecanicista”, “determinista” e “dogmático”. Mais tarde, para seu desencanto, descobriu que essas qualificações poderiam facilmente se estender também à Marx. Por isso mesmo, engrossou o coro das “madalenas arrependidas” e transformou-se num neoliberal e acabou sua vida no partido de Berlusconi. Não foi o primeiro nem seria o último a fazer este tipo de trajeto.

Na contra-mão de Coletti, escreveu Perry Anderson: “Vem sendo moda depreciar as contribuições de Engels na criação do materialismo histórico. Àqueles que se acham ainda inclinados a aceitar esta difundida noção, é necessário dizer calma e incisivamente: os juízos históricos de Engels são quase sempre superiores aos de Marx. Ele possuía o conhecimento mais profundo da história européia e uma compreensão mais segura das suas estruturas sucessivas e relevantes”. Neste caso, devemos concordar com Anderson.

Após as derrotas das revoluções democrático-populares de 1848, Marx e Engels resolveram se debruçar sobre os acontecimentos que haviam abalado a Europa, especialmente a França e na Alemanha, epicentros do conflito. Quais teriam sido as causas da eclosão e do revés dessas revoluções? Quais seriam suas perspectivas?
De novo, estabeleceu-se uma divisão de tarefas entre eles. Marx se concentrou no estudo sobre a França – país cuja história conhecia bem – e Engels voltou-se para entender o que tinha acontecido na sua terra natal. Neste esforço, produziu quatro trabalhos fundamentais: As Guerras Camponesas na Alemanha, Revolução e Contra-revolução na Alemanha, O papel da violência na história e A questão militar prussiana e o partido operário alemão. Esses textos, entre outros, formam uma espécie de narrativa da malfadada revolução burguesa alemã, aparentemente sempre inconclusa.

AS GUERRAS CAMPONESAS NA ALEMANHA

As Guerras Camponesas na Alemanha, publicado em 1850 na revista Nova Gazeta Renana, escrita sob o impacto da contra-revolução européia, foi uma espécie de ensaio preparatório para poder entrar na história contemporânea daquele país. Nele o autor procurou as origens mais remotas dos dilemas alemães do seu tempo. Para Engels – e quase toda historiografia marxista -, “a reforma protestante foi a primeira grande e decisiva batalha da longa luta da burguesia européia contra o feudalismo”. (Prefácio ao livro “Do socialismo utópico ao socialismo científico” – 1892). Este foi o ato inaugural – diria mesmo pré-histórico – da chamada revolução burguesa européia.

Para a sua elaboração de seu texto, Engels utilizou-se amplamente da obra História Geral da Grande Guerra Camponesa, escrita por Wilhelm Zimmerman e publicada entre 1840 e 1843. No período que Zimmerman redigiu seus livros ainda estavam se dando os primeiros passos na elaboração do que se chamaria materialismo-histórico. Por esse motivo, segundo Engels, o autor não  conseguiu “apresentar as questões religiosas e políticas debatidas na época (durante as guerras camponesas) como uma imagem fiel da luta de classes”. Apresentava-as apenas como conflitos entre “oprimidos e opressores, bons e maus” e não como resultado das lutas entre as diversas classes sociais. Assim, as vicissitudes desse trabalho pioneiro e “digno de louvor” estariam ligadas aos limites da própria época histórica na qual foi escrito.

Mas, qual era o objetivo de Engels com o seu texto? O que pretendia demonstrar? Ele próprio nos responde: “empenhei-me em provar que o regime político da Alemanha, os levantes contra esse regime, as teorias políticas e religiosas da época não eram as causas, mas os resultados do grau de desenvolvimento que haviam chegado, naquele país, a agricultura, a indústria, as vias de comunicação terrestres, fluviais e marítimas, as finanças e o comércio”. E, conclui: “tal concepção, que é a única concepção materialista da história, provém de Marx”.

Havia, no entanto, uma outra razão, de fundo político. Voltemos a Engels: “O paralelo entre as revoluções alemãs de 1525 e as de 1848-1849 era por demais evidentes para que eu não fosse tentado a estabelecê-lo”. Continua: “Tempo houve que a Alemanha produzia homens que se podem comparar aos melhores revolucionários de outros países (…). Naquela época os camponeses e plebeus alemães acariciavam projetos que ainda hoje causam espanto a seus descendentes”. Por outro lado, “as mesmas classes e frações de classes que traíram o movimento de 1848 e 1849 são as que encontramos como traidoras em 1525, se bem que em etapa inferior de seu desenvolvimento (…). Nossos grandes burgueses agiram, em 1850, exatamente como os burgueses médios de 1525”.

