A noite desta quinta-feira, 2 de junho, no Centro Cultural São Paulo, reuniu uma multidão de interessados na mesa redonda “O impeachment de 1992 e o golpe de 2016”. Conforme anunciou o coordenador da mesa, Fernando Garcia, representando a Fundação Maurício Grabois no realização do 2o. Salão do Livro Político, o objetivo do encontro foi disseminar ideias para a luta contra a onda fascista e antidemocrática que ocorre no Brasil hoje.

O evento reuniu para o debate o jurista e filósofo Alysson Leandro Mascaro (USP), a presidenta da União Nacional dos Estudantes (UNE), Carina Vitral, o político cearense Ciro Gomes e o economista e presidente da Fundação Perseu Abramo, Márcio Pochmann (Unicamp). Todos foram unânimes em identificar diferenças fundamentais entre os dois casos, embora as classes dominantes tenham se comportado de forma distinta, considerando os cenários econômicos que se impõem nos dois períodos. A desindustrialização do capitalismo brasileiro em direção à armadilha da financeirização são fatores que interferem diretamente no papel das elites nos dois períodos, do mesmo modo que a esperança depositada pela população em mais de dez anos de governo, interrompida de forma abrupta pelo ajuste fiscal, também apontam para o comportamento catatônico da base de sustentação de Lula e Dilma, diante do golpe.

Reconstituir a relação com o povo

Para definir o nível de golpismo camuflado pelo processo de impeachment, Ciro Gomes comparou o consenso criado em torno da necessidade de saída de Fernando Collor, em 1992, com o consenso criado pela plutocracia nacional contra o campo progressista que governa o país desde 2003. “Em 1992, houve uma individualização clara da responsabilidade sobre o presidente da República. Collor não caiu propriamente por que fizemos as coisas direito, mas porque o consenso alcançou a plutocracia”.

Para ele, a gravidade do que ocorre remete à revogação da Constituição de 1988, e um realinhamento ao colonialismo do pós-guerra, enquanto “estamos sendo distraídos pela picaretagem mais vulgar”.

Fez críticas pontuais à condução dos governos Lula e Dilma, ressaltando que o “presidencialismo de coalizão é uma picaretagem inventada por FHC”, para referir-se às armadilhas em que ambos se meteram ao atrair para a governabilidade figuras como Eduardo Cunha e Michel Temer.

“Primeiro teve a mentira da eleição [referindo-se ao marketing de campanha de Dilma], depois as consequências ruinosas da economia que fez escorregar a rampa de que o filho do trabalhador ia viver num país melhor. Fazia dez anos que ninguém pedia emprego a político. Entre os jovens o desemprego já é de 25%”, lamentou.

Ele recordou que nenhum chefe de estado ligou para reconhecer o governo de Michel Temer, “o que deixa uma muito apertada fresta por dentro do legalismo”. Gomes diz ter uma esperança baseada em “uma resposta pra cada coisa a um futuro governo Dilma”. “Estou disponível a fazer qualquer sacrifício para ajudar e consertar a relação com o povo”, dispôs, afirmando a necessidade do campo progressista fazer um “mea culpa”. “Nosso lado não pode fazer o que fez se quiser reconstituir a relação com o povo”.

Collor e a desindustrialização

 

Márcio Pochmann vê uma transformação profunda do capitalismo brasileiro entre 1992 e 2016. Enquanto Sérgio Buarque de Holanda via a estruturação econômica do Brasil como uma procissão de milagres, Celso Furtado reafirmava essa interpretação, mas focando os descensos do capitalismo, como o que estamos vivendo agora. “Tivemos um ciclo da industrialização e agora vivemos um ciclo de desindustrialização profunda”.

Pochmann aponta uma crise de legitimidade e de projeto hegemônico, desde que a desindustrialização diluiu o centro de influência econômica de São Paulo. “Há um descolamento das instituições da sociedade que emergiu dessas mudanças, como a falta de vocalização pelos sindicatos dos trabalhadores explorados”.

De 1985 pra cá, de acordo com o economista, não conseguimos construir maiorias governistas sustentáveis, apenas pontuais. “Existe um projeto de poder sem projeto de nação, baseado no ‘toma lá, dá cá’ insustentável”.

