A ofensiva do governo Fernando Henrique Cardoso (FHC) em seu estertor para aprovar a “agenda das reformas” neoliberais era um ardil. Seus defensores foram derrotados nas eleições de 2002 e aproveitavam os últimos dias no poder para agitar suas bandeiras. Eles sabiam que no novo governo haveria outro tratamento para aquelas questões, diferente da “era FHC”, quando o presidente se limitava a chancelar as medidas moldadas pelo projeto neoliberal — e, por isso, para o presidente que saía foi fácil governar. Era sintomático, nesse sentido, que o alvo dos neoliberais no fim de feira em que se transformou o crepúsculo do governo FHC fosse a legislação social — incluindo aí os direitos trabalhistas e previdenciários.

A reação que essa ofensiva provocou era compreensível e necessária. Ela expressava um ponto de vista que prevaleceu no campo do trabalho ao longo de todo o século XX e representava mais uma etapa da disputa típica entre capital e trabalho, um choque entre o obsoleto e o contemporâneo. O interesse do capital no Brasil, em grande medida, sempre se soube na contramão da história. Enquanto outros países rompiam com a velha ordem liberal da Primeira Revolução Industrial, nosso país patinava no atraso e chegou à “era neoliberal” com suas estruturas sociais praticamente intocadas. Assim, retirar direitos sociais por aqui equivale a golpear as poucas conquistas que custaram muito suor e sangue ao longo de mais de um século de luta.

Não temos no Brasil conquistas como as dos trabalhadores de países desenvolvidos — sobretudo os da Europa. Por isso, a abolição de direitos em nosso país equivale a condenar os trabalhadores praticamente à volta à escravidão. Ao longo do século XX, uma parte do capital brasileiro e os interesses imperialistas formaram duas faces de uma mesma moeda pouco razoável e sem nenhuma chance de gerar um Brasil melhor. Essa combinação é de fato conservadora por desejar manter a estrutura do país, incapaz de capitanear um movimento de desenvolvimento sócio-econômico. E é reacionária por se relacionar incestuosamente com o poder político, dando sustentação a qualquer regime — inclusive os fascistas — que protegem seu senhorio.

Com a eleição de Lula, finalmente o Brasil avançou no projeto de tornar-se uma nação baseada na democracia e no progresso social — para desgosto da elite que luta para que o século XIX não termine nunca em nosso país. Lutamos muito para rompermos com a lógica dessa combinação conservadora. Chegar lá, como fizemos em outubro de 2002, no entanto, não significava vida mansa. O projeto progressista enfrentaria desafios inéditos, muitos só revelados muito tempo depois. Seria ingenuidade achar que a elite conservadora iria abrir mão do seu pote de ouro para observar a sociedade ascender. Nessa disputa, seria necessário delegar responsabilidades aos trabalhadores de maneira efetiva, não apenas retórica.

Já estava suficientemente claro que o número de horas trabalhadas não tem conexão com a produtividade — o valor criado por cada hora de trabalho. Essa visão afastava a ideia de que o país não saia da marcha lenta por falta de capacidade de trabalho e abria espaço para lutas por redução da jornada sem redução salarial e avanço social. Não se chegou a isso, mas a pregação neoliberal do “custo Brasil” praticamente desapareceu. É que a pregação dos neoliberais apresentava uma equação que não fecha: os trabalhadores dos países centrais que iam para as ruas bradar contra o desemprego o faziam pelos mesmos motivos que inquietam os trabalhadores abaixo da linha do Equador e em vários regiões da Ásia.

Isso quer dizer que o projeto neoliberal é ruim para eles e para nós ao mesmo tempo. A dança do capital, dentro desse modelo, representa um problema tanto para o lugar que ele deixa quanto para o que ele chega. Ou seja: esse projeto desperta a reação dos trabalhadores em todo o mundo porque ele acaba com os direitos conquistados ao longo do tempo. Na Europa, o welfare state — o sistema de proteção social lentamente construído para balancear melhor os conflitos entre capital e trabalho — vem sendo desmontado sob a mesma alegação dos defensores do conceito do “custo Brasil”. Nos Estados Unidos, a mesma alegação resultou no empastelamento, em 1999, da conferência da Organização Mundial do Comércio, em Seattle, por trabalhadores inconformados com os novos parâmetros das relações de trabalho.

Nos países de economias pobres, como o Brasil, essa lógica é mais bruta. Ocorre que, pelo projeto neoliberal, a regra das relações econômicas é muito unilateral: os recursos fluem em mão única dos países periféricos, muitos deles paupérrimos, para os países centrais. E a riqueza global é concentrada nas mãos de poucos. Vivemos ainda a época dos impérios e do expansionismo, de relações entre países baseadas numa lógica metrópole-colônia, de guerras por mercados, de conchavos políticos com representantes inescrupulosos e de amplo desbalanceamento de forças entre os países centrais e periféricos, gerando orçamentos públicos sangrados e deficitários por taxas de juros que encrencam a vida de muitos para beneficiar poucos. Gastos financeiros aritmeticamente insustentáveis, que tornam deficitários o orçamento nacional, pressionam os juros e comprometem a vida de uma grande parcela da sociedade.

Quando Lula assumiu, o Brasil tinha, aproximadamente, 54 milhões de pobres, ou 34% dos habitantes do país. Isso corresponde a uma Itália. Desses 54 milhões, cerca de 30 milhões viviam abaixo da linha de indigência. Isso corresponde a uma Venezuela. Os 10% mais ricos da população ficavam com quase metade de tudo o que é produzido no país. A metade mais pobre ganhava menos do que o 1% mais rico. A mortalidade infantil em algumas regiões do Nordeste atinge 175 mortes para cada 1 000 nascimentos. Para que se tenha uma ideia, Uganda tinha uma taxa semelhante. As causas históricas dessa situação são múltiplas. Escravidão e governos ditatoriais podem ser destacados como as principais.

O governo Lula começou a superar esse entrave duas medidas essenciais: a geração de emprego e o estímulo ao consumo. A escassez de emprego foi atacada basicamente com a retomada do desenvolvimento econômico e com melhorias no nível de renda dos mais pobres, sobretudo com aumentos reais do salário mínimo. Ao mesmo tempo, começou a superar a situação de relação trabalhista precária, de muitos empregos temporários e desabrigados da legislação social. Foram poderosos estímulos ao consumo. A emergência de sua lógica era bem-vinda no país.

O problema é que sobre essas questões existiam as estruturas da nossa sociedade, historicamente fendidas em dois extremos. Assim, o país precisava discutir o consumo perdulário da elite para projetar uma equalização do seu desnivelamento social. Era necessária a percepção da sociedade de que o direito de consumir deve ser extensivo a todos. A calamitosa teoria do bolo, iniciada na ditadura militar, partiu o Brasil em dois países antagônicos: a uns foi dado o acesso aos padrões de vida de Primeiro Mundo e a outros apenas a cota de sacrifício necessária à materialização daquela teoria.

O ciclo iniciado com Lula tomou medidas efetivas de combate à pobreza, estendendo a cidadania a mais brasileiros, mas as estruturas sociais permaneceram intocadas. Enfrentá-las não é fácil, sabemos. São estruturas consolidadas, de interesses que não aceitam perder privilégios acumulados ao longo do tempo. A elite brasileira sempre manteve a gestão do Estado sob seus domínios e fez disso um meio de locupletação, fezendo os ricos ficarem mais ricos, os pobres mais pobres e os miseráveis excluídos até da discussão sobre a exclusão social.