De acordo com a professora de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a Revolução Russa foi “o elemento catalizador do Século XX”.  No seminário, Analúcia integrou a mesa Questão nacional na transição socialista na União Soviética e na China, ao lado do professor da UERJ, Elias Jabbour. 

“As críticas [à URSS] devem ser feitas, mas devem considerar que falamos de uma primeira experiência, de algo absolutamente original, sem receita ou referência concreta que pudesse influenciar aquele processo. Mais que isso, tratou-se de um elemento catalizador pelo alcance e pela duração. À revolução, se somaram mais países, que vão acabar formando um bloco soviético, um campo socialista. E, sem dúvida, temos que falar da sua influência na política global. Talvez hoje, se a URSS existisse, não enfrentaríamos muitos dos problemas com os quais temos que nos defrontar”, opinou.

Para exemplificar a grandeza da experiência soviética, Analúcia ressaltou que a URSS chegou a ocupar um sexto de toda a superfície terrestre, reunindo uma população de 293 milhões de habitantes, de variadas etnias e línguas. 

“A URSS percorreu, em curtíssimo tempo, do barbarismo a um elevado grau de cultura. Estou falando de uma sociedade absolutamente atrasada, analfabeta, que rapidamente atingiu níveis de desenvolvimento educacional e cultural. Estamos falando de uma estrutura orgânica, talvez a mais complexa que a ciência política tenha conhecimento (…) E também de um novo sistema de ética, com código de procedimentos surgido de uma experiência real, de uma sociedade transformada. Estamos falando de uma nova civilização”, defendeu.

Na sua avaliação, a ideia de que civilização é igual apenas a conforto material tem pautado as discussões sobre o assunto. Mas, ponderou, revolução social implicaria em uma revolução cultural.

“A falar da URSS, estamos falando de uma revolução em todos os níveis:  o nível do desenvolvimento humano, das capacidades humanas em todas as suas dimensões. E estou falando também da superação de elementos que o capitalismo não superará, porque se alimenta dessas questões: segregação e submissão social”.

Segundo Analúcia, tratou-se de um processo que teve contradições e dificuldades, mas  deve-se afastar a crítica fragmentada sobre essa experiência. “Temos que entender toda a ordem social da URSS a partir de seu conjunto e, não, de visões monográficas, a partir de conhecimentos específicos. Os problemas existiam, mas não podem ser analisados isoladamente”, pregou. 

Ela lembrou, por exemplo, que o capitalismo precisou de cinco séculos, pelo menos, para se constituir como um sistema amplo. “E nós estamos recém-comemorando o primeiro século das experiência socialistas. Precisamos de tempo histórico”, disse.

De acordo com a historiadora, a construção da Nação na URSS foi a experiência mais bem sucedida da modernidade, dentro do debate acerca do desenvolvimento humano e do bem-estar da coletividade. 

“Podemos falar, sim, que a URSS produziu o homem como cidadão, como produtor, apoiado na ciência, na educação, na tecnologia e nas artes. É um processo amplo e conjunto, não é individualista. É uma transformação coletiva”, afirmou. 

Segundo ela, é difícil reconhecer isso nos dias de hoje graças a uma série de questões, entre elas, o surgimento de uma “agenda pós-moderna” e a ideia de que “a modernidade estava morta”.

“Hoje temos essa perspectiva pós-moderna, do pensamento fragmentado. Nos apropriamos de alguns conceitos que são claramente pós-modernos e, no fim das contas, acabam influenciando num embate importante, que é o que opõe uma visão universalista a uma visão pluralista”, lamentou.

A historiadora avaliou que o respeito à diversidade é, claro, algo importante, já que os tipos de opressão são os mais variados. “Mas não podemos descartar de forma nenhuma os valores universalistas, aos quais o marxismo sempre esteve ligado. Não vamos reformar a visão marxista das coisas. Vamos fazer a crítica ao capitalismo então e, não, ao socialismo. A crítica ao socialismo tem que ser construtiva. Não podemos destruir a ideia de que o socialismo é uma direção possível”, defendeu.