Vejamos agora o quadro da Alemanha que precedeu às guerras camponesas do século XVI: “Enquanto que na França e na Inglaterra o desenvolvimento do comércio e da indústria acarretou a criação de interesses gerais no país inteiro e, com isso, a centralização política, a Alemanha não passou do agrupamento de interesses por províncias, em torno de centros puramente locais o que trouxe consigo a fragmentação política que logo se estabilizou pela sua exclusão do comércio mundial (…). As cidades livres e os cavaleiros do Império formavam alianças e guerreavam-se entre si, ou contra os príncipes e imperadores (…). A opressão exercida pela nobreza crescia de ano para ano. Os servos eram explorados até a última gora de sangue”.

Diante desse quadro de amplo predomínio clérico-feudal formaram-se duas oposições: “A oposição burguesa, precursora do liberalismo dos nossos dias, que compreendia os burgueses médios e ricos, como também uma parte da pequena burguesia”. E a “oposição plebéia” que se compunha de “burgueses arruinados e da massa citadina excluída do direito de cidadania: oficiais, jornaleiros e numerosos representantes do lupemproletariado que se encontrava nas etapas inferiores do  desenvolvimento urbano”.

Esta “oposição plebéia”, em geral, não conseguiu se constituir como partido autônomo. “Apenas na Turíngia, sob a influência direta de Munzer e em outras partes graças a seus discípulos, a fração plebéia das cidades foi arrastada pela tempestade geral e o proletariado embrionário pode momentaneamente impor-se sobre todos os demais elementos em luta. Este episódio, que constituiu o ponto culminante da guerra camponesa, simbolizado pela figura gloriosa de Thomas Munzer, é também o mais curto”. Como é possível notar, existia por parte de Marx e Engels uma grande admiração em relação aquele reformador religioso e social.

Os camponeses se constituíam na classe mais numerosa e oprimida da Alemanha. Eles “suportavam o peso total de todo edifício social: príncipes, funcionários, nobreza, clero, patrícios e burgueses (…). Todos os tratavam como simples objeto, pior que as bestas de carga. (…) A maior parte do tempo deviam trabalhar nas terras do senhor; com o (pouco) que ganhavam nas suas tarefas livres tinham ainda que pagar os dízimos (…), os impostos regionais e imperiais. Não podiam casar-se, nem morrer, sem que o seu senhor lhes cobrasse alguma coisa”.

A unificação dessas classes e frações de classes em grandes partidos regionais e nacionais estava comprometida pela excessiva descentralização territorial e política existente. O que conhecemos hoje por Alemanha ou mesmo Prússia ainda não existia. Seriam as idéias políticas revolucionárias e conservadoras, sob formas primárias de concepções religiosas, que reorganizariam as classes em blocos sócio-políticos, formando três grandes campos: “o católico, ou reacionário, o luterano, burguês-reformista, e o revolucionário”.

O peso do elemento religioso jogaria um véu sobre as causas mais profundas daqueles violentos conflitos que dividiriam a imberbe nação alemã, ainda em processo de formação. Esclareceu Engels: “a ideologia alemã quer ver nas lutas que ocorreram na Idade Média apenas como uma ardorosa disputa teológica”. Mas, “nas chamadas guerras religiosas do século XVI tratava-se, sobretudo, dos interesses materiais e de classes muito concretos e estas guerras foram lutas de classes (…). O fato dessas lutas de classes se travarem com pretextos religiosos e dos interesses, reivindicações e necessidades das diversas classes se ocultarem sob o manto da religião, em nada muda os seus fundamentos. Isso se explica facilmente pelas circunstâncias da época”.        

Naquele período, “qualquer ataque geral contra o feudalismo devia primeiramente dirigir-se contra a Igreja. Todas as doutrinas sociais e políticas deveriam ser, em primeiro lugar, heresias teológicas”. Até na Inglaterra, as revoluções burguesas também se deram sob a cobertura das heresias religiosas, como o calvinismo. Somente com a grande Revolução Francesa de 1789 pode ser retirado o “véu religioso” e procurou-se travar todas as lutas no campo “abertamente político”. Esta foi também a primeira revolução que “levou realmente o combate até ao aniquilamento de um dos combatentes, a aristocracia, e ao triunfo completo do outro: a burguesia”.   

