Quando o presidente Luis Inácio Lula da Silva galgou a rampa do Palácio do Planalto em 2003, o país começou uma fase de mudanças em suas práticas políticas. Os vergonhosos indicadores sociais começaram a ser enfrentados e a imagem do país no exterior talvez nunca tenha ficado tão boa. É verdade que no campo social, ao final do ciclo progressista, havíamos vencido sequer o primeiro metro do caminho quilométrico que precisamos superar. E no campo econômico, algumas medidas, como os juros elevados, foram tomadas apenas para abafar a gritaria dos especuladores do mercado financeiro. Poucas vezes em nossa história uma alta ou baixa do dólar foi acompanhada com tanta sofreguidão.

Muitas vezes as linhas mestras da política econômica neoliberal foram renovadas nas reuniões no principal gabinete do prédio de vidro fumê que abriga a sede do Banco Central em Brasília com a única finalidade de agradar aos rentistas. E isso foi um vistoso sinal de que a tão prometida mudança nesse terreno se constituiu no calcanhar de Aquiles do ciclo progressista. A razão era a visão estratégica que as forças políticas fundamentais têm sobre o Brasil. E essa questão se reproduz amiúde pelo país afora.

Como temos sido historicamente governados por forças conservadoras, ficou difícil uma compreensão coletiva a respeito do manancial de oportunidades disponível no cenário democrático e progressista. Por isso, alguns resultados positivos foram carimbados com as cores das forças que sustentaram Fernando Henrique Cardoso (FHC), Fernando Collor de Mello e os generais golpistas de 1964. Condições históricas, políticas e econômicas exerceram papel preponderante, mas houve também uma enorme fatia de responsabilidade repousando na definição de estratégias, na tomada de decisões, na condução das ações pelos governos progressistas.

Evidentemente, num país como o Brasil é difícil evoluir rapidamente para uma democracia que corresponda a acepção essencial do termo. É difícil construir avanços sociais numa economia historicamente dividida em feudos, que se traduz num sistema rapinesco no qual poucas leis fazem tanto sentido quanto a lei do mais forte. A exemplo das grandes propriedades rurais, boa parte da economia brasileira foi entregue aos grupos como lotes cercados de arame.

O mundo dos negócios brasileiro está repleto de amigos e filhos dos históricos donos do poder ocupando funções que em muitos casos são desempenhadas à margem da ética e da legalidade. O Estado sempre decidiu quanto daquele lote ficaria nas mãos de um ou outro e o tamanho do lucro que ele teria. O restante da sociedade, à guisa de vassalos, não tem alternativa senão pagar o que lhe é exigido e resignar-se com o que recebe. Eventuais rebeldias contra essa ordem são tratadas como caso de polícia.

Eis aí o motivo pelo qual um projeto democrático e progressista é algo que ainda está para florescer no Brasil. E, na mesma medida, a construção de uma sociedade fundada na coesão, disposta a erigir sistemas que sustentem a longo prazo o desenvolvimento econômico. Como disse certa vez o presidente Lula, nas poucas vezes em que os governantes planejaram o país estrategicamente o crescimento foi incomparável. E isso é tarefa para milhões. A busca incessante desse objetivo, portanto, tem de ascender à condição de projeto nacional.

Lula também disse, logo após a posse de 2003, que, trocando em miúdos, a herança de FHC implicava vender o almoço para comprar a janta — ou vender ambos para pagar encargos e juros de dívidas e deixar uma grande parte do país passando fome. E fechou o raciocínio afirmando claramente que o governo não se propunha a mudar tudo para melhor simplesmente porque as bandeiras das forças populares chegaram à Presidência da República. Lula pôs o dedo na crônica ferida brasileira ao afirmar que o Estado foi severamente avariado pela “era FHC” e que era preciso reconstruí-lo como agente capaz de formular uma estratégia para o país.