O contexto da revolução

 

(Foto: Cezar Xavier)

Ao abordar a questão nacional na URSS, a professora questionou em que medida a prática de Lênin e dos bolcheviques de maneira geral esteve em conformidade  com os princípios enunciados nos textos teóricos e nas resoluções partidárias.

“Temos que fazer essa pergunta porque o que predominou, inevitavelmente, foi uma grande dose de pragmatismo, empirismo e adaptação às circunstâncias. Múltiplas foram as distorções das doutrinas bolcheviques sobre a questão nacional. Uma coisa é a teoria, outra é a circunstância, a realidade que você enfrenta”, resumiu.

Nesse sentido, ela chamou a atenção para as circunstâncias da Revolução Russa, enumerando alguns elementos históricos. De acordo com ela, a desintegração do império russo, depois da Revolução de Fevereiro, colocou aos revolucionários problemas concretos.

Entre eles, estavam a formação de um governo separatista em Kiev, berço do Estado russo; a declaração de independência da Finlândia e da Geórgia; e um movimento de insurreição que vinha desde 1916 no Turquistão. “Ou seja, a questão de transição, nesse momento, se colocava num nível mais concreto, que era a definição territorial”, disse.

Um outro elemento “traumático” para a edificação desse novo Estado foi o resultado do tratado de Brest-Litovski, um tratado de paz assinado entre o governo da Rússia e as Potências da Tríplice Aliança (Império Alemão, Império Austro – Húngaro, Bulgária e Império Otomano), em 1918. No âmbito deste tratado, a Rússia perdia, por exemplo, o controle sobre a Finlândia, Estônia, Letônia, Lituânia, Polônia, Bielorrússia e Ucrânia.

“O tratado reconheceu a derrota da Rússia [durante a Primeira Guerra Mundial] e seu desmembramento em termos que tendiam a ignorar fronteiras étnicas. A Rússia tinha que reconhecer a independência da Ucrânia e da Crimeia e, em várias províncias dessas regiões, por exemplo, a população era majoritariamente russa”, destacou a professora.

Além disso, o tratado privou o país do carvão da região de Donbass e do petróleo de Baku, colocando em xeque questões estratégicas para a formação desse Estado. “Essa era situação em julho de 1918, quando o V Congresso dos Sovietes adotou a constituição do novo país: República Socialista Soviética Federada da Rússia [em novembro de 1918, o tratado foi denunciado e quando termina a guerra civil, boa parte do território perdido havia sido reconquistado]”.

Alguns problemas importantes persistiram. “As independências da Ucrânia, da Geórgia, da Armênia já haviam sido reconhecidas pelo resto da Europa e ficaria muito difícil para o exército vermelho promover uma ação aberta de anexação. Teriam que se criar políticas para lidar com esse problema. Nesse contexto, o controle político central de Moscou vai ser estabelecido, quase como uma necessidade histórica. E vai, então, transferir poder para as organizações bolcheviques locais”, apontou.

Nesse sentido, cada uma das repúblicas proclamadas soviéticas e socialistas assinou um tratado com a República Russa. E a união, segundo Analúcia, foi mantida por disciplina partidária, pelo Exército e pela instituição dos comissários especiais.

A professora sublinhou que tudo isso aconteceu no contexto da Nova Política Econômica (NEP). “É uma situação incerta, produz uma série de desafios que vão ter que ser contornados. É nesse cenário que se cria a Comissão Constitucional. Lênin já estava bastante doente nesse momento. Stálin era secretário geral do Comitê Central, chefe de dois comissariados e vai se tornar presidente dessa comissão”, detalhou.