No  caso alemão, existiam dois grandes tipos de heresias, ligadas a bases sociais bastante distintas. “A heresia que expressava os anelos entre plebeus e camponeses e que quase sempre davam origem a sublevações (…) fazia suas todas as reivindicações da heresia burguesa que se referiam aos padres, ao papado e a restauração da Igreja primitiva, mas ia além. Pedia o estabelecimento da igualdade cristã entre todos os membros da comunidade e seu reconhecimento como uma norma para a sociedade inteira. A igualdade dos filhos de Deus devia traduzir-se na igualdade civil e mesmo social de todos os cidadãos”. Outro tipo de heresia bem mais comedida era a de Lutero, que representava a pequena nobreza (os príncipes) e a burguesia nascente.

Engels, então, faz uma analogia entre Lutero (e suas heresias) e as correntes liberal-burguesas atuantes no início da revolução alemã de 1848. “Quando, em 1517, Lutero atacou pela primeira vez o dogma e as instituições da Igreja católica, sua posição não tinha caráter bem definido (…). No primeiro momento era preciso reunir todos os elementos da oposição, tinha de demonstrar uma energia revolucionária mais decidida. Era preciso representar a totalidade das heresias em face da ortodoxia católica (…). Porém essa fúria revolucionária do princípio não durou muito (…). Os partidos se separaram e escolheram seus representantes. Lutero teve que escolher (…) (e) não vacilou em nenhum momento. Deixou para trás os elementos populares do movimento para unir-se ao séqüito burguês, aristocrático e monárquico. Silenciaram-se os apelos à guerra de extermínio contra Roma.”. Assim, “manifestou-se as escâncaras o caráter eminentemente burguês da reforma oficial”. E “quanto mais se separava dos elementos plebeus e camponeses mais tendia a reforma (protestante) burguesa a cair sob o domínio dos príncipes”.

No início Lutero apoiou o levante camponês contra o clero e parte da nobreza, mas quando ele se transformou numa verdadeira guerra popular passou a defender o esmagamento violento da revolta. Numa de suas viagens ele testemunhou as revoltas camponesas e escreveu um texto que afirmava: ” contra as hordas de camponeses (…), quem puder que bata, mate ou fira, secreta ou abertamente, lembrando que não há nada mais peçonhento, prejudicial e demoníaco que um rebelde”. E assim foi feito.

Eram outras a essência e a base social do pensamento de Thomas Munzer. A sua doutrina política “procedia diretamente de seu pensamento religioso revolucionário e adianta-se à situação social e política de sua época da mesma maneira que sua teologia às idéias e conceitos correntes. Se a filosofia religiosa de Munzer se aproximava do ateísmo, seu programa político tinha afinidade com o comunismo”. A sua “energia revolucionária” “era um reflexo da fração mais avançada dos plebeus e dos camponeses”.

Existiria, contudo, um limite estrutural nas propostas de Munzer. Ela estava muito à frente das possibilidades do seu tempo histórico. Nisso, justamente, residia seu sentido trágico. “O pior que pode suceder ao chefe dum partido revolucionário, escreveu Engels, é ver-se forçado a tomar o poder num momento que o movimento ainda não está amadurecido para que a classe que representa possa assumir a direção e aplicar as medidas necessárias ao seu domínio (…). Encontraria, pois, necessariamente diante de um dilema insolúvel: o que realmente pode fazer acha-se em contradição com toda sua atuação anterior, com seus princípios e com os interesses imediatos do seu próprio Partido; e o que deve fazer não é realizável. Numa palavra: vê-se forçado a representar não o seu partido e a sua classe, mas sim a classe chamada a dominar naquele momento”; no caso, a burguesia. Munzer foi preso, torturado, julgado num tribunal de príncipes e depois executado.

