Segundo o autor, “da pioneira experiência socialista soviética nada restou. No entanto, a controvérsia sobre a revolução e o socialismo soviéticos não dá sinais de arrefecer”. A obra “procura contribuir com este debate, invocando a contribuição da história (…). Portanto, diante de todo o problema é sempre útil examiná-lo em seu movimento, discernir os processos de seu desenvolvimento. E com muito maior razão quando se trata de um tão complexo e controvertido como o da Revolução de 1917 e o da experiência socialista soviética”. 

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O ano de 2017 é muito importante para todas as correntes democráticas e revolucionárias que têm como horizonte o socialismo, pois nele comemoramos o centenário da Revolução Russa. Foi através dela que, pela primeira vez, os trabalhadores chegaram ao poder político e iniciaram a construção de uma sociedade nova sob a sua direção. Este acontecimento marcou todo um século e levou esperança a milhões de pessoas de todos os continentes que padeciam sob a dominação do capitalismo e do imperialismo. Abriu-se, então, uma nova etapa na luta pela emancipação das mulheres, negros e povos coloniais. E, também, foram criadas melhores condições para ampliação da democracia e dos direitos sociais no próprio mundo capitalista. Alguns autores afirmam mesmo que ela foi, ao lado da Primeira Grande Guerra Mundial, um dos marcos fundadores do século 20.

Sem dúvida, neste ano do centenário, a mídia burguesa buscará desconstruir a imagem daquela revolução, apresentando-a como algo negativo. Dirá que ela se reduziu à implantação de um regime totalitário assemelhado ao nazismo. Mesmo no campo da esquerda– especialmente entre os ex-comunistas –, haverá aqueles que procurarão renegar o conjunto daquela obra, encarando-a apenas como um “planetário de erros” e mesmo de crimes. A autocrítica, sempre necessária, para alguns se transformou numa espécie de autoflagelo. Como disse o filósofo marxista italiano, Domenico Losurdo, “se autocrítica é o pressuposto da reconstrução da identidade comunista, a autofobia é sinônimo de capitulação e de renúncia de uma identidade autônoma (…). A classe dominante consolida seu domínio, privando as classes subalternas não apenas da perspectiva de futuro, mas também do seu próprio passado”. E conclui corretamente: “A memória histórica é, portanto, um dos terrenos fundamentais nos quais se desenvolve a luta ideológica de classe”. 

O livro de Bernardo Joffily se enquadra perfeitamente dentro dessa perspectiva defendida, que poderia ser resumida na fórmula “defender o legado da Revolução Russa e seu papel progressista na história moderna”. O autor apresenta a trajetória da revolução desde os seus primórdios e trata do papel central nela desempenhado pelos bolcheviques. Apresenta as conquistas alcançadas pelo povo soviético, e também as consequências daquele movimento para os povos de todo o mundo. O balanço geral apresentado é fundamentalmente positivo, mas não tergiversa sobre os erros cometidos e as dificuldades encontradas. Apesar de ser panorâmica e didática, a obra não perde a qualidade nem reduz a complexidade daquele processo. Assim, torna-se algo útil às jovens gerações de combatentes sociais que desejam conhecer mais e melhor sobre os acontecimentos ocorridos cem anos atrás na Rússia e as suas consequências para o século 20.  

Do ponto de vista interno, a Revolução de Outubro representou uma estupenda mudança progressista. Em 1917 a Rússia czarista era um dos países mais atrasados da Europa. Cerca de 80% da sua população viviam no campo e estavam condenados à miséria e ao analfabetismo. Sob o socialismo, ela transformou-se num país moderno e socialmente avançado. Tornou-se em poucas décadas a segunda potência econômica mundial, rivalizando-se com o imperialismo estadunidense. Os problemas relativos ao desemprego, à fome e à miséria foram superados. Houve uma considerável diminuição da taxa de mortalidade e um aumento substancial da expectativa de vida das massas. Contribuíram para isso o planejamento econômico e a implantação de uma enorme rede de saúde e previdência pública. Ocorreu também uma verdadeira revolução no campo educacional, através da qual se conseguiu eliminar o analfabetismo e incorporar os setores populares (operários e camponeses) ao ensino técnico e superior numa escala jamais vista em qualquer outro país.

