Naquele longínquo oito de março dezenas de milhares de mulheres indignadas paralisaram o trabalho e marcharam pelas ruas da cidade com cartazes que diziam “Pão para os nossos filhos!” e “Retorno de nossos maridos das trincheiras!”. A Rússia czarista estava mergulhada na sangrenta Primeira Guerra Mundial e colhia resultados bastante negativos. Milhões morriam ou eram feridos nos campos de batalha. Nas cidades reinavam a fome e a miséria.

Naquele dia paralisaram cerca de 90 mil trabalhadores. A manifestação das operárias foi tão impressionante – e o czarismo estava tão desmoralizado–que os próprios soldados se recusaram a reprimi-la e alguns aderiram a ela. Nos dias que se seguiram uma greve geral paralisou toda a cidade e se espalhou pelo país. As proibidas bandeiras vermelhas voltaram a tremular nos bairros populares. Foram recriados os sovietes de operários e soldados. Era o fim daquele regime opressivo e secular, que cairia dentro de alguns dias.

Escreveu a revolucionária comunista russa Alexandra Kollontai: “O dia Internacional das Mulheres de 1917 tornou-se memorável na história. Nesse dia as mulheres russas ergueram a tocha da revolução proletária e incendiaram todo o mundo. A revolução de fevereiro se iniciou a partir desse dia”. Outro dirigente soviético Leon Trotsky diria: “ninguém, absolutamente ninguém – podemos afirmar categoricamente baseando-se em todos os documentos consultados – supunha que o dia 23 de fevereiro marcaria o início de um assalto decisivo contra o absolutismo”. Portanto, aquela greve de mulheres, surgida quase espontaneamente, não fazia parte de nenhum plano insurrecional comunista. Ninguém esperava aquele desfecho.

Segundo Ana Isabel Gonzáles, “foi para relembrar a ação das mulheres na história da Revolução Russa que o Dia Internacional das Mulheres passou a ser comemorado de forma unificada no dia 8 de março. A decisão de unificação foi tomada na Conferência de Mulheres Comunistas, coincidindo com o Congresso da Internacional Comunista, realizado em Moscou em 1921”.

No dia 8 de março deste mesmo ano, Lênin escreveria no Pravda um artigo que dizia: “a metade feminina da raça humana é duplamente oprimida pelo capitalismo. A operária e a camponesa são oprimidas pelo capital, mas primeiro, e acima de tudo, inclusive na mais democrática república burguesa, permanecem, primeiramente, privadas de alguns direitos porque as leis não lhes concedem igualdade com os homens; e, em segundo lugar – e este é o aspecto mais importante – permanecem ‘escravas do trabalho doméstico’. Continuam sendo ‘escravas domésticas’ porque estão sobrecarregadas com a monotonia do mais mesquinho, duro e degradante trabalho na cozinha e nas tarefas domésticas familiares”. Continua ele: “aqui, na Rússia Soviética, não sobrou nenhum rastro de desigualdade entre os homens e mulheres perante a lei”.

Lênin, como um bom marxista, sabia que a igualdade formal perante a lei ainda era insuficiente, pois na prática cotidiana a opressão poderia ser mantida. Por isso, concluiu: “Este é só um passo na libertação da mulher. Mas nenhuma das repúblicas burguesas, incluindo as mais democráticas, se atreveu a dar sequer o primeiro passo”.

Mas quando se decidiu comemorar um dia internacional da mulher?

Pelo que se tem notícia a primeira vez que se comemorou um Dia da Mulher foi nos Estados Unidos. O Partido Socialista daquele país, ligado à II Internacional, atendendo a um apelo de suas militantes aprovou no final de 1908 a seguinte resolução: “Recomendamos que todas as seções locais do partido socialista dediquem o último domingo de fevereiro de 1909 à realização de uma manifestação a favor do direito ao voto das mulheres”. Assim, o primeiro Dia da Mulher ocorreu num 28 de fevereiro. Devido à grande receptividade encontrada, no ano seguinte o evento se repetiu. Contudo, ele não tinha um caráter internacional e nem a forma principal de expressão era a paralisação do trabalho, visto que era no domingo.

Em 1910 as delegadas estadunidenses participaram da 2ª Conferência Internacional de Mulheres Socialistas, realizada em Copenhague, e levaram consigo a proposta de realizar no último domingo de fevereiro um dia internacional das mulheres, tendo como eixo o direito ao voto para as mulheres. De fato, por proposição da alemã Clara Zetkin, foi aprovada uma resolução que dizia: “De acordo com as organizações políticas e sindicais do proletariado, as mulheres socialistas de todas as nacionalidades organizarão em seus respectivos países um dia especial das mulheres. Será necessário debater esta proposição com relação à questão da mulher a partir da perspectiva socialista. Esta comemoração deverá ter caráter internacional e será necessário prepará-la com muito esmero”.