A classe que Munzer representava, o proletariado, “acabava de nascer”. As mudanças de estrutura social “que ele imaginara não tinham o menor fundamento nas condições materiais existentes onde se achava em gestação uma ordem social que ia ser exatamente contrária à ordem social que havia sonhado”. Por isso, “esta revolução social que tanto horrorizava os burgueses protestantes da época, não passou, na realidade, de um ensaio tímido e inconseqüente para estabelecer prematuramente a atual sociedade burguesa”. Segue Engels: “A mais grandiosa tentativa revolucionária do povo alemão terminou por uma derrota vergonhosa e uma opressão redobrada (…). Os príncipes foram os únicos que puderam tirar algum proveito dos resultados da guerra camponesa”, através da centralização provincial e expropriação dos bens do clero católico. “O principal efeito das guerras camponesas foi consolidar a divisão política da Alemanha”, reforçando os elementos feudais, efeito oposto ao desejado por uma revolução política burguesa.

A guerra camponesa na Alemanha teve seu auge entre 1524 e 1525. Foi uma das páginas mais sangrentas da história européia. Estima-se que cerca de 300 mil camponeses tenham se envolvido em que 130 mil tenham morrido. Levaria alguns séculos para que a revolução se colocasse novamente na ordem do dia.

REVOLUÇÃO E CONTRARREVOLUÇÃO NA ALEMANHA

Em Revolução e contrarrevolução na Alemanha – artigos, publicados no New York Daily Tribune entre 1851 e 1852 – Engels fez um balanço da revolução alemã de 1848. Os textos foram assinados por Karl Marx e somente em 1913 foi descoberto o seu verdadeiro autor. Esta foi a maneira encontrada por Engels para ajudar Marx, que estava sem condições de escrever os artigos com que havia se comprometido.

O texto se inicia com a frase: “O primeiro ato do drama revolucionário no continente europeu terminou”, e prossegue: “não pode imaginar-se uma derrota mais assinalável que a sofrida pelo partido – ou antes: pelos partidos revolucionários continentais”. Reproduzia o que ocorrera em 1525, em outras condições.

Para se entender as derrotas sofridas pela revolução era preciso romper com as respostas fáceis que procuravam jogar a responsabilidade nas costas de alguns líderes sempre propensos à traição. Como se as vitórias ou derrotas dependessem exclusivamente de suas atitudes heroicas ou pusilânimes. Segundo Engels, as verdadeiras causas não deveriam ser procuradas “nos esforços, talentos, faltas, erros ou traições acidentais de alguns dirigentes, mas no estado geral e nas condições de existência de cada uma dessas nações convulsionadas”. Continua: “Mas, quando se questionam as causas dos sucessos contrarrevolucionários, é se confrontando de todos os lados com a resposta de que foi o senhor Este ou o cidadão Aquele que ‘traiu’ o povo.

Resposta (…) que em circunstância alguma explica o que quer que seja – nem mesmo mostra como é que veio a acontecer que o ‘povo’ consentisse, deste modo, em ser traído”. O trotskismo viria a incorporar a “teoria” da traição para explicar a maioria das derrotas das revoluções operárias e populares pós-Revolução Russa.

Engels passa então a descrever o intrincado processo revolucionário alemão – cujo conteúdo era ainda democrático-burguês. Num certo momento do seu desenvolvimento econômico e social, a burguesia alemã esbarrou com “a constituição política do país – com suas divisões fortuitas entre trinta e seis príncipes com tendências e caprichos em permanente conflito; pelos grilhões feudais à volta da agricultura e do comércio (…). A consequência natural disso foi a sua passagem em massa ao campo da oposição”. A situação miserável na qual se encontrava a Alemanha, em grande parte, era o resultado da derrota das rebeliões camponesas do século XVI.

O tom oposicionista aumentou quando o novo rei da Prússia, Frederico-Guilherme IV, não cumpriu suas promessas liberalizantes. As classes médias – entenda-se burguesia – “descobriram o seu erro e voltaram-se ferozmente contra o rei (…) e foram até o ponto de uma aliança com o Partido filosófico extremo (…). O fruto desta aliança foi o surgimento da Gazeta Renana de Colônia, em 1842.” O diretor deste jornal era um moço bastante radical chamado Karl Marx, que na época não passava de um hegeliano de esquerda.

Qual a situação da classe operária alemã naqueles anos? Explica Engels: “O próprio movimento da classe operária nunca é independente, nunca tem um caráter exclusivamente proletário, antes de que todas as diferentes facções da classe média e, particularmente, sua facção mais progressista, os grandes manufatureiros, tenham conquistado o poder político e remodelado o Estado de acordo com suas necessidades”. Aqui está uma ideia recorrente em Marx e Engels: os operários só podem se constituir plenamente enquanto classe no bojo do processo de revolução burguesa e não fora do seu curso real.

