Se Marx havia dedicado pouca atenção ao caso americano e se os marxistas da II Internacional estavam por demais preocupados com a Alemanha, em Lênin já se pode ver uma primeira aproximação, e vale destacar, de registro positivo, com a experiência americana. Já nos primeiros anos do século XX, o autor russo intuía a originalidade americana, percebida como um desenvolvimento do capitalismo mais livre do peso da sociedade feudal, como território mais favorável a uma democracia de produtores burgueses e imagem de uma produção capitalista avançada. Não é à toa que a expressão “via americana” aparece no vocabulário deste Lênin como o caminho mais favorável à iniciativa operária de luta pelo socialismo (2) .

É todavia em Gramsci que o tema do americanismo vai se revelar mais rico em significados, aqui a experiência americana é examinada de forma mais completa à luz de seu impressionante desenvolvimento industrial e da reestruturação pela qual passava o capitalismo após a crise de 1929. É neste sentido que já no princípio de Americanismo e fordismo, ele apresenta as questões que vão orientar seu trabalho, sobretudo “saber se o americanismo pode constituir uma ‘época’ histórica, ou seja, se pode determinar um desenvolvimento gradual do tipo (examinado em outros locais) das ‘revoluções passivas’ do século passado, ou se, ao contrário, representa apenas a acumulação molecular de elementos destinados a produzir uma explosão” (3) .

O exame da América, feito sempre em comparação com a Europa, deve então permitir a Gramsci desvendar o caráter e as tendências de uma nova época histórica, marcada pela liderança americana, e ao mesmo tempo questionar-se sobre as possibilidades de universalização de suas formas de vida e sociabilidade.

Deve-se ressaltar que Gramsci começa a redação dos cadernos, que mais tarde seriam conhecidos como Cadernos do Cárcere, em fevereiro de 1929, dois anos após sua prisão, numa conjuntura que guardava uma ruptura com o período anterior. Na Itália, o fascismo fortalecia seu domínio, na URSS acirravam-se os conflitos no interior do partido e nos EUA a crise financeira apontaria um novo rumo para o capitalismo, que viria com o New Deal, a transformação do tipo de capitalismo liberal centrado na figura do empreendedor individual e do mercado auto-regulado para formas de capitalismo regulado, o que encontrava também uma contrapartida, porém de significado diverso, no corporativismo italiano. Gramsci percebia que a crise, ao invés de apontar para a derrocada do capitalismo ou para sua exposição à ação de uma vanguarda revolucionária, caminhava em outra direção revelando possibilidades de reorganização em bases mais racionais. A floração americana apontaria então um novo impulso e uma nova dinâmica para o capitalismo, tema ao qual dedicou boa parte dos esforços analíticos dos Cadernos (4) . Esta análise teria impacto na política por ele concebida, que se afastava do tema da insurreição, do “assalto aos céus” e indicava a necessidade de uma luta prolongada pela hegemonia, onde a democracia se tornaria a questão fundamental.

A experiência americana trazia de forma contundente os temas da racionalização da organização social. A América havia conhecido um desenvolvimento livre do peso de antigas estruturas societais, em contraste com a Europa, onde o passado se fazia presente através de estratos da população que se tornaram “sedimentações passivas” (5), desligados das funções produtivas, verdadeiros “pensionistas da historia econômica”. O resultado é que a América recebe “naturalmente” uma estrutura demográfica mais racionalizada o que permite uma melhor utilização dos fatores de produção, tornando possível tanto a maior acumulação de capitais, quanto um nível de vida mais elevado da classe operária.

É interessante que Gramsci retoma (muito provavelmente sem o saber) alguns temas de análise de uma conhecida conferência de Max Weber sobre o contraste Europa – América (6). Este autor identificava no peso da antiga sociedade agrária européia a origem do “atraso” em relação aos EUA e a resistência às exigências de racionalização econômica do capitalismo no campo. Este mundo agrário é lócus de preservação da tradição e encontra na Igreja, nos funcionários públicos, na dinastia, nos “aristocratas da educação”, uma rede de apoio social mais ampla para a resistência, que adquire também um caráter cultural. Na América, o mundo rural já teria sido submetido ao capital, com a colonização do oeste e com a abolição da escravidão. Sua paisagem rural era dominada por fazendeiros que haviam se tornado homens de negócio, ou seja, tipos sociais bem distintos dos camponeses ou aristocratas europeus.

Também em Gramsci o mundo rural italiano é visto como território resistente ao movimento de racionalização. No sul da Itália, a propriedade agrária está nas mãos de uma pequena burguesia que a arrendava em parcerias e meações primitivas, explorando o baixo nível de subsistência do campesinato. A poupança se deslocava para uma camada de intermediários desligados da atividade produtiva, engrossados pela aposentadoria precoce dos funcionários públicos. É uma estrutura social malsã, agravada pela emigração de uma parte ativa do campesinato em busca de oportunidades econômicas fora da Itália.

