No contexto das homenagens ao centenário da Revolução Russa, o Blog da Boitempo recupera quatro artigos jornalísticos do excepcional escritor Afonso Henriques de Lima Barreto, todos escritos no calor da hora entre 1918 e 1919. A enérgica e afiada defesa pública da Revolução Russa que emerge nesses textos se mostra tanto mais audaciosa por parte de Lima Barreto se considerarmos que a tônica geral das referências da elite intelectual da época aos acontecimentos de Outubro e ao recém estabelecido governo soviético era bastante depreciativa, para dizer o mínimo.

Este terceiro artigo, intitulado “Da minha cela” e publicado originalmente no dia 30 de novembro de 1918 no A.B.C, periódico carioca de orientação marxista e revolucionária, rebate as diversas críticas feitas nos jornais da época aos bolcheviques, referidos como “maximalistas”, e dispara: “Esse ódio ao maximalismo russo que a covardia burguesa tem, na sombra, propagado pelo mundo […] não se deve aninhar no coração dos que têm meditado sobre a marcha das sociedades humanas. A teimosia dos burgueses só fará adiar a convulsão que será então pior; e eles se lembrem, quando mandam cavilosamente atribuir propósitos iníquos aos seus inimigos, pelos jornais irresponsáveis; lembrem-se que, se dominam até hoje a sociedade, é à custa de muito sangue da nobreza que escorreu da guilhotina, em 93, na Praça da Grève, em Paris. Atirem a primeira pedra…”

Confira o primeiro artigo da série, o chamado “manifesto maximalista”, clicando aqui, e o segundo artigo, “Vera Zasulich”.

Boa leitura!

* * *

Da minha cela
Por Lima Barreto.
30.11.1918, A.B.C.

Não é bem um convento, onde estou há quase um mês; mas tem alguma coisa de monástico, com o seu longo corredor silencioso, para onde dão as portas dos quartos dos enfermos.

É um pavilhão de hospital, o Central do Exército; mas a minha enfermaria não tem o clássico e esperado ar das enfermarias: um vasto salão com filas paralelas de leitos.

Ela é, como já fiz supor, dividida em quartos e ocupo um deles, claro, com uma janela sem um lindo horizonte como é tão comum no Rio de Janeiro.

O que ela me dá é pobre e feio; e, além deste contratempo, suporto desde o clarear do dia até à boca da noite o chilreio desses infames pardais. No mais, tudo é bom e excelente nesta ala de convento que não é todo leigo, como poderia parecer a muitos, pois na extremidade do corredor há quadros de santos que eu, pouco versado na iconografia católica, não sei quais sejam.

Além desses registos devotos, no pavimento térreo, onde está o refeitório, há uma imagem de Nossa Senhora que preside as nossas refeições; e, afinal, para de todo quebrar-lhe a feição leiga, há a presença das irmãs de São Vicente de Paula. Admiro muito a translucidez da pele das irmãs moças; é um branco pouco humano.

A minha educação céptica, voltairiana, nunca me permitiu um contato mais contínuo com religiosos de qualquer espécie. Em menino, logo após a morte de minha mãe, houve uma senhora idosa, Dona Clemência, que assessorava a mim e a meus irmãos, e ensinou-me um pouco de catecismo, o “Padre-Nosso”, a “Ave-Maria” e a “Salve-Rainha”, mas bem depressa nos deixou e eu não sabia mais nada dessas obrigações piedosas, ao fim de alguns meses.

Tenho sido padrinho de batismo umas poucas de vezes e, quando o sacerdote, na celebração do ato, quer que eu reze, ele tem que me ditar a oração.

A presença das irmãs aqui, se ainda não me fez católico praticante e fervoroso, até levar-me a provedor de irmandade como o Senhor Miguel de Carvalho, convenceu-me, entretanto, de que são úteis, senão indispensáveis aos hospitais.

Nunca recebi (até hoje), como muitos dos meus companheiros de enfermaria, convite para as suas cerimônias religiosas. Elas, certamente, mas sem que eu desse motivo para tal, me supõem um tanto herege, por ter por aí rabiscado uns desvaliosos livros.

