Em primeiro lugar, registro que poucas pessoas podem dizer que lamentam mais do que eu a escolha do PSC para presidir a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, o que foi confirmado na última quarta-feira (27).

Trabalhei dois anos na CDHM (2009 e 2010) e desde a primeira vez que vim a Brasília, à época do movimento estudantil, em 2001, convivi e mantive relações políticas, profissionais e pessoais com a comissão e com seus integrantes, seja servidores, seja parlamentares.

Tenho grande afinidade e milito com temas de direitos humanos desde 2000, ano em que ingressei no movimento estudantil universitário. E não menos do que ninguém senti a dor de ver a CDHM sendo “capturada” pelos evangélicos por, pelo menos, um ano.

Para fazer esta análise, vou escrever em tópicos, embora não me agrade, para facilitar o diálogo e o entendimento do que quero dizer.

Histórico e contexto político

1. A CDHM foi criada em 1995. Nestes 18 anos, apenas quatro partidos a presidiram: PT (13), PDT (3), PCdoB e PPB (atual PP). E apenas três parlamentares a comandaram mais de uma vez: Nilmário Miranda (1995 e 1999), Luiz Couto (2007 e 2009) e Iriny Lopes (2005 e 2010). A lista completa de presidentes/as está no final do post*.

2. Ao longo de sua trajetória, embora tenha sido o “comando estratégico” de várias batalhas e conquistas importantíssimas – PEC do Trabalho Escravo, Comissão da Verdade etc. – do setor, a CDHM, no âmbito do Congresso Nacional, tem exercido, sobretudo, um duplo papel: trincheira de resistência contra o avanço de matérias legislativas que retiram direitos de segmentos minorizados (indígenas, quilombolas, LGBT e vários outros) e espaço de guarida a movimentos com dificuldades ou restrições (dos mais variados tipos) de acesso ao Estado, em qualquer um dos seus poderes e instituições. Por exemplo, a parceria estreita da CDHM com a ala mais progressista do Ministério Público Federal (a PFDC) ajudou a fortalecer muitas lutas ao longo do tempo. Nos anos em que trabalhei lá, a procura pela comissão era tão intensa e de tão amplo leque de procedências que fazíamos uma piada interna: “De repente, tudo passou na ser uma questão de direitos humanos”, o que, a rigor, não é uma premissa totalmente irreal.

Processo de escolha

3. A divisão das 21 comissões permanentes da Câmara é feita proporcionalmente ao tamanho das bancadas dos partidos. No rateio, PT e PMDB comandarão três comissões, cada um, em 2013. PSDB, PSD, PP e PR ficam com dois colegiados cada, enquanto PDT, PSC, PTB, PV/PPS (bloco), DEM, PSB e PCdoB presidirão uma comissão. A ordem de escolha também segue o critério das maiores bancadas. E os partidos “nanicos” (PSol e outros) não têm direito a presidir comissões permanentes.Aqui a lista completa da divisão para 2013.

4. Há alguns anos se fala em desmembrar e/ou criar novas comissões permanentes. Turismo e Desporto, hoje juntas, seriam separadas. Seria criada uma comissão de Saúde, cujos projetos tramitam majoritariamente na de Seguridade Social e Família. A única novidade, entretanto, foi a criação da Comissão de Cultura, que deixou de ser um “anexo” da Comissão de Educação. Até o início desta semana, porém, muitos parlamentares e até líderes partidários davam como certa a criação da comissão de Saúde. Nesse caso,  o PT teria direito a escolher uma quarta comissão. E a quarta opção do PT era justamente a CDHM.

5. Exceto pelas comissões de Constituição e Justiça e de Finanças e Tributação, inquestionavelmente as mais importantes do processo legislativo (e político) na Câmara, é impossível dizer com certeza absoluta quais as escolhas dos partidos antes da reunião de líderes onde é feita a definição. É óbvio que existem negociações e diálogos, mas também é estratégico para alguns partidos não revelar as suas reais opções, para evitar movimentos indesejados que possam atrapalhar os planos arquitetados pelos parlamentares.

