Sua posição acerca das relações entre a teoria marxista e a prática cotidiana do partido também segue de perto o catecismo kautskyano. Ao mesmo tempo em que defende, por exemplo, a luta sindical e parlamentar como a tática mais apropriada para “socializar o conhecimento, isto é, para fortalecer a consciência do proletariado, organizando-o enquanto classe”, Rosa insiste na imantação do combate em prol de reformas por um objetivo final. Com isso, não visa tanto explicar a importância da adesão ao socialismo como uma etapa necessária na preparação das massas para a conquista do poder, mas sobretudo justificar (contestando as acusações levantadas por Bernstein acerca de uma defasagem entre a teoria e a prática nos partidos da Segunda Internacional) a forma como a social-democracia alemã incorporou o “socialismo científico”.

Em 1906, Rosa afasta-se radicalmente de Kautsky e de sua ortodoxia ao publicar Greve de massas, partido e sindicatos. Redigido no âmbito das discussões acerca do significado da Revolução Russa de 1905, esse livro estabelece um novo programa de ação revolucionária, determinando uma inflexão definitiva na teoria e na prática política luxemburgista. Ele delineia, de certo modo, os princípios da estratégia que Rosa seguirá até o trágico desenlace da revolução alemã no inverno de 1918.

Greve de massas, partido e sindicatos diferencia-se de Reforma social ou revolução? não só pela preocupação em especificar formulações genéricas e abstratas ali espalhadas um tanto quanto desordenadamente, mas principalmente por uma mudança em relação a alguns dos pontos definidores da sua posição durante a controvérsia do revisionismo. Dentre estes, talvez o mais decisivo seja sua reavaliação da trajetória política do SPD. Desencantada com as diretrizes ditadas pelas cúpulas partidária e sindical, Rosa tende a concordar (embora para extrair a consequência oposta) com a afirmação de Bernstein de que, mantidas as coisas como estão, a social-democracia encaminha-se para se transformar gradualmente num partido exclusivamente eleitoral e parlamentar.

A decepção com a eficácia da tática histórica do socialismo alemão desperta em Rosa uma profunda desconfiança em relação a propostas de direcionamento político que concedem primazia a um programa de reformas. Afastando-se cada vez mais da ortodoxia, repensando a relação entre a teoria e a prática em função da ação revolucionária, Rosa desenvolveu, junto com o seu programa de ação, uma nova compreensão do marxismo que se configurou, para muitos, como a forma mais apta (na era de revoluções aberta pelo 1905 russo) de levar adiante essa tradição. [2]

Rosa Luxemburgo ressalta, de início, que uma observação cuidadosa da origem e do andamento da insurreição russa não permite “falar nem de plano preestabelecido, nem de ação organizada”. Dessa simples inferência, à primeira vista banal, ela extrai, no entanto, as três principais conclusões da sua interpretação.

Primeira, a greve de massas não é um “meio engenhoso” inventado para reforçar ou auxiliar a luta diária dos trabalhadores, consiste na própria forma de manifestação do proletariado no decorrer da revolução. Isso altera completamente a versão corrente acerca da função desse método de combate, pois deixa claro que, nas palavras de Rosa, “não é a greve de massas que produz a revolução, mas a revolução é que produz a greve de massas”. [3]

Segunda, o caráter “espontâneo” da sublevação inverte a equação montada pela ortodoxia da social-democracia alemã (pilastra central da sua estratégia histórica): não são a “educação política, a consciência de classe e a organização” que tornam o proletariado revolucionário, mas é a ação revolucionária que educa, conscientiza e organiza a classe operária.

Terceira, a espontaneidade das massas proletárias – aparentemente desordenada e caótica, já que num vai-e-vem constante ora se aglutina em torno de uma reivindicação política ora se dispersa em inumeráveis greves econômicas – atesta, no entanto, uma permanente união e interação, mesmo que subterrânea, entre a luta econômica e a luta política.

A tendência de Rosa em destacar os princípios gerais, minimizando a especificidade da Revolução de 1905 explica-se como um desdobramento lógico de sua aposta num futuro prenhe de insurreições operárias (profecia que, diga-se de passagem, revelou-se acertada), traduzida no prognóstico: “a revolução russa não é menos herdeira das velhas revoluções do que precursora de uma nova série de revoluções proletárias”. Mas também não deixa de estar orientada pelo propósito de avalizar a possibilidade de uma transposição sem escalas do método russo para a realidade da Alemanha, premissa decisiva do novo programa revolucionário que formula para o proletariado alemão.