Na segunda metade da década de 1840, a Alemanha já estava próxima de realizar a sua revolução burguesa. Os acontecimentos franceses de fevereiro de 1848, que puseram abaixo o reinado de Luiz Felipe, apenas apressaram-na e deram a ela um novo rumo. “A revolução de fevereiro derrubou, na França precisamente, o mesmo tipo de governo que a burguesia prussiana estava tentando estabelecer no seu próprio país”; ou seja: uma monarquia liberal constitucional.

Ironicamente, a burguesia alemã só poderia se afirmar contra os feudais e seus aliados apoiando-se nas forças populares, entre as quais se incluía o jovem proletariado. Coisa que temia fazer, especialmente depois dos acontecimentos na França.

Em 18 de março eclode uma insurreição na Prússia. Os burgueses exigem uma Constituição liberal. Mas mantêm intacto o trono, pois acreditavam ser esse “o único obstáculo existente contra a anarquia”, representada pelo povo em armas. Ao colocar-se sob a proteção do manto real, a burguesia condenava o seu próprio movimento ao fracasso. O rei só esperava o momento mais adequado para despachar os inconvenientes liberais. A grande oportunidade surgiria em junho após a derrota do levante dos operários parisienses. São justamente desse período “os primeiros planos do velho partido feudal-burocrático para se ver livre dos seus aliados momentâneos, as classes médias, e para restaurar a Alemanha ao estado em que se encontrava antes dos acontecimentos de março”. O liberalismo político e um regime sob controle da burguesia – quer na sua forma monárquica ou republicana – estavam definitivamente condenados na Alemanha pelas próximas décadas.

O papel da violência na história

Em O papel da violência na história, Engels analisa o processo da Revolução Alemã e o bonapartismo. O opúsculo tem duas partes: a primeira (teoria da violência)era na verdade três capítulos do livro AntiDühring (1878), e a segunda (“Violência e economia na instauração do império alemão”), escrita entre 1887 e 1888, serviria como uma espécie de ilustração histórica da teoria da violência. Nele, afirmou: “A divisão da Alemanha em pequenos Estados com suas distintas e múltiplas legislações comerciais e os ofícios havia de converter-se logo em trava insuportável para essa indústria cujo nível havia se elevado imensamente e para o comércio que dependia dela (…). Daí se vê que as aspirações de uma ‘pátria’ única tinham uma base muito material”.

A burguesia alemã se encontrava presa numa contradição difícil de ser resolvida. Ela “exigia uma transformação revolucionária da Alemanha, possível somente mediante a violência e, portanto, por meio de uma ditadura. Mas a partir de 1848, a burguesia havia mostrado (…) que não tinha nem a sombra da energia necessária para realizar uma ou outra coisa, sem falar nas duas coisas de uma vez”. Passava, desde as barricadas de junho em Paris, a ter mais medo das massas populares que do absolutismo monárquico. Em outra oportunidade, Engels diria: “nesse momento a burguesia alemã amedrontou-se mais com o proletariado francês do que com o proletariado alemão, pois os combates de junho de 1848 mostraram-lhe o que a esperava”.

A revolução burguesa na Alemanha devia seguir por outro caminho – mais longo e menos radical que o da sua congênere francesa. Contraditoriamente, seu executor seria um típico junker: o chanceler prussiano Oto Von Bismarck. Este, nas palavras de Engels, “combateu ao extremo as exigências parlamentares da burguesia. Porém, ardia de desejo de fazer valer suas reivindicações nacionais (…). Se cumprisse uma vez mais a vontade da burguesia contra a vontade dela mesma, se levasse à prática a unificação da Alemanha, tal como havia sido formulada pela burguesia (…), Bismarck se converteria num ídolo dos burgueses”. E isso foi o que ocorreu.

Após uma vitória militar sobre a rival Áustria em 1866, a Prússia incorporou três Estados alemães (o Reino de Hanôver, o Grão-Ducado de Hesse, o Ducado de Nassau)e uma cidade livre (Frankfurt). Proclamou uma nova Constituição, elaborada por um parlamento (Reichstag) eleito através do sufrágio universal. “Dito em outras palavras”, constatou Engels, “aquela era uma revolução completa levada a cabo com meios revolucionários. Por isso, estamos longe de reprová-lo (referindo-se a Bismarck). Ao contrário, lhe reprovamos é não haver sido suficientemente revolucionário, e haver sido nada mais que um revolucionário prussiano pelo alto (…), de ter-se contentado, uma vez tomado o caminho das anexações, com apenas quatro miseráveis pequenos Estados”. As anexações, para Engels, deveriam ter sido em maior número e atingido os Estados alemães fronteiriços à França.

