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São 40 crônicas selecionadas pelo próprio ministro em um trabalho de pesquisa de mais de um ano. O futebol foi a metáfora utilizada por Nelson Rodrigues para a apresentação e a divulgação de um Brasil eficiente e vitorioso.

Confira abaixo a sétima crônica da série: “Pra que essa gana destrutiva e bestial?”. O site do ministério publica dois textos por semana, aos domingos e às quintas-feiras.

“Leiam os nossos comentaristas. Eles só veem peladas por toda a parte. E assim tentam cavar entre o torcedor e o futebol um abismo irreversível.”

Pra que essa gana destrutiva e bestial? (1)

Amigos, fui testemunha, certa vez, de um fato prodigioso. Imaginem vocês que ia eu passando pelo cemitério, quando lá chegou um enterro. Alguém me esperava numa esquina próxima. Mas há um “charme” na morte, há um apelo que ninguém resiste. Entre um casamento, um batizado ou um enterro, qualquer um prefere o velório, embora este último não tenha os guaranás e os salgadinhos dos dois primeiros.

Diante de um caixão, o sujeito faz sempre esta reflexão egoísta e estimulante: “Ainda bem que eu não sou o defunto.” Mas, como ia dizendo: espiava eu o enterro, quando acontece uma coisa inédita: a multidão desandou a bater palmas. Nada se compara e nada descreve o meu assombro mudo. Pela primeira vez, eu via um defunto aplaudido. A meu lado, um cavaleiro berrava: “Bravos! Bravíssimo!” E só faltava pedir bis, como na ópera.

Ainda hoje me pergunto que méritos especiais e deslumbrantes teria esse cadáver para merecer tamanha apoteose fúnebre. Não importam as razões. O fato em si já constitui um escândalo bem singular. Assim, debaixo de palmas, lá foi enterrado o homem. E posso imaginar a perplexidade dos vermes, que se preparavam para roer-lhe as pobres carnes lívidas.

Da porta do cemitério passo para o Maracanã. Eu quero comparar as duas coisas: o defunto, aplaudido, e os jogos vaiados. Tão impróprias, inadequadas, insólitas como a apoteose fúnebre foram as vaias de sábado e domingo. Em dois dias, flagelamos quatro times, e com uma violência, uma implacabilidade nunca vistas.

No primeiro momento, ninguém soube o que pensar, o que dizer. Apareceram logo dois ou três paspalhões desfraldando a tese da sabedoria e infalibilidade de todas as vaias. Um colega puxou-me pelo braço e cochichou: “O povo não erra nunca!” Eu ia concordar. Súbito, porém, penso que esse mesmo povo salvou Barrabás e condenou Cristo. Enquanto crucificava o Messias, a multidão carregava o Barrabás na bandeja, e de maçã na boca, como um leitão assado.

De mais a mais, pode-se ter dado o caso da “vaia induzida”. Parte da crônica, com efeito, não sabe admirar, não gosta de admirar, e vive metendo o pau nos nossos jogos e nos nossos craques. Leiam os nossos comentaristas. Eles só veem peladas por toda a parte. E assim tentam cavar entre o torcedor e o futebol um abismo irreversível. Pra que essa gana destrutiva e bestial? Amigos, só Freud, em sua tumba, poderá explicar o “porquê”.

Lembro-me de certo cronista que num domingo foi desfeiteado pelo caçula, pela mulher e pela criada. Até o vira-latas da família rosnou contra ele. Quando o desgraçado saiu para o Maracanã, ventava fogo. Claro que, nessa tarde, ele desancou o jogo, os craques, o juiz e os bandeirinhas. E ninguém podia imaginar que, por trás de sua fúria, estavam seus dramas, frustrações e vergonhas familiares.

Mas voltemos à vaia. Como era um fato novo, não tínhamos meios e modos para um julgamento imediato. E ninguém viu o óbvio. Pergunto: que óbvio? Vaiava-se ali o maior futebol do mundo. Sim, vaiava-se o futebol bicampeão do mundo. Outro óbvio, que convém enxergar, é o da tal “vaia induzida” e, portanto, sem nenhuma justiça e nenhuma sabedoria.

Esse desamor não levará o Brasil a tricampeonato nenhum. O torcedor precisa saber que, em certa crônica, há uma aridez de três desertos. E a hora é de simpatia, de apoio, de estímulo, de solidariedade. Será que o futebol brasileiro tem que se exilar para ser aplaudido? Será que nossos times só podem ser amados em outros idiomas?

O Globo, 29/7/1965

(1) Título sugerido pela edição deste livro. A crônica foi publicada originalmente na coluna “À sombra das chuteiras imortais” sem título. (N.E.)