Por certo, no seu pouco conhecimento da vida, julgam que todo escritor é acatólico. São, irmãs, até encontrarem um casamento rico que os faz carolas e torquemadescos. Eu ainda espero o meu…

Testemunha do fervor e da dedicação das irmãs no hospital em que estou, desejaria que fossem todas elas assim; e deixassem de ser, por bem ou por mal, pedagogas das ricas moças da sinistra burguesia, cuja cupidez sem freio faz da nossa vida atual um martírio, e nela estiola a verdadeira caridade.

Não sei como vim a lembrar-me das causas nefandas daí de fora, pois vou passando sem cuidado, excelentemente, neste coenobium semileigo em que me meti. Os meus médicos são moços dedicados e interessados, como se amigos velhos fossem, pela minha saúde e restabelecimento.

O doutor Alencastro Guimarães, o médico da minha enfermaria, colocou-me no braço quebrado o aparelho a que, parece, chamam de Hennequin!

Sempre a literatura e os literatos…

Antes, eu me submeti à operação diabólica do exame radioscópico.

A sala tinha uma pintura negra, de um negro quase absoluto, lustroso, e uma profusão de vidros e outros aparelhos desconhecidos ou mal conhecidos por mim, de modo que, naquele conjunto, eu vi alguma coisa de Satanás, a remoçar-me para dar-me Margarida, em troca da minha alma.

Deitaram-me em uma mesa, puseram-me uma chapa debaixo do braço fraturado e o demônio de um carrinho com complicações de ampolas e não sei que mais correu-me, guiado por um operador, dos pés até à ponta do nariz. Com uma bulha especial, fui sentindo cair sobre o ombro e o braço uma tênue chuva extraordinariamente fluídica que, com exagero e muita tolice, classifico de imponderável.

Além do doutor Alencastro, nos primeiros dias, a minha exaltação nervosa levou-me à enfermaria do doutor Murilo de Campos. Esta tinha o aspecto antipático de uma vasta casa-forte. Valentemente, as suas janelas eram gradeadas de varões de ferro e a porta pesada, inteiramente de vergalhões de ferro, com uma fechadura complicada, resistia muito, para girar nos gonzos, e parecia não querer ser aberta nunca. Lasciate ogni speranza…

Tinha duas partes: a dos malucos e a dos criminosos. O crime e a loucura de Maudsley, que eu lera há tantos anos, veio-me à lembrança; e também a Recordação da casa dos mortos, do inesquecível Dotoievski.

Pensei amargamente (não sei se foi só isso) que, se tivesse seguido os conselhos do primeiro e não tivesse lido o segundo, talvez não chegasse até ali; e, por aquela hora, estaria a indagar, na Rua do Ouvidor, quem seria o novo ministro da Guerra, a fim de ser promovido na primeira vaga. Ganharia seiscentos mil-réis – o que queria eu mais? Mas… Deus escreve direito por linhas tortas; e estava eu ali muito indiferente à administração da República, preocupado só em obter cigarros.

Os loucos ou semiloucos que lá vi pareceram-me pertencer à última classe dos malucos. Tenho, desde os nove anos, vivido no meio de loucos. Já mesmo passei três meses mergulhado no meio deles; mas nunca vi tão vulgares como aqueles. Eram completamente destituídos de interesse, átonos, e bem podiam, pela sua falta de relevo próprio, voltar à sociedade, ir formar ministérios, câmaras, senados e mesmo um deles ocupar a suprema magistratura. Deixemos a política… A irmã dessa enfermaria maudsliana é francesa; mas a daquela em que fiquei definitivamente é brasileira, tendo até na fisionomia um não-sei-quê de andradino. Ambas muito boas.

O médico da enfermaria, como já disse, é o doutor Murilo de Campos, que parece gostar de sondar essas duas manifestações misteriosas da nossa natureza e da atividade das sociedades humanas.

Como todo o médico que se compraz com tais estudos, o doutor Murilo tem muito interesse pela literatura e pelos literatos. Julgo que os médicos dados a tais pesquisas têm esse interesse no intuito de obter nos literatos e na literatura subsídios aos estudos que estão acumulando, a fim de que um dia se chegue a decifrar, explicar, evitar e exterminar esses dois inimigos da nossa felicidade, contra os quais, até hoje, a bem dizer, só se achou a arma horripilante da prisão, do sequestro e da detenção.

