Em 24 de agosto de 1954, um tiro disparado contra o peito do presidente Getúlio Vargas tiraria sua vida e incendiaria o país.

Vargas havia se suicidado.

Sua CartaTestamento lançava sobre os adversários a culpa pelo lance fatídico e de espetacular dramaticidade.

“Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida” –  dizia a Carta.

A mensagem foi lida em voz alta no Palácio do Catete e, depois, em todos os cantos do país. Publicada nos jornais e narrada pelo rádio, martelava a cabeça dos brasileiros com a acusação de que um crime havia sido cometido.

Vargas se colocava como vítima de um crime contra o País.

Um crime que jamais deveria ser esquecido. Por isso, na Carta, as palavras de quem se julgava “no caminho da eternidade”, saindo da vida “para entrar na História”.

Até hoje, o suicídio traz uma certeza incontestável. Ele representou, se não a única, pelo menos a mais poderosa arma de Vargas contra aqueles que o haviam cercado e queriam sua cabeça.

O presidente tomou a decisão de puxar o gatilho assim que recebeu sinais claros de que seria derrubado.

As Forças Armadas estavam completamente amotinadas. A Força Aérea, a mais agressiva contra Vargas, finalmente convencera o Exército a depor o presidente. Os ministros militares já haviam assumido o papel de carcereiros contra o chefe de Estado.

Com o suicídio, a oposição teve que esconder-se para não apanhar do povo nas ruas.

A morte de Vargas seria decisiva para projetar o trabalhismo, o PTB e a liderança de João Goulart.

O golpismo teria que aguardar mais uma década para uma nova tentativa – dessa vez, exitosa.


Tratado como criminoso, Vargas temia ser preso

Mesmo os melhores biógrafos de Vargas prestam pouca atenção para um aspecto fundamental desse suicídio.

Existe uma grande distância entre uma pretensão – derrotar os adversários – e a atitude de cometer o suicídio.

Vargas já havia sido deposto quase uma década antes, em 1945. Certamente, também em 1945 ele gostaria de derrotar seus adversários, mas nem por isso tirou a própria vida naquele momento.

A diferença entre os dois episódios é dada pelo contexto histórico da crise de 1954, diante da qual Vargas vislumbrou um desfecho ainda mais dramático que a deposição e mais tétrico que a morte.

Vargas temia que o tratamento que recebia – de criminoso, de chefe de uma quadrilha, de responsável por um mar de lama – o levasse ao constrangimento do julgamento e mesmo à prisão, assim como ao encarceramento de alguns de seus familiares, como o irmão, Lutero Vargas, acusado – de modo infundado – de ser o mandante do atentado na Rua Toneleros, no Rio de Janeiro, em 5 de agosto de 1954.

Como se sabe, membros da guarda pessoal, sem o conhecimento do presidente, arquitetaram eliminar o arquirrival de Vargas, Carlos Lacerda – “O Corvo”, a metralhadora giratória que desferia os golpes mais raivosos contra o governo.

Tentar assassinar Lacerda era, certamente, uma atitude primária, uma solução criminosa desprovida de qualquer tino político – algo que nunca combinaria com a astúcia de Vargas.

O atentado foi frustrado. Lacerda saiu vivo da Rua Toneleros. O pistoleiro acabou matando um major da Aeronáutica, Rubens Florentino Vaz.

O tiro no pé de Lacerda acabaria por atingir o peito de Vargas.

Lacerda tornou-se vítima e símbolo maior da oposição ao governo.

A Aeronáutica sentiu-se agredida diretamente e mobilizou-se para vingar a morte do major a todo custo. Em pouco tempo, os nomes dos membros da guarda pessoal, ligados ao atentado, apareceram.


Algo soa familiar?

A opinião pública foi atiçada contra Vargas por uma imprensa que o incriminava com uma simples suspeita: algo como a tentativa de assassinar Lacerda não poderia ter sido feito sem o conhecimento prévio e absoluto do presidente.

Ele deveria ser, sem sombra de dúvida, o chefe de quadrilha, o cabeça do bando de corruptos que estava levando a República a afundar em um mar de lama.

Afinal, tudo o que acontece no Palácio é do conhecimento, da responsabilidade e da má fé do presidente da República.

Algo soa familiar?

Para derrubar um presidente, basta uma forte suspeita, uma firme disposição da oposição em fabricar acusações e um enredo incriminatório vendido como notícia.

O afastamento de Vargas era defendido pela UDN como uma medida de caráter “jurídico”, nas palavras do udenista Afonso Arinos.

Vargas sabia que, ao contrário de 1945, não sairia do Palácio do Catete para um novo exílio em São Borja. A fúria contra si e seus familiares pretendia ir mais longe, para trancafiá-los por tempo suficiente para que não pudessem retornar ao poder.

O estigma que nele vestiriam seria o mais pesado possível, de preferência para que sua atividade política fosse sempre associada a práticas criminosas.

De novo, algo soa familiar?

Se não se pode vencê-lo, prenda-o.

O suicídio absolveu o presidente de todas as acusações.

Vargas morreu em 24 de agosto de 1954. O golpismo de seus adversários, não.


(*) Antonio Lassance é cientista político.

Publicado em Carta Maior