Se as mulheres foram os soldados invisíveis dos processos revolucionários na Rússia, a antologia A revolução das mulheres: emancipação feminina na Rússia soviética resgata seus nomes e sua obra: com minuciosa pesquisa de Graziela Schneider, a obra apresenta artigos, atas e panfletos publicados pela primeira vez no Brasil em tradução direta do russo. O conjunto de textos selecionados acompanha quatro décadas do movimento de mulheres – da Rússia pré-revolucionária ao período stalinista – e, ao delinear esse caminho, revela que a República Soviética não marcou apenas o fim de um processo revolucionário, mas o início de uma nova fase do pensamento.

Aleksandra Kollontai, Maria Pokróvskaia e Nadiéjda Krúpskaia, entre outras, reorientaram os eixos da revolução iniciando um profundo e complexo processo de emancipação feminina. É possível acompanhá-lo por meio da leitura de uma produção intelectual e política pouco conhecida não só pelas circunstâncias desfavoráveis em que foi produzida, mas pelas suas consequências e prolongamentos na contemporaneidade: mostrar que no início do século XX as russo-soviéticas alcançaram direitos que ainda nos parecem impossíveis representa uma ameaça à ordem vigente. Quais estruturas de pensamento e ação se moveriam se fosse amplamente divulgado que o aborto foi legalizado na União Soviética em 1920? Ou que o programa do Partido Comunista Revolucionário garantiu igualdade de cargos e salários entre homens e mulheres?

Foram mulheres como Krúpskaia – infelizmente, mais conhecida por ter sido companheira de Lenin – que construíram respostas para problemas que, embora fossem próprios de sua época, persistem ainda hoje. Nos textos reunidos nesta  antologia,  é  possível  perceber  que  questões consideradas insolúveis, como a divisão sexual do trabalho, têm soluções tão simples como revolucionárias. Por exemplo, a construção de restaurantes, creches e lavanderias populares. Parece que a revolução mais difícil é aquela que está ao nosso alcance.

É preciso ressaltar que todo esse processo se deu em um dos períodos mais sombrios da história russa: em 1917, as mulheres representavam um terço dos operários de Petrogrado. Enfrentavam jornadas de trabalho extenuantes, recebiam menos da metade do salário dos homens e não tinham condições mínimas de segurança. Se nas fábricas eram claramente exploradas, no campo eram escravizadas  e   vendidas.   Em   ambos   os   contextos   estavam  sujeitas   aos mecanismos capitalistas inseridos em estruturas patriarcais, ou seja, viviam o aprisionamento dentro do aprisionamento. Foi nesse cenário que as mulheres russas tomaram a palavra e as ruas.

O resgate dos textos reunidos nesta antologia não representa apenas uma reconstituição histórica necessária – visto que mulheres são vítimas de um constante apagamento –, mas a possibilidade de olharmos para nós hoje de uma perspectiva radicalmente outra. É possível enxergar no pensamento dessas mulheres um horizonte para além das propostas de inclusão na ordem existente e de liberações parciais. Escutar essas vozes é desconfiar de que o esforço tão em voga de tratar a revolução como um evento impossível é parte do funcionamento dos mecanismos de dominação vigentes.

***

Daniela Lima é escritora e ativista. Autora de Anatomia (2012), Sem Importância Coletiva (2014) e Sem Corpo Próprio (2015 – em andamento). Teve contos traduzidos para a revista The Buenos Aires Review (2013) e foi finalista do prêmio literário Exercícios Urbanos (2008) na categoria contos. Colaborou para diversas revistas e sites, entre eles Blog do Instituto Moreira Salles, Carta Capital, Margem Esquerda, Territórios Transversais e Pesquisa Fapesp. É comentarista da Rádio Manchete, biógrafa da escritora Maura Lopes Cançado e fundadora do coletivo feminista Jandira (2014). Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.