6. Esse ano, a única grande “surpresa” foi a escolha do PSC. E é dela que trato agora.

PSC e a CDHM

7. O PSC é uma legenda estreitamente vinculada à Assembleia de Deus e é o principal partido “representante” das denominações evangélicas. Possui 14 deputados e duas deputadas. Nesta legislatura, presidiu a Comissão de Fiscalização Financeira e Controle em 2011 e 2012.

8. Ano após ano, vem aumentando a participação de deputados evangélicos ou católicos conservadores na CDHM. Em vários temas até defendem posições coincidentes com os deputados militantes de direitos humanos, mas expõem o seu obscurantismo em temas como direitos LGBT, liberdade e diversidade religiosa, políticas para mulheres, entre outros.

9. Via de regra, os religiosos conservadores – e os trolls saudosos da ditadura – são derrotados e têm apenas conseguido marcar posição ou, vez por outra, realizar algum seminário ou audiência pública sob a sua ótica retrógrada a respeito de direitos humanos.

10. Há alguns anos, porém, circulam boatos frequentes sobre a profunda “cobiça” deste grupo pela presidência da CDHM, especialmente a partir da aliança pragmática feita com os ruralistas. Em 2013, afinal, se concretizou a “ameaça” e a CDHM será presidida por um partido ligado à bancada evangélica. Simbolicamente, é algo difícil de digerir.

11. Embora não seja possível afirmar peremptoriamente como será feita a condução do órgão (provavelmente pelo deputado Pastor Marcos Feliciano), uma vez que os vice-presidentes das comissões também têm apito no processo decisório, não devemos esperar menos do que um ano de constantes e duros enfrentamentos em torno das pautas que a presidência levará aos debates e votações. Se isso resultará numa tragédia ou num gigantesco retrocesso, só o tempo irá dizer. Eu não creio em tanto…

Não estamos no inferno

12. Para desgosto dos fundamentalistas e fanáticos religiosos, as comissões não podem fazer tudo. Na verdade, as táticas protelatórias nestes órgãos – especialmente na de Direitos Humanos, que está longe, MUITO LONGE de ser a mais “visada” e procurada para os grandes embates na Câmara – são numerosas e variadas. E isso faz sentido, já que estes colegiados devem privilegiar o debate, o entendimento e a construção dos consensos mínimos, e não podem se converter em instâncias meramente submetidas à ditadura das maiorias.

13. Outro motivo de desagrado dos novos “donos” da CDHM – e para alento da sociedade civil! – é o fato de a Câmara ter hoje, provavelmente, a maior e mais qualificada “bancada de direitos humanos” da sua história. De cara, dá para citar, como militantes históricos e/ou orgânicos da área: Jô Moraes (PCdoB-MG), Manuela D’Ávila (PCdoB-RS), Chico Alencar (PSol-RJ), Dionilso Marcon (PT-RS), Domingos Dutra (PT-MA), Edson Santos (PT-RJ), Erika Kokay (PT-DF), Iara Bernardi (PT-SP), Iriny Lopes (PT-ES), Janete Rocha Pietá (PT-SP), Jean Wyllys (PSol-RJ), Luiza Erundina (PSB-SP), Luiz Couto (PT-PB), Nilmário Miranda (PT-MG), Padre Ton (PT-RO), Paulo Rubem Santiago (PDT-PE), Rosinha da Adefal (PTdoB-AL) e Arnaldo Jordy (PPS-PA). E além destes, que, obviamente, não poderão ser, todos, integrantes da CDHM, ainda é possível contar com muitos outros que têm “acúmulo” intelectual ou de militância (ou mesmo afinidade/simpatia) na área: Jandira Feghali (PCdoB-RJ), Alessandro Molon (PT-RJ), Amauri Teixeira (PT-BA), Dr. Rosinha (PT-PR), Fátima Bezerra (PT-RN), Fernando Ferro (PT-PE), Glauber Braga (PSB-RJ), Ivan Valente (PSol-SP),Janete Capiberibe (PSB-AP), João Paulo Cunha (PT-SP), José Genoíno (PT-SP), Luci Choinacki (PT-SC), Luiz Alberto (PT-BA), Marina Sant’Anna (PT-GO), Mário Heringer (PDT-MG), Nazareno Fonteles (PT-PI), Nelson Pellegrino (PT-BA), Padre João (PT-MG), Paulo Pimenta (PT-RS) e Valmir Assunção (PT-BA). Pode-se até falar que, NUNCA ANTES NA HISTÓRIA DESSE PAÍS houve tantos defensores de direitos humanos na Câmara.