Lênin e Stálin

Ela destacou a contraposição entre Lênin e Stálin em torno do projeto de Constituição. “Segundo esse projeto, o qual Stálin teve papel importante na sua composição, a Geórgia, a Ucrânia, a Biolorrússsia, a Armênia, e várias outras repúblicas entrariam para a Federação Russa. Essa era a ideia inicial do Stálin. Na estrutura dessa nova Federação, cada um dos participantes teria os mesmos direitos, mas não teria necessidade de criar novas instituições de união”, detalhou. 

Haveria um comitê executivo central, e ele seria ampliado para desempenhar funções legislativas. Os representantes das repúblicas seriam incluídos no comitê proporcionalmente às populações que representavam.

Só existiriam comissariados militares, diplomáticos, de transporte e de comunicações no nível do governo central. Ou seja, o governo central controlaria os aspectos mais estratégicos. Abaixo, os comissariados de finanças, produção, trabalho e agricultura das repúblicas estariam formalmente subordinados aos comissariados da República da Rússia em Moscou, assim como os órgãos de combate à contrarrevolução.

Já as pastas de justiça, educação, propriedade da terra, interior, saúde e segurança social das repúblicas teriam status independente. “Então havia uma organização daquilo que as repúblicas teriam atuação mais ampla, daquilo que as repúblicas teriam que responder às diretrizes centrais e daquilo que era estratégico para o governo central. Esses elementos nos mostram que, sem dúvida, o projeto que Stálin propunha era a criação de um Estado consideravelmente mais unificado e centralizado que o modelo que ele havia definido como comissário das nacionalidade em 1921, que tinha uma convergência muito grande com as proposições do Lênin”, disse Analúcia.

O projeto de Stálin foi então enviado aos comitês centrais do partido em todas as repúblicas, que o apoiaram. A exceção foi a Geórgia. “Lênin reage de forma contundente, ele havia contemplado a criação de uma união aberta das repúblicas, imaginando que, uma vez derrubado o capitalismo, os outros países da Europa e da Ásia também fariam suas revoluções e iriam aderir voluntariamente à União. Lênin imaginava que nacionalismo russo poderia ser um perigo grande no sentido de bloquear o processo”, contou a professora, destacando as visões distintas sobre a construção do Estado.

Para a historiadora, a economia centralizada desempenhou um papel crucial na modernização da União Soviética, e isso não teria sido possível se tivesse sido adotado o modelo de união proposto por Lênin. “E, quando falo em uma modernização tão rápida, falo de algo que aparece em três níveis: coletivização da terra, industrialização e modernização das Forças Armadas. Stálin entendeu as ameaças securitárias que a URSS enfrentaria. Estamos falando de planejamento, do quanto isso é fundamental.  E, se observarmos o que aconteceu na URSS do primeiro plano quinquenal ao início do terceiro, que foi interrompido pela guerra, temos uma década em que essas questões se transformaram profundamente”.

Diversidade com unidade 

Outro elemento apontado por Analúcia como importante para entender a questão nacional na URSS são os efeitos da Segunda Guerra. Ela lembrou que, nos primeiros anos após a morte do Lênin, a propaganda oficial do partido combatia qualquer forma de nacionalismo, inclusive a vertente russa. “Houve uma vigorosa tentativa de criar um povo soviético, algo que se sobrepunha a formações menores, ligadas a questões estritamente socioculturais. Estou falando de projeto político, com impacto sobre a vida daquelas pessoas. E acho que houve um êxito importante graças ao avanço rápido da modernização”, colocou.

Ela destacou o quanto a sociedade soviética foi se estabelecendo a partir da fusão dos mais diferentes grupos. “A ideia da nacionalidade existia, porque está ligada à ideia da terra natal e, portanto, as repúblicas seriam a base daquelas nacionalidades. E, em cada uma delas, a diversidade era muito grande. Gostaria de lembrar que estamos falando de búlgaros, tchecos, poloneses, eslovacos que viviam na URSS, coreanos árabes, assírios, cineses, enfim, uma diversidade muito grande, mas ligada a um projeto mais amplo que é do povo soviético”, indicou.