É, portanto, dentro de um cenário colorido pela expectativa de que o “impulso revolucionário” do Oriente possa também desencadear eventos similares no Ocidente que Rosa se propõe a aplicar e a adequar as conclusões de suas reflexões sobre os acontecimentos de 1905 à Alemanha. Se cabe generalizar sua (primeira) conclusão de que a greve de massas é mais que um mero meio de reforçar o combate da classe operária, já que consiste na própria forma de manifestação do proletariado no decorrer da revolução, fica claro então que o modelo insurrecional sob o qual se pensara até então a passagem ao socialismo caducara. O advento e a supremacia do método de greves de massas durante a revolução russa teria gerado implicações distintas, e menos óbvias, que o dilema de incorporar ou não esse procedimento ao estoque de recursos da luta socialista, como fazia crer sua recepção pela socialdemocracia alemã. Apontava particularmente para a superação do padrão instaurado pelo ciclo das revoluções burguesas: “A incipiente forma de luta das revoluções burguesas, o combate nas barricadas, o confronto direto com os poderes armados do Estado, é, na revolução atual, apenas um evento externo, apenas um momento de todo o processo da luta proletária de massas”. [4]

Por sua vez, a (segunda) conclusão de que não é a “educação política, a consciência de classe e a organização” que tornam o proletariado revolucionário, mas é a ação revolucionária que educa, conscientiza e organiza a classe operária, desmonta o principal axioma da estratégia histórica da socialdemocracia alemã. Afinal, se é verdade que “as revoluções não se aprendem na escola”, a premissa de que “antes de executar uma ação direta de massas os operários devem estar organizados na sua totalidade” está completamente equivocada. Seguindo esse raciocínio, Rosa não apenas sugere que se altere a tática socialista, substituindo a primazia da atuação eleitoral e parlamentar pelas diversas formas de ação extraparlamentar, mas também estabelece uma nova maneira de desenvolver a proposta de Engels de uma “revolução da maioria”.

A recomendação de uma organização prévia da classe operária sempre se assentou (seja em Bernstein, em Kautsky ou mesmo na primeira Rosa) no pressuposto, até então indiscutido, de que se tratava da melhor forma de levar adiante o trabalho a longo prazo e o combate prolongado por posições, inerentes às exigências dos novos tempos. Entretanto, de acordo com a interpretação de Greve de massas, partido e sindicatos, os acontecimentos de 1905 teriam ensinado duas coisas bem diferentes. Para quem visa de fato a superação do capitalismo, o modo mais conveniente de conduzir uma luta demorada e persistente é a própria ação revolucionária. Além disso, a fórmula de Engels deve ser tomada ao pé da letra, isto é, qualquer esforço que procure prescindir da contribuição das massas desorganizadas corre o risco de tornar-se inócuo.

Com isso, Rosa não descarta a necessidade da organização, apenas inverte seu nexo tradicional com o combate político: “o entendimento rígido, mecânico-burocrático, só admite a luta como produto da organização que atinja certa força. O desenvolvimento dialético vivo leva, ao contrário, à organização como produto da luta”. [5] A nova estratégia que ela propaga não deixa, porém, de deslocar, pelo menos em parte, o fulcro das “minorias organizadas” para as frequentemente subvalorizadas “camadas mais extensas das massas proletárias desorganizadas, revolucionárias por simpatia [com o socialismo] e pela sua condição”. De agora em diante, o êxito das manifestações de massa (e, portanto, da própria “revolução da maioria”) estaria condicionado à capacidade do proletariado para arrastar essas camadas, ou seja, passa a depender, cada vez mais, da possibilidade de transformar as sublevações operárias em autênticos “movimentos populares”.

Entretanto, o ponto onde fica mais evidente o propósito de Rosa Luxemburgo de extrair lições da revolução russa compatíveis com a situação da Alemanha é no aproveitamento que ela faz da sua (terceira) conclusão de que a aparente dispersão da ação proletária ocultaria uma união e uma interação mais profundas entre a luta econômica e a luta política.

À luz das greves de massas de 1905, o conflito entre as duas principais organizações do movimento operário alemão, o partido e os sindicatos, aparece então como um “produto artificial, embora historicamente explicável, do período parlamentar”. Assim, a autonomia adquirida por cada uma dessas formas de ação (ou mesmo a distinção teórica segundo a qual o combate sindical abarca os interesses imediatos e o combate levado adiante pelo partido os interesses futuros) decorreria, em grande medida, da burocratização e da especialização (matriz de uma casta de dirigentes sindicais permanentes) inerentes a um período – segundo sua opinião, já concluído – de prosperidade econômica e apatia política.