Creio que lhe pareci um bom caso, reunindo muitos elementos que quase sempre andam esparsos em vários indivíduos; e o doutor Murilo me interrogou, de modo a fazer que me introspeccionasse um tanto. Lembrei-me então de Gaston Rougeot que, na Revue des Deux Mondes, há tantos anos, tratando desse interrogatório feito aos doentes pelos médicos, muito usado e preconizado pelo famoso psicólogo Janet, concluía daí que a psicologia moderna, tendo aparecido com aparelhos registradores e outros instrumentos de precisão, que lhe davam as fumaças de experimental, acabava na psicologia clássica da introspecção, do exame e análise das faculdades psíquicas do indivíduo por ele próprio com as suas próprias faculdades, pois a tanto correspondia o inquérito do clínico a seu cliente.

Não entendo dessas coisas; mas posso garantir que dei ao doutor Murilo, sobre os meus antecedentes as informações que sabia; sobre as minhas perturbações mentais, informei-lhe do que me lembrava, sem falseamento nem relutância, esperando que o meu depoimento possa concorrer algum dia para que, com mais outros sinceros e leais, venha ele servir à ciência e ela tire conclusões seguras, de modo a aliviar de alguns males a nossa triste e pobre humanidade. Sofri também mensurações antropométricas e tive com o resultado delas um pequeno desgosto. Sou braquicéfalo; e, agora, quando qualquer articulista da A Época quiser defender uma ilegalidade de um ilustre ministro, contra a qual eu me haja insurgido, entre os meus inúmeros defeitos e incapacidades, há de apontar mais este: é um sujeito braquicéfalo; é um tipo inferior!

Fico à espera da objurgatória com toda a paciência, para lhe dar a resposta merecida pelo seu saber antropológico e pela sua veneração aos caciques republicanos quando estão armados com o tacape do poder.

Pois, meus senhores, como estão vendo, nestes vinte e poucos dias, durante os quais tenho passado neste remansoso retiro, semirreligioso, semimilitar – espécie de quartel-convento de uma ordem guerreira dos velhos tempos de antanho, têm-me sido uns doces dias de uma confortadora delícia de sossego, só perturbado por esses ignóbeis pardais que eu detesto pela sua avidez de homem de negócios e pela sua crueldade com os outros passarinhos.

Passo-os a ler, entre as refeições, sem descanso, a não ser aquele originado pela passagem da leitura de um livro para um jornal ou da deste para uma revista. A leitura assim feita, sem pensar em outro que fazer, sem poder sair, quase prisioneiro, é saboreada e gozada. Ri-me muito gostosamente do pavor que levaram a todo o Olimpo governamental os acontecimentos de 18.

Não sei como não chamaram para socorrê-lo os marinheiros do “Pittsburg”… Não era bem do programa; mas não sairia da sua orientação.

O que os jornais disseram, uns de boa-fé e outros cavilosamente inspirados, sobre o maximalismo e o anarquismo, fez-me lembrar como os romanos resumiam, nos primeiros séculos da nossa era, o cristianismo nascente. Os cristãos, afirmavam eles categoricamente, devoram crianças e adoram um jumento. Mais ou menos isto julgaram os senhores do mundo uma religião que tinha de dominar todo aquele mundo por eles conhecido e mais uma parte muito maior cuja existência nem suspeitavam…

O ofício que o Senhor Aurelino dirigiu ao Senhor Amaro Cavalcânti, pedindo a dissolução da União Geral dos Trabalhadores, é deveras interessante e guardei-o para a minha coleção de coisas raras.

Gostava muito do Senhor Aurelino Leal, pois me pareceu sempre que tinha horror às violências e arbitrariedades da tradição do nosso Santo Ofício policial.

Quando a Gazeta de Notícias andou dizendo que Sua Senhoria cultivava amoricos pelas bandas da Tijuca, ainda mais gostei do doutor Aurelino.

Lembrei-me até de uma fantasia de Daudet que vem nas Lettres de mon Moulin. Recordo-a.