A professora apresentou dados do censo de 1989, que computou a existência de mais 90 grupos étnicos ou nacionalidade na URSS. Entre eles,  22 tinham população acima de um milhão de habitantes. Os russos étnicos compunham 50,7% da população, e a república da Rússia comportava 51,6% da população soviética. 

De acordo com Analúcia, Stálin não teve muito êxito em preparar o povo para a guerra. E, entre os fatores que justificaram as derrotas em 1941 e 1942, ela aponta justamente a ausência de um patriotismo soviético. “Se observarmos o movimento de guerra, muitas cidades tiveram papel importante de resistência, como Odessa, Sebastopol, Leningrado e Moscou. Mas cidades na Ucrânia, Bielorrúsia, Lituânia e Letônia se renderam basicamente sem resistência. Essas derrotas levaram Stálin à revitalização do patriotismo russo, já no contexto de guerra”. 

A historiadora sublinhou que, em discurso proferido em 1941 Stálin exaltou o caráter patriótico da guerra. “Eu diria que, até o fim de 1941, podemos falar em um combate mortal entre fascismo e comunismo, mas, logo em seguida, vamos falar de uma batalha travada entre russos e alemães. E Stálin  percebe isso e vai promover o que a literatura apresenta como um processo de russificação”. 

A princípio, trata-se de um movimento que ocorreu dentro da própria Rússia, como resgate de elementos tradicionais – algo que ela associa com a estratégia adotada hoje pelo atual presidente Vladimir Putin. “Stálin reforma o Exército, comandantes passam a ser chamados de oficiais. Ele resgata patentes tradicionais, rebaixa a instituição dos comissários militares e cria um comando único. Revitaliza a igreja ortodoxa como elemento nacional importante”, exemplifica.

Analúcia destaca a dissolução do komintern como um elemento que faz parte dessa política. De acordo com ela, os motivos dessa iniciativa estavam expostos no Pravda: “A dissolução da Internacional Comunista tornará mais fácil organizar a pressão de todos os povos amantes da paz contra o inimigo comum, que era o hitlerismo, e denunciar a mentira dos hitletistas de que Moscou pretende interferir na vida de outros países e bolchevizá-los”.

Para a historiadora, tratava-se de um movimento importante no sentido de resgatar a questão do patriotismo, em um contexto de guerra. 

“O que quero dizer com tudo isso? O estágio construtivo da revolução foi obra do Stálin. A revolução é algo que destrói rompe, traz o caos. Os bolcheviques fizeram isso, foi necessário para a construção de uma nova sociedade, de um novo Estado fruto de uma revolução social e que é também nacional”, disse.

Na sua avaliação, no entanto, a URSS teria sim que desempenhar um papel internacional. “Stálin percebeu isso e negociou bem para que a URSS pudesse ‘entrar na lógica da guerra fria’. Não estamos falando só do papel que a URSS negociou na guerra, mas de um papel que a ela devia continuar desempenhando, não só em termos de sobrevivência nacional, mas num novo contexto internacional”, analisou.

Afinal, o pós-guerra trouxe uma realidade muito complexa ao sistema internacional como um todo. “O terceiro mundo está nascendo, em contexto de disputa não ideológica ou política, porque a guerra fria não é isso. A guerra fria é uma conflito que opõe formações sociais e forças politicas. A existência da URSS condicionou o Ocidente. Você acha que existiria Estado de bem-estar social no Ocidente se não houvesse União Soviética? Não”, opinou.

 Analúcia encerrou sua fala defendendo que esses são elementos importantes para entender como se resolveu o problema nacional da URSS com um projeto unitário, que produzisse uma identidade coletiva. “Isso estava ligado à ideia de um novo homem, o homem soviético, que era algo que estava sendo construído”, disse.

Ela declarou ainda todos os líderes políticos que vieram depois de Stálin, ao invés de darem continuidade a esse processo, deram início à sua desconstrução.  “Mas estamos falando de uma nação construída em Estado multinacional, multiétnico e que produziu o primeiro e mais inovador processo de integração”, concluiu.