Os efeitos positivos não foram sentidos apenas na União Soviética. É Losurdo que nos lembra que as três grandes discriminações existentes ainda no início do século 20 caíram sob o impacto causado pela Revolução Russa. Eram elas: a discriminação de propriedade (censitária), racial e de gênero. O medo do comunismo, por exemplo, contribuiu para que os legisladores estadunidenses “apressassem” a aprovação da legislação dos direitos civis e políticos para os negros. O historiador Eric Hobsbawm, por sua vez, afirmou que nem mesmo o Estado de Bem-Estar Social, implantado na Europa, teria sido possível sem a existência do fantasma de uma possível revolução socialista no Ocidente.

Nas primeiras décadas do século passado, a maioria dos países da África e da Ásia ainda era dominada por potências capitalistas ocidentais. Foi justamente o bolchevismo vitorioso que conclamou os povos coloniais e semicoloniais a lutarem por sua completa independência. A derrota dos exércitos da Alemanha nazista pela União Soviética abriu uma nova etapa na luta contra a opressão e a exploração. Ela representou a vitória da economia planejada sobre a economia de livre mercado; dos ideais como igualdade, fraternidade e democracia sobre os ideais racistas, sexistas, chauvinistas, colonialistas e belicistas. Após 1945, a URSS não estava mais isolada. Ao lado dela, formou-se um campo socialista integrado pelos países bálticos e do Leste Europeu. As revoluções nacional-libertadoras e socialistas passavam a ter uma retaguarda mais segura para poder avançar.

Contudo, a crise das primeiras experiências socialistas, marcada pela débâcle da URSS, criou uma situação bastante desfavorável para as forças socialistas e revolucionárias. A última década do século 20 presenciou a ofensiva em toda a linha do imperialismo, particularmente o estadunidense. Às portas do novo século, os ideólogos da “nova ordem mundial” advogavam o fim da história, o fim das ideologias, o fim da luta de classes e o fim das utopias sociais. Contudo, a história não para.

A intensificação da internacionalização econômica, sob a hegemonia do capital financeiro, que se denominou pomposamente de globalização, acarretou um aumento sem precedentes da centralização da riqueza nas mãos de uns poucos magnatas e o crescimento, em escala geométrica, da miséria para a grande maioria da população do planeta, inclusive nos países capitalistas centrais. Aumentou a desigualdade entre os países ricos e a periferia do sistema. O mundo entrou no século 21 mais desigual e injusto.Não tardou para que este novo padrão de reprodução do capital – neoliberal – conhecesse crises cada vez maiores e de efeitos futuros incalculáveis.O elemento central desta crise foi o agigantamento, sem precedente, do capital especulativo que conduziu a uma redução dos investimentos na esfera produtiva e que teve como consequência direta a instauração de uma longa recessão mundial.

A crise do capitalismo conduz também a um complexo processo de degeneração ideológica com o crescimento de correntes de extrema-direita e de ideias fascistas, xenófobas, racistas, sexistas e homofóbicas. Mais do que nunca, é possível observar o caráter anticivilizacional do capitalismo na sua fase imperialista e a necessidade de retomada da luta pelo socialismo, tendo em vista as condições do século 21. Mas qualquer que seja o nosso programa para o futuro, precisaremos voltar os olhos para o passado se quisermos aprender com os nossos acertos e erros. Nesse sentido, conhecer a história da Revolução Russa e das experiências socialistas que a sucederam é de fundamental importância. O livro de Bernardo, nascido de uma parceria entre a Fundação Maurício Grabois e a Editora Anita Garibaldi, contribui muito para isso. 

* Augusto Buonicore é historiador, presidente do Conselho Curador da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e revolução brasileira: encontros e desencontros; Meu verbo é lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas; e Linhas Vermelhas: marxismo e dilemas da revolução. Todos publicados pela Fundação Maurício Grabois e Editora Anita Garibaldi.