14. Na Câmara, o fato de as comissões funcionarem na dinâmica de mudar presidência a cada ano é mais um elemento que dificulta a ocorrência de grandes “cataclismas” na tramitação de projetos, que precisam de bastante tempo para serem analisados, debatidos e votados. No caso da CDHM, que possui muito enraizada uma tradição de ampla discussão e abertura à sociedade civil**, é importante ter em mente a necessidade de acompanhamento de CADA SESSÃO, para evitar imprevistos desagradáveis.

Sociedade civil

15. A responsabilidade pela “tomada” da CDHM pelo PSC deve ser debitada, em parte, à sociedade civil militante na área. Nos últimos anos, após o “abandono” das conferências (e outras atividades) nacionais de direitos humanos, tradicionalmente organizadas pelas grandes redes de entidades (FENDH, MNDH, Plataforma DHESCA etc.)***, as organizações passaram a acompanhar de forma muito fragmentada o trabalho (e as batalhas) da comissão. Cansei de ver atividades importantíssimas acontecendo diante de plenários vazios, porque estavam presentes tão somente as entidades envolvidas diretamente com aquela bandeira em debate. É óbvio que isso é parte de um problema maior e mais complexo da configuração da sociedade civil brasileira, mas é fato que a CDHM passou a ser encarada, muitas vezes, como uma mera promotora de eventos. As reuniões de deliberação sobre projetos de lei, por exemplo, são acompanhadas basicamente por assessores parlamentares ou por “observadores” das “consultorias” contratadas pelas grandes empresas ou sindicatos patronais.

16. Ao problema abordado acima, soma-se a ABSOLUTA INÉRCIA, ou OMISSÃO mesmo, das entidades de direitos humanos no  período de articulações para a escolha das comissões por parte dos partidos. No final do ano, enquanto o movimento sindical e, do outro lado, os lobistas não arredam pé da Câmara e do Senado, de segunda a sexta, se reunindo com lideranças e cobrando a priorização a determinados temas, projetos e comissões, as entidades de direitos humanos desaparecem, já que apenas o orçamento fica em discussão e poucas delas acompanham esse assunto. O resultado disso é cantado na música de Geraldo Azevedo: “Quando fevereiro chegar (…) a gente ri a gente chora, ai ai ai a gente chora” com o PSC escolhendo a nossa comissão…

E o PT?

17. Onze entre dez interessados nessa pauta estão atribuindo – desde que foi confirmada a escolha do partido do peixinho – a culpa pela tragédia ao PT. Faz parte do jogo político (e é cômodo atacar o partido do governo e a maior bancada da Câmara), mas o mundo real não é tão simples assim.

18. Em primeiro lugar, não é verdade, de modo algum, que o PT “entregou” a CDHM ao PSC. Não houve NENHUMA negociação a respeito disso. Muito ao contrário. A maioria dos petistas citados no item 13 desse texto defendeu a priorização da CDHM nas escolhas do partido e manifestou preocupação com a possibilidade de a comissão ir parar nas mãos de quem acabou parando.