Um subprefeito francês, em carruagem oficial, todo agaloado, ia, num dia de forte calor, inaugurar um comício agrícola. Até ali não tinha conseguido compor o discurso e não havia meio de fazê-lo. Ao ver, na margem da estrada, um bosque de pinheiros, imaginou que à sombra deles a inspiração lhe viesse mais prontamente e para lá foi. As aves e as flores, logo que ele começou – “minhas senhoras, meus senhores” – acharam a coisa hedionda, protestaram; e, quando os seus serviçais vieram a encontrá-lo, deram com o sublime subprefeito, sem casaca agaloada, sem chapéu armado, deitado na relva, a fazer versos. Deviam ser bons…

Mas o Senhor Aurelino, que ia fazer versos ou coisa parecida no Lago das Fadas, no Excelsior, na gruta Paulo e Virgínia, lá na maravilhosa floresta da Tijuca, deu agora para Fouché caviloso, para Pina Manique ultramontano do Estado, para Trepoff, para inquisidor do candomblé republicano, não hesitando em cercear a liberdade de pensamento e o direito de reunião, etc. Tudo isto me fez cair a alma aos pés e fiquei triste com essa transformação do atual chefe de polícia, tanto mais que o seu ofício não está com a verdade, ao afirmar que o maximalismo não tem “uma organização de governo”.

Não é exato. O que é Lênin? O que são os soviets? Quem é Trótski? Não é este alguma coisa ministro como aqui foi Rio Branco, com menos poder do que o barão, que fazia o que queria?

Responda, agora, se há ou não organização de governo, na Rússia de Lênin. Se é por isso só que implica com o bolchevismo…

Esse ódio ao maximalismo russo que a covardia burguesa tem, na sombra, propagado pelo mundo; essa burguesia cruel e sem coragem, que se embosca atrás de leis, feitas sob a sua inspiração e como capitulação diante do poder do seu dinheiro; essa burguesia vulpina que apela para a violência pelos seus órgãos mais conspícuos, detestando o maximalismo moscovita, deseja implantar o “trepoffismo” [referência a Dmitri Feodorovich Trepov], também moscovita, como razão de Estado; esse ódio – dizia – não se deve aninhar no coração dos que têm meditado sobre a marcha das sociedades humanas. A teimosia dos burgueses só fará adiar a convulsão que será então pior; e eles se lembrem, quando mandam cavilosamente atribuir propósitos iníquos aos seus inimigos, pelos jornais irresponsáveis; lembrem-se que, se dominam até hoje a sociedade, é à custa de muito sangue da nobreza que escorreu da guilhotina, em 93, na Praça da Grève, em Paris. Atirem a primeira pedra…

Lembro-lhes ainda que, se o maximalismo é russo, se o “trepoffismo” é russo – Vera Zasulitch também é russa…

Agora, vou ler um outro jornal… É o O País, de 22, que vai me dar grande prazer com o seu substancioso leading-article, bem recheado de uma saborosa sociologia de “revistas”.

Não há nada como a leitura de revues ou de reviews. Vou mostrar por quê. Lê-se, por exemplo, o nº 23 da Revue Philosophique, é-se logo pragmatista; mas dentro de poucos dias, pega-se no fascículo 14 da Fortnightly Review, muda-se num instante para o spencerismo.

De modo que uma tal leitura, quer se trate de sociologia, de filosofia, de política, de finanças, dá uma sabedoria muito própria a quem quer sincera e sabiamente ter todas as opiniões oportunas.

O artigo de fundo do O País, que citei, fez-me demorar a atenção sobre vários pontos seus que me sugeriram algumas observações.

O articulista diz que a plebe russa estava deteriorada pela vodka e as altas classes debilitadas por uma cultura intelectual refinada, por isso o maximalismo obteve vantagens no ex-império dos czares. Nós, porém, brasileiros, continua o jornalista, somos mais sadios, mais equilibrados e as nossas (isto ele não disse) altas classes não têm nenhum refinamento intelectual.

