No último sábado (19), uma comitiva do Partido Comunista do Brasil no Rio Grande do Norte percorreu 96 km de Natal à bela enseada que forma a única baía do Estado. No município de Baía Formosa, objetivava resgatar o exemplo de vida e de luta de uma nordestina, filha e neta de militantes comunistas, que teve sua trajetória política forjada nas lutas clandestinas do Partido Comunista Brasileiro (PCB), ao lado do companheiro Luiz Carlos Prestes, líder da maior marcha militar da história da humanidade e ex-senador da República, com quem conviveu durante 40 anos e com o qual criou 9 filhos.

Mas na casa da filha Mariana Ribeiro Prestes, eis que surge uma mulher comum, mãe, cidadã. A imagem de Maria Prestes nem de longe se assemelha a da mulher política que é, valente e abnegada, que enfrentou os desafios com altivez e superou tarefas difíceis. Mulher simples, como foi a sua vida, não se importou em abdicar das benesses de sua vida pessoal em prol de suas convicções políticas. Reconhecendo as suas fraquezas, foi na convivência com o povo, com os trabalhadores e com seus camaradas que buscou a força para enfrentar as batalhas.

Filha de agricultores pernambucanos e militantes comunistas, Maria tomou contato com ideias avançadas ainda na infância e desde então assumiu a militância política e dedicou todos os seus dias a lutar por um novo modelo de Sociedade, mais justa e igualitária. E, foi assim, nas atividades políticas da militância comunista que ela conheceu Luis Carlos Prestes.

Aos 19 anos, já tinha uma base ideológica formada, mas que terminou de ser esculpida por uma das personalidades mais marcantes da história do Brasil, o grande patriota e lutador das causas sociais Luiz Carlos Prestes. “Meu pai foi um dos principais colaboradores para a minha formação, mas considero Prestes uma personagem do país que muito me ensinou”, ressalta Maria em depoimento.

Durante a visita, Maria Prestes concedeu uma longa e descontraída entrevista, contando boa parte de sua vida. Revelou trechos de sua vida militante antes de conhecer o líder revolucionário comunista, sua ligação com o PCB já na infância, a militância na juventude, a responsabilidade de trabalhar no aparelho de segurança de Prestes na década de 1950 e a vida em família, confidenciando experiências com o companheiro, a vida na clandestinidade, a dificuldade de criar os filhos, a vida na União Soviética e a luta pós-anistia.

Prisão, fuga, clandestinidade e, é claro, amor fazem parte do roteiro da vida de Altamira Rodrigues Sobral que virou Maria do Carmo Ribeiro, e hoje é mais conhecida como Maria Prestes.

Maria, antes de iniciar o relacionamento com Luiz Carlos Prestes, a senhora já tinha uma militância política ativa e havia vivenciado outro casamento. Conte um pouco dessa sua trajetória.

Primeiramente, queria dizer que sou filha de comunista. Em 1935, com o movimento que houve em Recife, meu pai foi preso e condenado a 16 anos. Isso, seis meses depois da minha mãe falecer. Na época éramos cinco filhos, já que cinco já haviam falecido na infância. Fomos então distribuídos em casas de companheiros do Partido, que também passavam necessidade e dificuldade de vida.

Cheguei a ficar na casa de pessoas que só tinham uma roupa para trabalhar. Então, quando chegavam em casa a noite lavavam as peças para de dia voltar a trabalhar. Até os 9 anos, passei por diversas casas, quando meu pai foi deportado para o Rio de Janeiro, se jogou no mar e voltou da Bahia para Recife em busca dos filhos. Não teve como pegar todos, então pegou a mim e mais dois irmãos.

Ficamos um tempo em Recife, depois fomos para Maceió. De Maceió para Aracajú, de Aracajú para Bahia, onde o Partido fixou nossa residência por um tempo (1939 a 1945). Trabalhamos em uma cooperativa de verduras, durante meses e anos, sustentando um jornal do Partido, O Momento. Nesse período, participei, junto com meu pai, da organização de reuniões do Partido, quando conheci companheiros como Marighella, João Amazonas e Giocondo Dias.

Com isso, já estava trabalhando dentro do Partido. Meu pai me encarregava da tarefa de distribuir material e levar ajuda financeira às famílias dos presos políticos. Até que, em 1945, com o fim da guerra, veio a anistia para os presos políticos. E nós fomos para a rua em passeatas, com bandeiras e faixas pedindo a anistia para aqueles que continuavam presos, como Prestes. E lembro que levávamos materiais com os dizeres: queremos Leite, Carne e Pão, que significava Luiz Carlos Prestes.

Com a anistia, voltamos para Recife. Meu pai já era muito conhecido como comunista e o PCB achou que ele podia reorganizar o partido lá. Mas era muito perseguido devido a esta disposição em construir o Partido. Ele foi trabalhar na Câmara, como funcionário, e nós ficamos no Sítio, pois não tínhamos condições de alugar casa. Participamos de movimento de ir para porta de fábrica, jogar panfleto e fazer comícios relâmpagos.