Para ele, após 30 anos de experiência, esgotou-se o modelo de governança da Nova República, sustentado na conciliação de classes com acordos pelo alto e transição sem nenhuma reforma. “Collor foi a tentativa de um governo de classe e não de conciliação, algo que começa a se tentar novamente com o golpe”, afirmou. “Voltamos ao século XIX, um governo de homens brancos, sem voto, pois as  eleições eram fraudadas e que não passavam pelos interesses do povo”.

Para Pochmann, o golpe coloca em cheque a Constituição que permitiu esse acordo. Para ele, as despesas financeiras do Estado são incomprimíveis, o que leva o governo interino a cortar do social para sustentar o rentismo. Segundo ele, o parasitismo financeiro está sendo financiado com base na Constituição, que representou um acordo num capitalismo que não crescia. “Para viabilizar o papel do estado como grande transferidor de recursos numa econômica que não crescia, foi feito um aumento substancial na carga tributária (12%)”, lembrou, para explicar o modo como os gastos sociais foram ampliados, junto com a despesa com juros da dívida, inviabilizando qualquer crescimento.

Onde a juventude esteve e está

Carina Vitral apontou as diferenças entre 1992 e 2016, ao identificar o papel fundamental da juventude nas ruas para a queda de Collor. “Como havia mérito, justeza e consenso, a juventude que é o principal motor de mudanças foi pra rua em peso e a UNE foi uma liderança importante nesse sentido”, disse, lembrando que, hoje, em vez de protestar pelo impeachment, a juventude ocupa escolas para salvar a educação pública.

Em 2016, não houve consenso, lembra ela, ao mencionar os dois lados em disputa nas ruas. “A virada nas ruas foi a desmoralização de Eduardo Cunha que criou um refluxo no lado de lá”, analisa Carina, citando o recuo nas manifestações pelo impeachment, conforme vinham a tona os podres de sua principal liderança. Devagar e sempre, diz ela, as ruas foram essenciais para criar o contraponto. A ausência da juventude nas ruas, composta majoritariamente por adultos brancos de classe média, levou o consórcio pelo golpe a forçar o impulsionamento de lideranças juvenis artificiais, “que surgem do nada”.

A líder estudantil destaca que sua geração teve a primeira experiência política em 2013, num movimento que foi cooptado para a crise que se instalou. “o resultado daquilo que se iniciou em 2013 não tem relação com o que aquela juventude demandava, que era mais estado, mais direitos”. Para ela, essa crise caminha para o surgimento de algo novo, que virá da juventude e das mulheres, mas ela alerta para a criminalização dos movimentos sociais, a começar da CPI da UNE, que desponta conforme o Governo Temer logra continuidade.

A institucionalidade capitalista contra o povo

Alysson Mascaro identifica como origem deste golpe, como tantos outros que atingiram o mundo nos últimos anos, uma dinâmica geopolítica do capitalismo “que não fecha as contas”, mesmo nos países centrais. Ele aponta a situação de profundo recuo em que se encontra a classe trabalhadora e a luta pelo socialismo. “Se não conseguimos segurar a Dilma, em face de Michel Temer e Eduardo Cunha, quem dirá do capitalismo para a frente”. Para ele, sem o horizonte do socialismo, “estamos botando band-aid para sangrar menos”.

O filósofo e jurista aponta com concretude o modo como o capitalismo se transformou criando o buraco negro em que se desmaterializam as economias atuais. “Tínhamos uma burguesia no final de um regime de industrialização, que tinha nome e sobrenome de família. Com a financeirização da economia, essa burguesia produtiva vendeu a metalúrgica de 200 empregados para sustentar três gerações consumindo luxo em Miami. Esses rentistas não têm lado material nessa disputa, mas têm ideologia”.

Mascaro também alerta para o modo como a esquerda ainda se apega à institucionalidade e legalidade para combater o golpe. “Temos um estado necrosado e a esquerda ainda não aprendeu que não dá pra louvar essas instituições do capital”. Ele afirmou que não é possível depositar esperanças nos representantes do direito, quando estes são capazes de legitimar um golpe para garantir um reajuste salarial às vésperas da ruptura democrática.

“Depositem esperanças na força profunda das massas!”, declarou. Para ele, o quadro de derrocada é tal, com as esperanças construídas nesses quatorze anos, cortadas de forma tão abrupta, “que é mais fácil retomar o ritmo do que desabar”. Ele mencionou os milhões de estudantes universitários incluídos, que não sabem mais como continuar os estudos, desde que Temer assumiu o desmonte dos programas educacionais. “Há materialidade da união dos que sofrem no mundo”, resumiu.