Foi na análise deste mundo rural italiano que Gramsci chegou a uma melhor compreensão das funções do Estado e dos intelectuais nos países de capitalismo periférico ou “atrasado” (7) . Tem-se um cenário onde os intelectuais operam como uma camada de ligação entre as “classes subalternas”, as camadas dominantes e o Estado. Esses intelectuais e seus “aparelhos” servem como “funcionários do consenso” garantindo a colaboração das massas camponesas. Gramsci pensa aqui no papel da Igreja, dos párocos de província do sul italiano, de uma classe média letrada, mas sem funções produtivas autônomas, de funcionários públicos. Nesta formação estatal complexa, o Estado está enraizado na sociedade e não aposto a ela. O “atraso” aqui, todavia, não teria levado à irrupção revolucionária, como na Rússia czarista, mas às modalidades de modernização conservadora do capitalismo, onde a formação estatal permaneceria reservando a si um papel central.

Na América teria se constituído uma hegemonia de outro tipo. Ali toda a vida do país estava centrada na produção. Na expressão de Gramsci, na América “a hegemonia nasce da fábrica e necessita, apenas, para ser exercida, de uma quantidade mínima de intermediários profissionais da política e da ideologia”(8). Ou seja, o modo de produção industrial alcançou um domínio mais completo sobre toda a formação social. Os temas do patrimonialismo agrário, de uma aristocracia e seus intelectuais, ambos sem funções na produção, foram vencidos e trata-se agora da afirmação da fábrica, do mundo produtivo como origem dos estímulos da organização da vida social. Mesmo o intelectual americano é um técnico, diretamente vinculado ao mundo produtivo. A colaboração dos trabalhadores é conquistada no interior do processo produtivo, prevalecendo os meios persuasivos e econômicos, como a elevação dos salários, e não a coerção direta.

Em certo sentido, a distinção de Gramsci remete à análise de Marx sobre a subsunção formal e a subsunção real do trabalho ao capital, como modalidades distintas (ou como fases) de desenvolvimento do capitalismo (9). A subsunção real do trabalho ao capital nesta análise só vem com a hegemonia plena do capitalismo industrial e especificamente burguês, inclusive sobre a produção agrícola, e é apenas aí que o capitalismo se desenvolve plenamente. A subsunção formal remete a uma distinção apenas na “forma” de dominação em relação aos modos de produção anteriores. As categorias de Marx, assim como as de Gramsci, apontam a dificuldade da formação de uma hegemonia especificamente burguesa mesmo sob formas de produção já capitalistas.

Segundo Gramsci, o cenário americano seria marcado pelo domínio das estruturas e não das formações superestruturais, é na fábrica e na subsunção real dos trabalhadores aos métodos de produção que se configura a hegemonia. O americanismo respondia a uma necessidade imanente do capitalismo de chegar a uma economia mais racionalizada, o que em perspectiva poderia apontar para uma “economia programática”.

Em relação ao trabalhador americano, isso significa que ele deve estar adaptado a novas exigências tanto do ponto de vista de seu preparo técnico para as funções na produção quanto no estilo de vida. A educação técnica está diretamente ligada à racionalização da produção e aos ganhos de produtividade social do trabalho. Fora da fábrica, o americanismo disciplina a vida do trabalhador, preocupa-se em garantir a sua integridade física e a renovação de suas forças para o trabalho. A disciplina vem de fora, por meios coercitivos, como atesta o “proibicionismo”, todavia, confere à classe operária uma estabilidade e um padrão civilizatório mais elevado. Favorece a independência das mulheres na mesma medida em que confere a elas um lugar no processo produtivo. Os ganhos de produtividade possibilitam a elevação os salários e do padrão de vida operários.

Gramsci polemiza com aqueles que viam no americanismo apenas uma razão utilitária, condicionada por objetivos materiais, desligada dos “altos valores” da cultura européia, ou de sua tradição aristocrática. O americanismo não é para ele apenas força bruta, pura técnica sem qualquer cultura intelectual. É um trabalho silencioso de transformação do homem e da cultura material, portanto atividade criadora. É uma filosofia que se afirma na ação. O significado de maior alcance do fenômeno americano seria então essa tentativa de criar, com consciência do objetivo, um novo tipo de trabalhador e de homem. Para Gramsci esta mudança é também de interesse do trabalhador, que efetivamente ganha com ela. Como exemplo Gramsci argumenta que não é da tradição do movimento operário, vide o caso do norte da Itália, resistir ao avanço da técnica. Ao mesmo tempo, os esforços de mecanização e automatização do trabalho para Gramsci não eliminam o que há de humano no trabalhador, ou como diz o autor, apesar de tudo, o “gorila amestrado” do taylorismo ainda é homem e pode adquirir consciência de sua condição (10). Esta “moralidade” que até aqui vem de fora da consciência operária, poderia ganhar outro sentido se fosse proposta pelo próprio trabalhador, e não imposta por meios coercitivos.