Continuou ele: com a vitória dos prussianos sobre a Áustria, as “pretensões liberais da burguesia alemã haviam sido enterradas por muito tempo, porém suas exigências nacionais se cumpriam cada dia mais. Bismarck fez realidade seu programa nacional com uma rapidez e precisão que a assombraram”. A nova Constituição federal “suprimiu as relações econômicas mais importantes da legislação dos Estados e as submeteu à competência da Confederação, a saber: o direito civil comum e liberdade de circulação em todo o território (…), o direito de domicílio (…). Assim se eliminaram, enfim!, as mais monstruosas manifestações do sistema dos pequenos Estados, que impediam mais que tudo o desenvolvimento do capitalismo”. Algo que ele considerava bastante progressista.

A situação criada pelas derrotas das “guerras camponesas” e pela revolução de 1848 começava a ser superada. A acachapante vitória sobre Napoleão III na Guerra franco-prussiana em 1870 completaria a obra, garantindo a unificação e a constituição do Império alemão. Desde então, o capitalismo conheceu um rápido desenvolvimento, consolidando o país como a segunda potência industrial europeia, logo atrás da Inglaterra. Nisso, justamente, consistiu a revolução “pelo alto” realizada por Bismarck.

Prefácio à Guerra camponesa

Escrito em 1874 – após ter se completado a unificação alemã sob hegemonia da Prússia –, o Prefácio à Guerra camponesa na Alemanha continua tratando das dificuldades da burguesia alemã em assumir o poder de Estado, ou melhor, do seu acomodamento em deixá-lo nas mãos da burocracia junker. Pergunta-se Engels: “Os capitais dos industriais acumularam-se rapidamente, aumentando consequentemente a importância social da burguesia (…). Como é então possível que a burguesia não haja também conquistado o domínio político e se conduza tão covardemente em face ao governo?”.

A resposta estava ligada à fase do desenvolvimento do capitalismo europeu e ao grau atingido pela luta de classes, especialmente entre a burguesia e o proletariado. “A burguesia alemã tem a infelicidade (…) de chegar sempre tarde demais. Sua prosperidade coincide com um período em que a burguesia de outros países da Europa ocidental está politicamente em declínio”. Assim, “não é mais possível hoje que a burguesia possa tranquilamente instaurar o seu poder político na Alemanha”.

Surge então uma tese relativamente nova – o desenvolvimento de uma ideia já presente em O 18 de Brumário de Louis Bonaparte (1851-1852) de Marx: “o que distingue a burguesia de todas as classes que governaram antes dela é que, em seu desenvolvimento, há uma virada a partir da qual todo acréscimo de seus meios de poder, principalmente de seus capitais, apenas contribui a torná-la cada vez mais inapta ao domínio político. A partir desse momento perde a força de manter com exclusividade seu domínio político; procura aliados com quem dividir seu poder ou a quem cedê-lo completamente, conforme as circunstâncias”. Isso, muitas vezes, é apresentado como se fosse uma lei inexorável do desenvolvimento histórico. Uma inaptidão estrutural da burguesia para exercer diretamente o poder político numa determinada fase do desenvolvimento capitalista, especialmente após a entrada em cena do proletariado. Algo que se mostrou incorreto. O bonapartismo é uma das formas que o Estado no capitalismo pode adquirir, mas não é a forma finalmente encontrada pela burguesia. Em situações normais – de pressão e temperatura – ela preferiria reinar através da democracia liberal.

O rápido e poderoso desenvolvimento industrial substituiu a luta entre junkers e burgueses, que caracterizou os conflitos de classe na Alemanha até meados do século XIX, pela luta entre burgueses e operários. A partir de então a monarquia deixou de ser um instrumento de proteção da aristocracia rural contra a burguesia ascendente (ou de equilíbrio entre elas) e passou a ser um instrumento na defesa dos interesses e segurança de todas as classes proprietárias. A velha monarquia absolutista teve que se transformar numa monarquia de tipo bonapartista.