Em Recife, participei da campanha O petróleo é nosso, da luta contra a bomba atômica, dos movimentos estudantis, dos protestos contra prisão de companheiros. No governo do Barbosa Lima Sobrinho [governador de Pernambuco de 1948 a 1951], fui presa e tive a cabeça raspada. Minha irmã, Maria da Penha Rodrigues, ficou presa num convento por mais de um mês.

Em 1946, quando o Prestes foi candidato ao Senado, houve um grande comício no Recife e a juventude do partido esteve presente, foi quando vi o Prestes pela primeira vez, aos 16 anos.

Em 1947, meu pai já tinha sido preso várias vezes e torturado para que deletasse seus companheiros, o que ele nunca fez, e o Partido resolve mandá-lo para São Paulo, e me encarregou da segurança do Prestes. Nesta época eu era muito jovem, já tinha saído do meu primeiro casamento, que não deu certo, e já tinha duas crianças, o Pedro e o Paulo. Ainda encontrei o meu pai, que estava muito doente, debilitado e que veio a falecer em consequência das torturas, sendo enterrado com o nome clandestino.

Então, em 1952, o companheiro Giocondo Dias me levou para tomar conta de uma casa que estava esperando um hóspede, que eu não sabia tratar-se do Prestes. Só quando ele chegou, reconheci, o que foi uma surpresa para mim, que não imaginava um dia conhecê-lo pessoalmente. No primeiro momento, fiquei até mesmo decepcionada, porque pela bravura relatada pelo meu na coluna Prestes, dos comícios, fotografias e campanhas que fizemos, achava que era um Hercules. Cumprimentamos-nos, conversamos e foi quando o Giocondo me disse que ficaria responsável pela sua segurança.

E tomei conta do Prestes durante dez anos na mais alta clandestinidade. O Prestes não colocava o rosto nem na janela, não chegava na porta, só podia tomar um pouco de sol no quintal da casa. Foi nestas condições que fiquei responsável por ele e a polícia nunca descobriu.

E quando iniciaram o relacionamento amoroso?

Com a convivência. Eu já tinha dois filhos, tomava conta da casa, ajudava nas matérias de jornal, oferecia um pouco de conforto à casa, criava condições para que ele tivesse ambiente para escutar rádio, ler os jornais. Ele brincava com as crianças, cozinhava, fazia salada de frutas, descascava muito bem um abacaxi e um dia ele chegou pra mim, depois de um ano, mais ou menos, e me propôs casamento.

Eu disse que não queria me casar porque já vinha de um relacionamento frustrado e eu não assinava contrato. E não assinei, não nos casamos. Vivi 40 anos, mas nunca assinei papel. Ele queria, mas eu não acredito nesse negócio de papel. Se desse certo tudo bem, se não, ele iria para um lado e eu para o outro. E vivemos muito bem. Nunca brigamos, se havia algum problema sentávamos à mesa e ali mesmo resolvíamos conversando.

E assim foi até 1959, quando ele teve uma semi-legalidade no governo de Juscelino Kubitschek e nós saímos da clandestinidade em São Paulo, indo para o Rio de Janeiro. Mas isso já era nos anos 60. Em 1964, veio o golpe e nós voltamos para São Paulo, onde Prestes dizia ser o lugar em que estava a classe operária e onde o trabalho do Partido deveria se fixar mais. E nós fomos para a rua Nicolau de Souza Queiroz, 153.

Esta casa foi invadida pela polícia, que levou tudo que tínhamos. A biblioteca do Velho foi jogada em cima de um caminhão e queimada. Então, resolvemos ir à Moscou, onde meus filhos estudaram, aprenderam a língua e hoje são tradutores.

Eu agradeço ao povo soviético. A Rússia é para mim a segunda pátria, pois vivi 10 anos lá muito bem com minha família, nunca fomos perseguidos. Também foi importante para a vivência de outras culturas.

A obra foi escrita acerca de 20 anos. Conte-nos como surgiu a ideia de produção deste livro e, agora, de reeditá-lo.

Antes do Prestes falecer, eu já tinha anotações em caderno. E, depois do falecimento, mexendo nos papéis com meu filho, Luis Carlos, recebi a sugestão de escrever a minha biografia, acrescentando o período em que convivi com o Velho. Eu aceitei, amadureci a ideia, e começamos a recortar estas passagens da minha vida. Assim surgiu o livro. Isto foi em 1994. Quando foi lançado, esgotou-se rapidamente, e eu passei a receber muitas solicitações do livro, que não era encontrado mais nem nos sebos.

Nesta última edição, resolvemos fazer em espanhol e acrescentar mais fotografias e documentos. A obra foi lançada na Colômbia e, hoje já estamos com a terceira edição esgotada.

Trazemos um lado do Prestes que as pessoas não conheciam. Conhecem o lado político, como comunista, como Cavaleiro da Esperança. E para resgatar esta história, doamos, assim que ele faleceu, todo o seu arquivo á biblioteca da Unicamp. E, em janeiro do ano passado, entregamos o restante do material para o Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, pois acho que este material deve ficar disponível para pesquisadores, historiadores, cientistas que se interessem em estudar e tomar conhecimento das ideias do Prestes, que é importante para a História do Brasil.

E como está sendo desenvolvido o trabalho de resgate da memória de Luiz Carlos Prestes?

Prestes faz parte da História do Brasil, então isso é valoroso para o povo brasileiro, resgatar e mostrar a memória do Prestes. Eu continuo neste trabalho. Nós fazemos o resgate da história onde ele fez a marcha da Coluna e em cada município conversamos com os gestores para nestes lugares deixar o marco com um memorial erguido marcando esta história. É importante dar conhecimento aos heróis deste país, que merecem nosso respeito e consideração.

Há um grande mito que comunista não ama, mas a senhora vislumbra nesta obra o lado humano de Prestes, como pai e marido amoroso. Como foi esta experiência?

Ele era muito boa pessoa, muito carinhoso, muito atencioso, se preocupava muito comigo. Na época da clandestinidade, ele ficava preocupado porque eu não saía de casa pra me divertir, ir ao cinema, teatro, nem visitava minha família.

Foi um bom pai de família, gostava de cozinhar e sempre ajudava nos afazeres domésticos. Gostava de jardinagem e sempre tínhamos roseiras e hortas em casa.

De que forma o Prestes contribuiu com a sua formação?

Costumava dizer que através do livro você conhece toda a cultura do mundo. Era muito dedicado a instruir você culturalmente para você evoluir e conhecer mais a realidade da vida. Através dele, conheci muitas obras e pensadores como Otelo, Shakespeare, os clássicos russos, franceses. Aprendi com ele a fazer arquivos de notícias que saiam nos jornais. Separava por seção: sindical, internacional, igreja, movimento operário… Quando ele ia escrever os discursos, lia aquele material.

Meu pai foi um dos principais colaboradores para a minha formação, mas considero Prestes uma personagem do país que muito me ensinou.

Qual a experiência mais difícil que vivenciou nas inúmeras mudanças de moradia e na clandestinidade?

O primeiro momento foi quando ele chegou. Sentia-me muito responsável por esta figura que era procurada no país inteiro.

O dia a dia da vigilância também era muito difícil. Tinha que ficar atenta pro Velho não se distrair e botar a cabeça na janela. Ele ligava muito o rádio pra escutar Moscou. Às vezes ele se entusiasmava e aumentava o volume. Eu ia lá e abaixava. Se o pessoal da rua escutasse… Eu varria a calçada, tinha um contato com os vizinhos no portão. Mas esse negócio de ir à casa de um e de outro, não. Quando ele saía para reuniões, era à noite. Nós tínhamos um fusca.

Vivemos em várias casas. Se desconfiávamos de algo, saíamos apenas com a roupa do corpo e não voltávamos para pegar nada. Mudei o meu nome e dos filhos para não ser identificada. Depois da Anistia descobrimos que a Polícia nunca teve registros sobre nós. Cumprimos bem nosso papel.

Prestes deixa um legado de lealdade e coerência na luta política, mas que herança deixa para a família?

Legado não só da história, como comunista, patriota brasileiro, que sempre lutou por um país livre e democrático, mas da família. Ele deixou dez filhos, a Anita Leocádia, filha dele com a Olga Benário, nossos sete filhos e mais dois do meu primeiro casamento. Hoje a família continua fazendo a coluna, com 25 netos e doze bisnetos.

Meus filhos, hoje, são todos formados. Tem cineasta, obstetra, pedagoga, engenheiro, comerciante, química. E vivemos como qualquer brasileiro, lutando pela sobrevivência, não temos privilégios pelo nome de Prestes.

Como avalia o engajamento feminino na luta política no Brasil?

A atuação das mulheres teve um papel importante para a consolidação da democracia no Brasil. Desde o movimento estudantil até a eleição de Dilma Rousseff, mulher, guerrilheira, torturada. Tivemos que enfrentar muitas barreiras para conseguir alcançar este momento no país. É importante que todos tenham consciência de que precisamos e devemos resgatar também a história dessas mulheres que tiveram participação na vida política do país.

E esse movimento experimentou um grande avanço. Hoje, as mulheres estão se politizando mais, assumindo papel de liderança, crescendo profissionalmente, vencendo barreiras e preconceitos. As pessoas devem se orgulhar do rol de mulheres que doaram suas vidas à luta política no Brasil.

De Natal, Jana Sá