O ponto de virada para Gramsci está na possibilidade, sempre presente, de tomada de consciência da importância do “trabalhador coletivo” (que, ao contrário do trabalhador individual, é insubstituível) na elevação da produtividade social do trabalho. Essa consciência permitiria desvincular as exigências técnicas dos interesses das classes dominantes e fazer delas interesse das classes subalternas, que assim poderiam deixar de sê-lo. A idéia de que a hegemonia vem das fábricas permite postular a afirmação na sociedade da fábrica como produtora de objetos reais e não como produtora de lucros, apontando em perspectiva a mudança de hegemonia, que é vista como aprofundamento de um projeto de racionalização da produção e de sua submissão a finalidade sociais.

Gramsci percebe que o desenvolvimento do mundo industrial caminha em sentido contrário ao de um liberalismo do tipo “laissez faire”. Há uma necessidade imanente de se chegar a uma “economia programática”. Mesmo do ponto de vista do desenvolvimento capitalismo, o “velho individualismo econômico” liberal tornou-se força de resistência à racionalização da economia. A crise de 1929 seria assim um indicativo dessa passagem. Desde o pós I Guerra Mundial as premissas da política econômica haviam mudado em direção ao nacionalismo e com ele viriam as práticas protecionistas, a política comercial ligada a interesses estratégicos de Estado. A origem da crise de 1929, em interpretação persuasiva, não estaria no americanismo, mas num descompasso entre as exigências cosmopolitas da economia e o nacionalismo da vida estatal, onde se exacerbavam as práticas protecionistas reforçando desequilíbrios no setor produtivo (11).

É preciso ver que a idéia de programação econômica não tem sentido unívoco, e a galeria de casos nacionais elaborada pelo autor ajuda a esclarecer o ponto. São diferentes os sentidos da racionalização no corporativismo italiano e no americanismo. Na Itália o ambiente é marcado pela forte função econômica do Estado. Ali o corporativismo não foi uma exigência técnica, mas uma exigência de “polícia econômica”, e até agora teria predominado esse elemento negativo, repressivo, e não uma função modernizante, renovadora da estrutura social, capaz de eliminar as camadas rentistas, internalizar a função de poupança ao aparato produtivo e transformar o Estado. A situação tampouco apontaria para mudanças moleculares que indicassem a evolução do corporativismo italiano ao americanismo (12).

Assim, para Gramsci, o projeto de uma economia programática não poderia ser confundido com uma expansão imoderada das funções do Estado, como fica claro na crítica contundente aos projetos “organicistas” (13). Este “moderno capitalismo de Estado” foi curiosamente comparado com a experiência jesuíta no Paraguai, da qual já tratara Croce. A preparação de um Estado e uma economia orgânicos é aí vista como forma de maximizar a exploração capitalista dos fatores de produção, notadamente o trabalho. O organicismo é racionalista, mas opera em sentido regressivo em relação ao americanismo. Para o autor, a racionalização não poderia desembocar em estatolatria, ou seja, na formação de uma razão estatal totalizadora, de uma super-estrutura acima dos interesses das classes, que abafa e controla os movimentos da sociedade civil.

No mundo americano, as estruturas puderam se desenvolver de forma mais livre, sem o abafamento de camadas parasitárias ou da formação estatal. É aí que o industrialismo desenvolve de forma mais plena as suas possibilidades. É um cenário onde certamente a hegemonia burguesa é mais completa, todavia é exatamente neste cenário que a disputa pela hegemonia pelos produtores diretos pode se dar de forma mais aguda. Há por certo em Gramsci elementos de um desenvolvimento virtuoso das estruturas, ele não é, porém, um fáustico, que confia inteiramente no progresso e no desenvolvimento das forças materiais. O caminho para a hegemonia está no domínio das condições de aprofundamento das potencialidades criadoras do industrialismo pelos trabalhadores, ou seja, na sua capacidade de tomada de consciência e de ação política. Por mais que Gramsci possa ver no americanismo uma modalidade de revolução passiva mais exposta à ação das estruturas, sua política não dispensa um ator que domine sua posição e que tenha consciência de suas possibilidades para disputar o sentido das transformações. Entretanto, o lugar da política não é em um Estado insulado da sociedade ou aposto a ela, não é uma Bastilha nem um Palácio de Inverno, mas este terreno característico do pensamento gramsciano que poderíamos chamar de “sociedade civil”.

Como se sabe, Gramsci não investe em uma separação aguda entre Estado e sociedade, esse é o programa do liberalismo, sua distinção se dá no plano analítico e ele é consciente das interpenetrações práticas, inclusive no caso americano. Não se poderia, entretanto, ser indiferente aos tipos diversos de relação Estado – sociedade e, explicitamente, Gramsci identificava as grandes formações estatais européias com seus numerosos burocratas e intelectuais, como formações recessivas. Na política de Gramsci não se trata de estabelecer checks and balances liberais entre sociedade e Estado, nem liberar simplesmente o movimento da economia do controle estatal. Gramsci também não é um opositor da atuação do Estado na economia, mas qualifica esta atuação onde possa favorecer a produção e o bem-estar da população, para ele a função estratégica estaria ligada à capacidade de ajudar a internalizar as funções de poupança ao aparato produtivo, eliminando o rentismo. O que Gramsci se opõe é ao uso do Estado para a formação de monopólios, aos projetos autárquicos, ao nacionalismo econômico e ao protecionismo que presidiam a política européia do entre-guerras, aos “lucros produzidos pela lei” (14).

Mas num cenário de estruturas fortes, como reagir ao tema da autonomização do movimento da economia, da subjugação de toda a sociedade aos desígnios do capitalismo? O tema da política gramsciana é o domínio consciente das estruturas por seus portadores diretos, é a submissão da economia às suas finalidades sociais, momento que marcaria a virada da hegemonia. Este domínio não se dá encapsulando o espírito burguês na armação estatal, nem fazendo do Estado expressão política de um idealismo transcendental, como na interpretação hegeliana ou como se dava concretamente no estado fascista italiano. Os temas de Americanismo e fordismo, remetem à auto-organização, à preparação “a partir de baixo” da nova estatalidade em conexão com instituições capazes de aprofundar a programação econômica e dar vazão às potencialidades criadoras de uma nova sociabilidade.

As notas sobre Americanismo e fordismo revelam então a riqueza da sociologia política gramsciana, sua capacidade ímpar de valer-se da comparação entre casos históricos e nacionais para descortinar tendências. Em muitos sentidos Gramsci antecipa aqui clássicos do pensamento social do século XX, como o notável A grande transformação de Karl Polanyi, revelando o caráter das mudanças que se impunham com a decadência do capitalismo liberal de tipo “laissez faire” que havia marcado o século XIX e a hegemonia inglesa. Gramsci contestava também o argumento do fascismo italiano que relacionava a programação econômica necessariamente à construção de um Estado corporativista que tendia ao totalitarismo. Aqui, abre-se uma chave também para pensar o caminho pelo qual no Brasil fins “americanos” se desenharam a partir de uma organização estatal de inspiração corporativa, autoritária e mesmo fascista como era o caso do Estado Novo, e o peso que esta super-estrutura encerra sobre a modernização brasileira, como estudado por Luiz Werneck Vianna em seu Liberalismo e sindicato no Brasil.

Discutir em que medida a sociologia de Gramsci permanece atual é desafio que excede os objetivos das linhas aqui escritas. O capitalismo no século XX e a própria experiência americana passaram por muitas e tais transformações que exigiram e estão a exigir grande esforço interpretativo. Todavia, esse poderoso “estudo de caso” (se é que podemos chamá-lo assim) gramsciano continua a oferecer ferramentas importantes para pensar os caminhos e os significados do desenvolvimento do capitalismo e da sociedade moderna.

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1 Doutorando em Sociologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

2 Ver Lênin, O desenvolvimento do capitalismo na Rússia. São Paulo: Abril Cultural, 1982, em especial o prefácio à 2ª edição.
3 Antonio Gramsci. “Americanismo e fordismo” in: ___. Cadernos do Cárcere, vol. 4. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 242.
4 Ver sobre este ponto Luiz Werneck Vianna. A revolução passiva. Rio de Janeiro: Revan, 2004.
5 Gramsci, “Americanismo e fordismo”, op. cit., p. 243.
6 Max Weber. Capitalismo e sociedade rural na Alemanha in: Max Weber. Os Pensadores, vol. XXXVII. São Paulo: Abril Cultural, 1974.
7 Antonio Gramsci. “A questão meridional” in: ____. Escritos políticos, vol. 2. Rio de Janeiro: civilização Brasileira, 2004.
8 Antonio Gramsci. “Americanismo e fordismo” op. cit. p. 248.
9 Ver especialmente Karl Marx. “O Capital – Capítulo VI Inédito”. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1978.
10 Gramsci, “Americanismo e fordismo”, op. cit., p. 272.
11 Idem, p. 318.
12 Idem, p. 257 e ss.
13 Idem, p. 307.
14 Idem, p. 314.