Como podemos ver, embora aprovasse a diretiva de se caminhar para a construção de um “dia especial das mulheres” de caráter internacional e socialista, não indicava uma data unificada para essa comemoração. O dia escolhido pelas alemãs e austríacas para primeira manifestação foi 19 de março de 1911. Escreveu Kollontai: “Seu sucesso ultrapassou todas as expectativas (…). Os homens ficaram em casa com seus filhos, para variar, e suas esposas, as donas de casa prisioneiras, foram às reuniões. Durante a maior manifestação de rua participaram 30 mil mulheres, a polícia decidiu tomar as bandeiras das manifestantes: as mulheres trabalhadoras protestaram. No tumulto que se seguiu, o derramamento de sangue só foi evitado com a ajuda dos deputados socialistas”. Assim, transcorreu o primeiro Dia Internacional da Mulher na Alemanha. As socialistas estadunidenses mantiveram o seu ato no último domingo de fevereiro e as suecas fizeram coincidir com o Primeiro de Maio. As datas não eram fixas e variavam de país para país.

Naqueles anos, as mulheres já possuíam uma força expressiva no interior do movimento sindical e nos partidos socialistas europeus e estadunidenses. Segundo Kollontai, em 1913 os sindicatos ingleses possuíam mais de 292 mil filiadas, os sindicatos alemães 200 mil; na Áustria eram 47 mil. Já existiam no seio da social-democracia alemã 150 mil mulheres e no austríaco 20 mil. Não era mais possível às lideranças socialistas desconhecer essa realidade. Se se quisesse avançar nas mudanças sociais rumo ao socialismo era preciso incorporar as mulheres trabalhadoras.

Contudo, muitos socialistas ainda resistiram quanto à realização de um Dia Internacional das Mulheres. Achavam que isso cindiria a classe operária. Aquilo seria uma concessão das mulheres socialistas ao feminismo burguês. O único dia para se comemorar era o Primeiro de Maio, dia internacional dos trabalhadores. Alexandra Kollontai e Clara Zetkin tiveram que travar uma dura polêmica contra tais equívocos.  Nesse seu esforço foram apoiadas por homens como Augusto Bebel, Karl Kautsky e Lênin.

Uma vitória ocorreu em 1914 quando as socialistas alemãs, russas e suíças comemoraram conjuntamente o Dia Internacional das Mulheres em 8 de março – decisão tomada no ano anterior. Graças ao prestígio do Partido Social-Democrata da Alemanha, esta virou a data referencial para as manifestações nos principais países capitalistas. A eclosão da Primeira Guerra Mundial e a traição das principais lideranças da social-democracia europeia, que apoiaram as suas respectivas burguesias durante o conflito, levaram a um refluxo ao movimento feminino socialista e internacionalista.

Foto: Dia Internacional da Mulher em 1917

Alexandra Kollontai fez uma constatação muito importante sobre essas primeiras manifestações internacionais do movimento de mulheres socialista até 1917. Afirmou ela: “O Dia Internacional das Mulheres na América e na Europa teve resultados impressionantes. É verdade que nenhum parlamento burguês cogitou fazer qualquer concessão aos trabalhadores ou responder às reivindicações das mulheres, pois naquela época, a burguesia não estava ameaçada por uma revolução socialista”. As coisas mudaram depois de fevereiro de 1917. Não por acaso as mulheres russas conquistaram o direito ao voto poucos meses depois (em julho), sendo seguidas pelas mulheres alemãs, austríacas, inglesas etc. Assim, a Revolução Russa impulsionou fortemente as conquistas políticas e sociais das mulheres no mundo todo.

O objetivo deste breve artigo é relembrar que o Oito de Março tem origem, e a ele deve a sua universalização,no movimento socialista e comunista, especialmente depois da Revolução Russa. Hoje ele faz parte do patrimônio de todas as mulheres conscientes – e não apenas das comunistas –, mas isso não nos desobriga de relembrar a sua história mais remota e homenagearmos suas principais personagens: Clara Zetkin, Alexandra Kollontai, Rosa de Luxemburgo, Inês Armand, entre outras combatentes da emancipação feminina e dos trabalhadores.

* Augusto César Buonicore é historiador, presidente do Conselho Curador da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira: encontros e desencontros, Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas e Linhas Vermelhas: marxismo e os dilemas da revolução. Todos publicados pela Editora Anita Garibaldi.

Bibliografia

GONZÁLES, Ana Isabel Álvarez. As origens e a comemoração do Dia Internacional das Mulheres. São Paulo: Expressão Popular/Sempreviva Organização Feminista, 2010.