Era o fio da meada para se compreender a complexa equação econômica que definia a situação brasileira. A saída de FHC de Brasília foi, evidentemente, uma grande conquista para o país. Mas ela deve ser vista como o marco inicial de uma virada de um Boeing que não podia ser manobrado como teco-teco. Lula não era louco, como chegou a sugerir o bocudo ex-secretário do Tesouro norte-americano, Paul O´Neill. Ele tinha demonstrado em profusão a plena consciência de que o rumo apontado pelos votos de 2002 era o de um projeto de Estado indutor da economia e de vocação soberana. Essa plataforma de governo estava impressa na alma do programa eleito no ano passado.

Manobrar esse Boeing em direção a uma nova rota requeria muito mais do que frases de efeito, ainda que sinceramente emocionadas e com potencial para emocionar milhões. Para que o país superasse aquela grande esquina histórica, era preciso encontrar meios para enfrentar, basicamente, duas vertentes da herança da “era FHC”: o retrocesso histórico, que levou o país de volta à total dependência do exterior; e a que o saudoso jornalista Aloysio Biondi chamava de destruição da alma nacional. No primeiro caso, sob a alegação de que era preciso reduzir a dívida interna e o déficit público, o governo vendeu tudo: bancos, ferrovias, empresas de energia, telefônicas, siderúrgicas e até estradas e portos.

Essa operação pode ser chamada de lesa-pátria. FHC não tinha o direito de liquidar um patrimônio construído por várias gerações, e que representava uma certa garantia de soberania nacional. As estatais não eram propriedade do governo, mas, sim, patrimônio de toda a sociedade. O Estado era o seu mero gerente. E o pior é que as privatizações não reduziram nem a dívida e nem o déficit. Para cobrir os rombos criados, elevaram os juros, quebraram a União, os Estados e os municípios. O modus operandi dos que comandaram a economia nessa era de triste memória, apropriadamente chamados por Biondi de “clones malditos dos intelectuais do passado” — uma referência a Otávio Gouvêa de Bulhões, Roberto Campos e Mário Henrique Simonsen —, começou a ser posto em prática em São Paulo, no episódio que culminou na privatização do Banespa, o banco do Estado.

Poucas horas antes da posse do primeiro mandato do governador Mário Covas, no final de 1994, o Banco Central decretou a intervenção no banco paulista, alegando que o Estado havia deixado de pagar uma parcela de um acordo de refinanciamento da dívida firmado com o governo federal. No entanto, o atraso era inferior a dez dias — e as regras do acordo de financiamento previam que qualquer punição somente poderia ser adotada após 30 dias de atraso. Além dessa irregularidade flagrante, o Banco Central afirmou, contra todas as evidências, que o banco tinha um “rombo”. As provas no processo judicial mostraram que o Banespa nunca quebrou. Mas a equipe de FHC construiu uma imagem de “quebra” para abrir caminho à privatização.

No segundo caso, o que Biondi chamou de “destruição da alma nacional”, os “clones malditos” investiram contra o trabalhador, o funcionalismo público, o aposentado, o agricultor, o empresário nacional e o Estado, patrocinando desemprego, cortes na aposentadoria e nos direitos trabalhistas, falsas reformas do funcionalismo, falências, facilidades para importações e juros escorchantes — jogando, assim, um seguimento da população contra outro. Até o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, o BNDES, foi posto a serviço dessa desconstrução nacional. (Biondi chamava o banco, na “era FHC”, de Banco Nacional de Desmantelamento Econômico e Social.)

São essas as linhas mestras da “agenda das reformas” herdada pelo governo Lula. Portanto, se havia uma premissa indisputada no processo de reconstrução nacional era o fato de que ninguém podia administrar o país empurrando esses problemas com a barriga. A regra era gerenciar o Estado elevando ao máximo o aproveitamento da energia gerada pelo desejo de mudança manifestado pela parte majoritária da sociedade. O problema era que essa mudança de paradigma gerou, consequentemente, uma arena de disputa mais acirrada. De um lado, estavam aqueles menos dispostos a esperar o retorno para as suas demandas. De outro, aqueles dispostos a empurrar o país de volta ao rumo do caminho do abismo construído pela “era FHC”.