Diante da ameaça de divisão do campo socialista alemão, configurada pelo confronto entre partido e sindicatos, esse programa genérico singulariza-se ainda mais. Tendo em vista que, na sua interpretação, a oposição entre partido e sindicatos derivava apenas da animosidade dos funcionários da cúpula sindical (guardiões de seus próprios interesses), [6] Rosa propõe que a unidade da social-democracia seja preservada, doravante, “pela base”:

“Nada seria mais contrário ou desesperançoso do que querer construir a unidade almejada por intermédio de negociações esporádicas ou periódicas, acerca de questões individuais do movimento operário, entre a liderança partidária socialdemocrata e central sindical. Justamente as instâncias superiores das duas formas do movimento operário encarnam sua separação e autonomização em si, e são pois – isso se refere nomeadamente à direção sindical – portadores e pilares da ilusão da “igualdade de direitos” e da coexistência paralela da socialdemocracia e dos sindicatos. Querer construir a unidade de ambas pela ligação da direção partidária e pela comissão geral dos sindicatos seria querer edificar uma ponte justamente onde a distância é maior e a passagem mais difícil. […] Não é no alto, no cume das lideranças das organizações e da sua associação federativa, mas na base, na massa proletária organizada, que se encontra a garantia para a verdadeira unidade do movimento operário.” [7]

Com isso, porém, Rosa Luxemburgo acaba delineando mais do que uma simples sugestão acerca do modo mais adequado de resolver a controvérsia entre os dois braços da social-democracia. Ao mesmo tempo em que prega desobediência à hierarquia e às diretrizes consagradas do partido e dos sindicatos, ela não deixa de propor também uma nova maneira de compreender o marxismo. A seu ver, a solução geral para os dilemas – e, em especial, para a ameaça de desintegração – do movimento operário alemão seria a adoção, “pela base” de uma ação não reformista. A necessidade de manter a unidade das forças socialistas exigiria, portanto, que o marxismo voltasse a ser determinado, à maneira da sua apresentação inicial levada a cabo pelo próprio Marx no Manifesto Comunista, em função de sua interação com a prática revolucionária.

__________________________

[1]  Rosa Luxemburgo reafirma essa concepção em várias passagens. Numa delas, por exemplo, opõe à argumentação dos revisionistas a tese de que “a transformação socialista é consequência das contradições objetivas da ordem capitalista, que com seu crescimento desenvolverá suas contradições internas e inevitavelmente, em algum momento terá como resultado o seu colapso” (Idem. Reforma social ou revolução?, p. 11). Veja também Marco Aurélio Garcia, A Questão da Revolução e Rosa Luxemburgo, p. 65-66.

[2] Lukács, por exemplo, em um prefácio de 1921 a uma edição húngara de Greve de massas, partido e sindicatos, classifica Rosa Luxemburgo como “a maior entre os maiores”, entre outros motivos, porque foi a primeira a “descobrir a única arma eficaz contra os perigos do imperialismo: os movimentos de massa revolucionários” (György Lukács, “Prefácio a Greve de massas, partido e sindicatos”, p. 321).

[3]  Rosa Luxemburgo, Greve de massas, partido e sindicatos, p. 305-306.

[4] Idem. Greve de massas, partido e sindicatos, p. 325-326.

[5] Idem. Ibidem, p. 318.

[6] Segundo Rosa Luxemburgo, “o mesmo movimento sindical que na base, com a socialdemocracia, na ampla massa proletária, está completamente unificado, em cima, na superestrutura administrativa, separa-se bruscamente da socialdemocracia, e se coloca como uma segunda potência independente, em contraste com ela. O movimento operário alemão adquire assim a forma peculiar de uma pirâmide dupla, cuja base e corpo são constituídos da mesma massa, sendo que as duas pontas, porém, encontram-se uma longe da outra” (Idem. Greve de massas, partido e sindicatos, p. 346-347). 

[7]  Idem. Ibidem, p. 347-348.

Sugestões de leitura

Marco Aurélio Garcia, “A Questão da Revolução e Rosa Luxemburgo”, In: Isabel Loureiro e Tullo Vigevani (orgs.). Rosa Luxemburgo: A recusa da alienação, p. 61-68, São Paulo, Unesp, 1991.

György Lukács, “Prefácio a Greve de massas, partido e sindicatos”, In Michael Löwy, A evolução política de Lukács (1909-1929), p. 320-326, São Paulo, Cortez, 1998.

Rosa Luxemburgo, Greve de massas, partido e sindicatos, In Isabel Loureiro (org.). Rosa Luxemburgo: Textos escolhidos, vol. I, p. 263-349, São Paulo, Editora Unesp, 2011.

Rosa Luxemburgo, Reforma social ou revolução? In: Isabel Loureiro (org.), Rosa Luxemburgo: Textos escolhidos, vol. I, p. 1-88, São Paulo, Editora Unesp, 2011.   

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Ricardo Musse é professor no departamento de sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo. Doutor em filosofia pela USP (1998) e mestre em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1992). Atualmente, integra o Laboratório de Estudos Marxistas da USP (LEMARX-USP) e colabora para a revista Margem Esquerda: ensaios marxistas, publicação da Boitempo Editorial. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas.