Recorrente em inúmeras passagens do Manifesto, a designação de classe dos proletários como sendo a classe dos operários modernos, da grande indústria, decorre da concepção marxista – ou da teoria de Marx e Engels – da sua emergência na gênese, constituição e dinâmica do modo de produção capitalista.

Com efeito, a configuração da classe operária propriamente dita, nos remete ao processo da passagem das fases do capitalismo de cooperação simples, manufatura e grande indústria – culminando a introdução do que Marx denominava de sistema de máquinas. É também por isso que ele afirma, logo em seguida à frase acima transcrita, em epígrafe, que o “proletariado, a classe dos operários modernos”, desenvolve-se simultaneamente à burguesia, tendo esta o seu capital aumentado na medida em que esses proletários “só vivem enquanto têm trabalho e só têm trabalho” na medida em este trabalho aumentar o capital.(1) Daí que, com a expansão da maquinaria e a divisão do trabalho – afirmam Marx e Engels – o trabalho “dos proletários” perdeu todo caráter independente e, portanto, todos os atrativos “para os operários” (ibidem).

Por sua vez, essa relação se processa na medida em que “as demais classes vão se arruinando e soçobram com a grande indústria: o proletariado é o produto mais característico dela” (p. 71). Ou seja: apenas com a conformação da indústria moderna, transformadora da pequena oficina do mestre patriarcal na grande fábrica capitalista – “massas de operários, apinhados nas fábricas, são organizados como exército” (p. 68) –, as camadas sociais médias, “até aqui” os pequenos industriais e comerciantes, os rentiers, os artífices, os camponeses, se “afundam no proletariado”, que, deste modo, “é recrutado de todas as classes da população” (p. 69).

Colocada essa questão, à época nesses termos, examinemos: há mesmo similaridade na caracterização de classe operária e proletariado?

O destacado filósofo português Vasco Magalhães-Vilhena, por exemplo, diz que nada justifica a tradução da obra de Engels “The Situacion of the Working Classe in England, 1844”, do modo como aparece nas versões francesas – bem distintas das versões em alemão e inglês –, assim como a traduzida correntemente em português para “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra em 1844”.

Sobre o assunto – assegura Magalhães-Vilhena –, Engels precisou: “Da mesma maneira utilizei correntemente, como sinônimos, as expressões ‘operários’, ‘Working men’ e ‘proletários’, ‘classe operária’ e ‘proletariado’”. (Magalhães-Vilhena, 1984: 127). (2) O que em nada se contradita com a descrição de Engels, no “Prefácio” à edição inglesa do Manifesto (1888), que compreende o proletariado como a classe dos trabalhadores assalariados modernos, despossuidores de meios de produção próprios e obrigados a vender sua força de trabalho para sobreviver.

Sobre outra questão fundamental, Magalhães-Vilhena interpreta que Engels, em “O socialismo: da Utopia à Ciência” – tradução correta do alemão para o português, ao invés de “Do socialismo utópico ao socialismo científico” –, designa o socialismo científico como sendo “expressão teórica do movimento proletário”. O que coloca à “classe operária do modo de produção capitalista”, a tarefa histórica de infundir essa compreensão na classe revolucionária, classe ainda oprimida, mas uma classe cuja posição social objetiva nas relações capitalistas resulta inelutavelmente, de maneira socialmente necessária, o seu papel de agente humano por excelência da “iniciativa histórica” do processo de transformação da sociedade capitalista (Op. cit, p. 129; g. n.). E, atacando os que aí enxergam nessa posição social prospectiva um messianismo vulgar, uma doutrina escatológica ou religiosa, afirma o marxista português que tal impropriedade (com a expressão substitutiva “missão histórica do proletariado”) tem sido utilizada para “desqualificar o caráter científico do marxismo-leninismo” (idem, 129-130).(3)

Sob outro ângulo, Marx, analisando o processo decisivo para a criação do valor (mais-valia) na dinâmica do modo capitalista de produção, aponta em inúmeras passagens do “Capítulo VI” (inédito) do Livro I de O Capital, uma mais completa e profunda relação entre a classe operária (o proletariado), o capitalista e o sistema de máquinas. Ali, assinala que é sobre a base da subsunção (subordinação, “absorção”) formal, que emerge um modo de produção “específico”, não apenas tecnologicamente, mas totalmente transformador, da natureza real do processo de trabalho e suas condições reais. No modo capitalista de produção, o maquinismo traz consigo “a subsunção real do trabalho no capital [que] só se opera quando ele entra em cena”(4)

A partir daí, uma revolução total se efetua, prossegue e se repete continuamente, no próprio modo de produção, na produtividade do trabalho e na relação “entre capitalista e operário”, “com a subordinação real do trabalho no capital” – assevera Marx. Tais transformações desenvolvem as forças produtivas sociais e, graças ao trabalho em “grande escala, chega-se à aplicação da ciência e da maquinaria à produção imediata” – base do “desenvolvimento da relação capitalista”; onde, a partir do mínimo determinado e sempre crescente (capital nas mãos de capitalistas individuais), “o capitalista tem que ser proprietário e usufrutuário de meios de produção à escala social” (pp. 89-90).

Entretanto, na mediada em que sobre a base da maquinaria se ergue a grande indústria, é nesta última que a produção capitalista encontra o veículo material adequado para superar as limitações técnicas da produção centrada no ofício manual da fase manufatureira anterior. Decididamente, esse processo “culmina com a produção de máquinas por meio de máquinas”, ou com a constituição do departamento produtor de meios de produção (DI – máquinas, equipamentos e instalações). É esse fenômeno o último passo da revolução industrial ou a constituição das forças produtivas adequadas ao capital.

É que, conforme argumenta Marx, no Volume I d’O Capital, “a grande indústria não teve outro remédio senão apoderar-se de seu meio característico de produção e produzir máquinas por meio de máquinas. Deste modo criou a base técnica adequada e se levantou sobre seus próprios pés”. Concretamente: já não mais encontrando entraves externos à acumulação capitalista, este movimento da acumulação do capital passa a depender de uma elevação contínua da produtividade do trabalho, bem como da elevação contínua da composição técnica e orgânica; que também se funda numa base técnica cuja dinâmica produtiva se concentra no capital e se estabelece na maquinaria.

Ou, como compara Marx, no Volume II dos Grundisse, “A máquina, dona da habilidade e da força, no lugar do trabalhador, é ela mesma virtuosa, possui uma alma própria presente nas leis mecânicas que nela operam, e, assim, como o trabalhador consome comestíveis ela consome carvão, azeite etc… com vistas a seu automovimento contínuo”.(5)

A partir das considerações assinaladas acima – numa primeira aproximação – poderíamos destacar diferenças existentes entre a classe operária, e outros trabalhadores assalariados? Há traços fundamentais na classe operária no movimento real de sua constituição, que a distinga?

Pensamos ter significativa atualidade, grande parte da sistematização conceitual de D. Pereira (1981: 20-23). Conforme sua descrição, os operários: a) são produtores que despendem sua força de trabalho na criação, reparação ou transporte de bens materiais, mas que se distinguem dos trabalhadores em serviços de intermediação comercial e financeira, bem como daqueles vinculados à superestrutura política e ideológica (bancários, funcionários públicos, jornalistas etc); b) são produtores diretos que agem diretamente sobre os objetos de trabalho ou envolvidos no transporte de produtos, mas distintos dos que trabalham na supervisão e controle, como engenheiros, chefes etc; c) são produtores proletários, ou desprovidos de meios de produção próprios, diferentemente daqueles que, mesmo diretos (artesãos, camponeses), ainda possuem ao menos parte dos meios de produção; d) são assalariados, ou seja, recebem salários correspondentes a somente uma parte do valor criado; e) são assalariados modernos, no sentido de que, desde a fase da cooperação simples, trabalham em formas coletivas da produção, até a de trabalho em complexas e minuciosas formas da divisão do trabalho, combina a ação de milhares de operários vinculados ao sistema da maquinaria – operário das fábricas e oficinas o cerne da classe (Lênin).(6)

Por outro lado, a concepção (antropológica/filosófica) marxista de trabalho implica no reconhecimento de: a) que ele é uma atividade racional (consciente) do homem, com o qual ele adapta os objetos da natureza assim buscando satisfazer as suas necessidades; b) que, ao criar sobre a natureza, o trabalho humano transforma a si, desenvolvendo sua cultura material, espiritual e suas aptidões físicas e também espirituais; c) que na natureza radica a vida humana, cuja racionalidade do trabalho pressupõe a construção de meios de produção sobre os objetos de trabalho – meios de produção sobre os quais a “adição” humana configuram as forças produtivas.

Inter-relacionadas, as duas questões acima colocadas (características da classe operária e uma outra dimensão do processo de trabalho) têm grande importância para nós.
Ou, como destacou recentemente M. Naves, a atividade orientada para o objeto, os meios de trabalho, volta-se a um fim que o produtor direto realiza para transformar determinada matéria em objeto útil; onde o objeto pode ser matéria não trabalhada, especialmente a terra, e aquela que já sofreu certo processamento (a matéria-prima).

Por um lado, os meios de trabalho são tudo aquilo interposto entre ele e o objeto de trabalho e um meio para transformar este último. Por outro, o sentido mais amplo envolve todas as condições objetivas possibilitadoras da produção. É por isso – prossegue Naves – que Marx dava enorme importância para os meios de produção estritamente falando, pois considerava que “não é o que se faz, mas como se faz… o que distingue as épocas econômicas” – as relações de produção capitalistas não são relações entre homens, mas entre classes e entre estas e os meios de trabalho. Isto significa que, segundo a compreensão de Marx em O Capital, a definição de processo de trabalho é uma atividade, onde a utilização dos meios de trabalho pelo trabalhador, “opera uma transformação do objeto de trabalho desde o início pretendida. O seu resultado é a produção de valores de uso, bens que satisfazem necessidades determinadas”.(7)

Mas é na tríade valor-dinheiro-capital que se deve compreender o desenvolvimento do “ciclo” verdadeiro de expressão da dinâmica exclusiva da valorização capitalista. Pois é nele que as mercadorias entre si exprimem-se como valores, sendo o processo de troca quem determina o valor de troca. Assim, é a mercantilização da produção que determina o trabalho abstrato como substância do valor; a revelação de cada trabalho como elemento social emana da sociabilidade do intercâmbio. Dito isto de maneira mais simples e clara: a) a análise de Marx sobre as mercadorias distingue seu aspecto técnico-material, do aspecto social, ou valor-de-uso e valor; b) trabalho concreto, e abstrato (técnico-material e social), são um e o mesmo trabalho incorporada nas mercadorias; c) mas, o caráter social deste trabalho, criador de valor e que se representa no valor, é

EDIÇÃO 65, MAI/JUN/JUL, 2002, PÁGINAS 64, 65, 66