19. Como já foi dito, não era possível ter certeza sobre as escolhas dos partidos “de uma comissão”. E, no caso dos partidos de esquerda, a margem era muito estreita, já que PSB e PDT, por questões internas legítimas, já tinham decidido pelas comissões com que ficaram (Turismo e Desporto, para o primeiro, e Desenvolvimento Econômico para o segundo), e o PCdoB estava atrás do PSC na ordem de escolha.

20. A mobilização dos petistas atuantes em direitos humanos foi tão forte que a CDHM conseguiu subir bastante na lista de prioridades da bancada, já que, na lista baseada na votação pura e simples, havia outras (como Educação) à frente dela, que, por fim, seria a quarta escolha e só não se realizou porque não foi criada a Comissão de Saúde.

21. Mais do que isso, até a antevéspera da reunião de líderes que definiu as presidências das comissões, realizada na quarta-feira (27), deputados petistas dialogavam sobre qual seria o nome indicado para presidir a CDHM, no caso de confirmação da escolha.

22. Se os militantes de direitos humanos protestam pelo “esquecimento” da CDHM, imagine como se sente a CUT e todo o movimento sindical aliado do PT com o fato de a Comissão do Trabalho ter sido presidida raríssimas vezes pelo Partido dos Trabalhadores e este ano, mais uma vez, ser presidida pela direita. E não ignore o fato de que a Comissão de Trabalho, muito mais do que a CDHM, é um espaço de luta renhida da luta de classes real, em torno de projetos de regulamentação do mundo do trabalho, que inclusive se relacionam com direitos humanos, como no caso das convenções da OIT que são rejeitadas seguidamente e vão para as calendas do processo legislativo.

23. E você, militante de direitos humanos, tente se colocar também no lugar da enorme e extremamente ativa base petista na área de Educação, quando o partido acaba priorizando outras comissões e “entrega” esta ao cartel do ensino privado, amplamente representado no Congresso… Enfim, a vida não é fácil.

24. É óbvio que, ao fazer uma escolha, o PT assume a responsabilidade pela escolha que deixou de fazer. Mas, como abordei aqui, não estamos no inferno. Cumprimos magistralmente o nosso papel quando fomos oposição em nível federal. E, no mundo real, que nem sempre cabe em discursos inspirados, mas inconsistentes, a esquerda ainda é contra-hegemônica e precisa saber atuar na adversidade.

Afinal, quem disse que seria fácil mesmo?

*Lista dos ex-presidentes/as da CDHM:

– Nilmário Miranda (PT-MG): 1995 e 1999
– Hélio Bicudo (PT-SP): 1996
– Pedro Wilson (PT-GO): 1997
– Eraldo Trindade (PPB-AP): 1998
– Marcos Rolim (PT-RS): 2000
– Nelson Pellegrino (PT-BA): 2001
– Orlando Fantazzini (PT-SP): 2002
– Enio Bacci (PDT-RS): 2003
– Mario Heringer (PDT-MG): 2004
– Iriny Lopes (PT-ES): 2005 e 2010
– Luiz Eduardo Greenhalgh (PT-SP): 2006
– Luiz Couto (PT-PB): 2007 e 2009
– Pompeo de Mattos (PDT-RS): 2008
– Manuela D’Ávila (PCdoB-RS): 2011
– Domingos Dutra (PT-MA): 2012

**Existe uma espécie de “calendário” de eventos que a CDHM realiza quase todo ano e contempla uma boa parte dos movimentos e setores que atuam em direitos humanos no Brasil

***Que saudade de ver o Ivônio Barros animar as redes de direitos humanos e instigar as entidades a acompanharem (e atuarem) não apenas (n)as suas bandeiras, mas sim o “mundo” dos direitos humanos como um todo, inclusive no mundo inteiro.

Fonte: Blog Conexão Brasília Maranhão