Os aspectos progressistas dessa forma de Estado na Prússia – ao contrário do que aconteceu na França de Louis Bonaparte – foi salientado por Engels: “essa transição foi o maior passo à frente que a Prússia deu a partir de 1848”, pois “o bonapartismo é, de certo modo, uma forma moderna do Estado que implica a supressão do feudalismo (…). Naturalmente isso ocorre sob formas mais atenuadas e, como diz o provérbio, ‘quem vai devagar, vai sem parar’”. E conclui: “Foi assim, então, que o estranho destino da Prússia quis que ela atingisse, em fins deste século XIX, sob a forma agradável do bonapartismo, sua revolução burguesa, começada em 1808-1813 e que deu outro passo em 1848. E se tudo for bem, se o mundo permanecer sereno e tranquilo, quando todos nós já formos muito velhos, poderemos talvez ver, em 1900, o governo da Prússia atingir enfim o ponto em que se encontrava a França em 1792”. Através do bonapartismo, a burguesia compraria “a emancipação social gradual ao preço de uma renúncia de seu próprio poder político”.

Esta mesma tese havia sido exposta por Engels dois anos antes no texto A Questão da habitação (1872): “Na Prússia (…) existe, ao lado de uma nobreza latifundiária e ainda forte, uma burguesia relativamente jovem e, sobretudo, muito covarde que continua sem conquistar nem a dominação política direta, como na França, nem a mais ou menos indireta como na Inglaterra. Mas, além destas duas classes, existe um proletariado intelectualmente muito desenvolvido, que cresce rapidamente e que se organiza cada vez mais. Portanto, encontramos aqui, além da condição fundamental da antiga monarquia absoluta – o equilíbrio entre a nobreza fundiária e a burguesia – a condição fundamental do bonapartismo moderno – o equilíbrio entre a burguesia e proletariado.” Assim, “o verdadeiro poder governamental se encontra nas mãos de uma casta particular de oficiais e funcionários que na Prússia se recrutam em parte entre suas próprias fileiras, em parte entre a pequena nobreza – mais raramente entre a alta nobreza e em grau ainda menor entre a burguesia. A autonomia desta casta, que aparece fora e, por assim dizer, acima da sociedade, dá ao Estado a aparência de autonomia em relação à sociedade”. Esta formulação não se encaixa plenamente na definição sintética formulada no Manifesto do Partido Comunista pela qual o Estado é visto simplesmente como o “comitê executivo da burguesia”.

Já falamos num artigo anterior que Engels influenciou fortemente a redação de O 18 Brumário de Louis Bonaparte. Sem medo de ser enfadonho, repito aqui trechos daquela importante correspondência dirigida a Marx no dia seguinte ao golpe de Estado de Louis Napoleão. “A história da França, alcançou um estágio completamente cômico. Não poderia haver nada mais ridículo que esta paródia de 18 de Brumário realizada em tempos de paz, com a ajuda de soldados descontentes, pelo ser mais insignificante do mundo e que não encontrou até agora (…) nenhuma resistência (…). Na verdade, parece que o velho Hegel dirige de sua tumba a história no papel de espírito mundial, cuidando com a maior atenção a que todos os acontecimentos apareçam duas vezes: a primeira sob a forma de tragédia e a segunda na forma miserável de farsa. Caussidière por Danton, Louis Blanc por Robespierre, Barthelemy por Saint-Just, Flocon por Carnot, e o lunático Louis Napoleão, com meia dúzia de oficiais desconhecidos e cheios de dívidas em vez do pequeno cabo Napoleão I com sua turma de marechais. Estaríamos já no 18 de Brumário”. Assim começa Karl Marx o seu livro magistral: “Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. Caussidière por Danton, Louis Blanc por Robespierre, a Montanha de 1845-1851 pela Montanha de 1793-1795, o sobrinho pelo tio. E a mesma caricatura ocorre nas circunstâncias que acompanham a segunda edição do Dezoito de Brumário”.

A questão militar prussiana e o Partido Operário Alemão (1865)

Voltemos à Alemanha. Bismarck chegou ao poder em 1862. A partir de então, Engels se debruça mais detidamente sobre o fenômeno bonapartista. O primeiro resultado dos seus estudos foi o panfleto A Questão militar prussiana e o Partido Operário Alemão (1865). Um texto pouco conhecido entre nós. Escreveu ele: “O Bonapartismo é a forma necessária de Estado num país onde a classe operária, ainda que tenha atingido um alto nível de desenvolvimento nas cidades, mas numericamente inferior aos pequenos camponeses no campo, foi vencida num grande combate revolucionário pela classe dos capitalistas, a pequena burguesia e o exército (…). Ele (o Estado) defende a burguesia dos ataques violentos dos operários, encoraja escaramuças pacíficas entre as duas classes e em tudo priva tanto uns como outros de quaisquer vestígios de poder político”.

Em A Origem da família, da propriedade privada e do Estado (1884) Engels escreveria: “Existem períodos em que as classes em luta estão equilibradas, que o poder de Estado, como mediador aparente, adquire certa independência momentânea em relação a cada uma delas. Neste caso se encontra a monarquia absoluta do século 17 e 18, que mantinha o equilíbrio entre a nobreza e a burguesia; e neste caso estiveram o bonapartismo do I Império francês, e sobretudo o segundo, valendo-se dos proletários contra a burguesia, e desta contra aqueles. A mais recente produção desta espécie, onde opressores e oprimidos aparecem igualmente ridículos, é o novo Império alemão da nação bismarckiana”. Como podemos ver, os casos nos quais o Estado adquire certa autonomia diante das classes em luta não são tão raros na história.

Em carta a Marx, de 13 de abril de 1866, quando Bismack instaura o sufrágio universal, afirmou: “Ao que parece, depois de certa resistência, o burguês alemão se conformou com isso, pois o bonapartismo é a verdadeira religião da burguesia contemporânea. Cada vez mais fica claro para mim que a burguesia é incapaz de governar diretamente, e por isso ali onde não existe uma oligarquia que em troca de uma boa remuneração (como se faz aqui na Inglaterra) pode-se encarregar de dirigir o Estado e a sociedade no interesse da burguesia, a forma normal é a semiditadura bonapartista. Esta defende os interesses materiais essenciais da burguesia até contra sua própria vontade, mas ao mesmo tempo não lhe concede acesso ao poder político”.

O caráter universal do bonapartismo – entendido como autonomia relativa do Estado e sua burocracia em relação à sociedade – poderia ser constatado no próprio exemplo da “democracia” estadunidense na segunda metade do século XIX. No prefácio à coletânea Guerra civil na França, de Marx, escrito em 1891, Engels afirmou: “A sociedade tinha criado originalmente os seus órgãos próprios, por simples divisão de trabalho, para cuidar dos seus interesses comuns. Mas, esses órgãos, cuja cúpula é o poder de Estado, tinham-se transformado com o tempo, a serviço de seus próprios interesses particulares, de servidores da sociedade em senhores dela. Como se pode ver, por exemplo, não meramente na monarquia hereditária, mas igualmente na República democrática.

Em parte alguma os ‘políticos’ formam um destacamento da nação mais separado e mais poderoso do que precisamente na América do Norte (…). É precisamente na América que podemos ver melhor como se processa esta autonomização do poder de Estado face à sociedade, quando estava destinado a ser mero instrumento dela”. Para o filósofo italiano Domenico Losurdo, o bonapartismo é quase uma forma de ser do Estado burguês desde a segunda metade do século XIX – “uma verdadeira religião da burguesia”, como diziam Marx e Engels. Uma tese instigante e polêmica.

Temas como bonapartismo e autonomia relativa do Estado foram praticamente abandonados pela tradição comunista (marxista-leninista) até pelo menos a década de 1960 – excetuando-se as contribuições originais de Gramsci e Lukács, mas que se mantiveram marginais. Contudo, adquiriram um novo vigor através de trabalhos de intelectuais como o de Nicos Poulantzas.

Nota:
(1) Refiro-me ao artigo “Engels diante de Marx: o segundo violino”.

Bibliografia
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* Este texto é uma versão modificada da apresentação feita no Seminário Leituras Marxistas, atividade promovida pelo programa de Pós-Graduação em Educação da Unicamp e Grupo de Estudos e Pesquisas História, Sociedade e Educação no Brasil (histedbr), sob a coordenação do professor José Claudinei Lombardi.e realizado no segundo semestre de 2011.  
** Augusto Buonicore é historiador, secretário-geral da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira e Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas, ambos publicados pela Editora Anita Garibaldi.