O sábio plumitivo, ao afirmar essas coisas de vodka, de “sadio”, de “equilibrado”, a nosso respeito, esqueceu-se que a nossa gente humilde, e mesmo a que não o é totalmente, usa e abusa da “cachaça”, aguardente de cana (explico isto porque talvez ele não saiba), a que é arrastada, já por vício, já pelo desespero da miséria em que vive graças à ganância, à falta de cavalheirismo e sentimento de solidariedade humana do nosso fazendeiro, do usineiro e, sobretudo, do poder oculto desse esotérico Centro Industrial e da demostênica Associação Comercial, tigres acocorados nos juncais, à espera das vítimas para sangrá-las e beber-lhes o sangue quente. Esqueceu-se ainda mais das epidemias de loucura, ou melhor, das manifestações de loucura coletiva (Canudos, na Bahia; Mukers, no Rio Grande do Sul, etc.); esqueceu-se também do Senhor doutor Miguel Pereira (“O Brasil é um vasto hospital”).

Esquecendo-se dessas coisas comezinhas que são do conhecimento de todos, não é de espantar que afirme ser o anarquismo os últimos vestígios da filosofia (não ponho a chapa que lá está) do Contrato social de Rousseau.

Pobre Jean-Jacques! Anarquista! Mais esta, hein, meu velho?

Mais adiante, topei com esta frase que fulmina o maximalismo, o anarquismo, o socialismo, como um raio de Zeus Olímpico: “Na placidez estéril do ‘nirvana’ da preguiça universal.”.

Creio que foi Taine quem, num estudo sobre o budismo, disse ser difícil à nossa inteligência ocidental bem apreender o que seja “nirvana”.

Está-se vendo que o incomparável crítico francês tinha bastante razão… O profundo articulista acoima de velharias as teorias maximalistas e anarquistas às quais opõe, como novidade, a surgir do término da guerra, um nietzschismo, para uso dos açambarcadores de tecidos, de açúcar, de carne-seca, de feijão, etc. Não trepida, animado pelo seu recente super-humanismo, de chamar de efeminadas as doutrinas dos seus adversários, que vêm para a rua jogar a vida e, se presos, sofrer sabe Deus o quê. Os cautelosos sujeitos que, nestes quatro anos de guerra, graças a manobras indecorosas e inumanas, ganharam mais do que esperavam em vinte, estes é que devem ser viris como os tigres, como as hienas e como os chacais. Eu me lembrei de escrever-lhes as vidas, de compará-las, de fazer com tudo isso uma espécie de Plutarco, já que não posso organizar um jardim zoológico especial com tais feras, bem encarceradas em jaulas bem fortes.

Vou acabar, porque pretendo iniciar o meu Plutarco; mas, ao despedir-me, não posso deixar de ainda lamentar a falta de memória do articulista do O País quando se refere à idade de suas teorias. Devia estar lembrado que Nietzsche deixou de escrever em 1881 ou 82; portanto, há quase quarenta anos; enlouqueceu totalmente, tristemente, em 1889; e veio a morrer, se não me falha a memória, em 1897 – por aí assim.

As suas obras, as últimas, têm pelo menos quarenta anos ou foram pensadas há quarenta anos. Não são, para que digamos, lá muito vient de paraître. Serão muito pouco mais moças do que as que inspiram os revolucionários russos… Demais, o que prova a idade de uma obra quanto à verdade ou à mentira que ela pode encerrar? Nada.

Compete-me dizer afinal ao festejado articulista que o Zaratustra, do Nietzsche, dizia que o homem é uma corda estendida entre o animal e o super-humano – uma corda sobre um abismo. Perigoso era atravessála; perigoso, ficar no caminho; perigoso, olhar para trás. Cito de cor, mas creio que sem falsear o pensamento.

Tome, pois, o senhor jornalista cuidado com o seu nietzschismo de última hora, a serviço desses nossos grotescos super-homens da política, da finança e da indústria; e não lhe vá acontecer o que se passou com aquele sujeito que logo aprendeu a correr em bicicleta, mas não sabia saltar. E – note bem – ele não corria ou pedalava em cima de uma corda estendida sobre um abismo…

É o que ouso lembrar-lhe desta minha cela ou quarto de hospital, onde passaria toda minha vida, se não fossem os horrorosos pardais e se o horizonte que eu diviso fosse mais garrido ou imponente.