Nós, historiadoras e historiadores matriculados no Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), manifestamos nosso repúdio e, por meio deste, respondemos ao editorial do jornal O Estado de S. Paulo, publicado no dia 14 de junho de 2016 e intitulado O lugar de Dilma na história. Este periódico sentiu-se na necessidade de comentar um manifesto divulgado pelo movimento Historiadores pela Democracia, que havia se reunido com a presidenta legitimamente eleita, Dilma Rousseff, no Palácio da Alvorada, para repudiar o golpe em curso no país e defender a democracia.

 
O referido editorial ataca profissionais da História e a própria História com inverdades. Fazendo uso do recurso retórico da crítica aos autores do argumento, não de seu conteúdo, tentam, de maneira vil, manipular ideias descontextualizadas para atribuir à nossa categoria profissional as motivações das quais se serve para produzir sua versão dos fatos: a ignorância e a mentira. Alegam que osHistoriadores pela Democracia estariam “com pressa de antecipar a história que será escrita no futuro”. O periódico é taxativo: critica severamente a postura de profissionais de História em defesa da presidenta Dilma e da democracia que o jornal historicamente ataca, pois essa posição “não é história, é má-fé”. Segundo o Estadão “Não haveria nenhum problema se os defensores dessa interpretação dos fatos fossem cidadãos sem qualquer responsabilidade sobre o que se ensina em sala de aula. No entanto, o que se tem hoje no Brasil é a formulação de uma espécie de pensamento único nas escolas e universidades”.
 
Se estivesse realmente preocupada com o combate ao pensamento único, este órgão da imprensa criticaria a proposta de uma “escola sem partido”, que limita o conhecimento ao inibir a pluralidade, o pensamento crítico e o debate. O jornal acusa historiadoras e historiadores de má-fé por apresentarem sua interpretação dos acontecimentos atuais, mas esquece de que ele mesmo se posiciona na disputa política e ideológica: para o Estadão, só é história aquela que coincide com a sua interpretação. Assim, minando a liberdade intelectual e o direito das professoras e professores exercerem livremente seu ofício, o que está em jogo com esse tipo de discurso é a democracia e a cidadania nos espaços escolares.
 
Com este editorial, fica evidente que o próprio Estadão luta desesperadamente pela sua narrativa da história, pois é cada vez mais nítido que o afastamento de Dilma é um golpe contra a democracia e os direitos. Profissionais do jornalismo e da história tem grande responsabilidade sobre a narrativa dos acontecimentos, mas o oligopólio da mídia só se importa com um suposto ensino “ideológico” quando a ideologia não é a que defende; só se importa com a corrupção quando é praticada por seus inimigos; só se importa com a democracia quando ela garante direitos e ameaça privilégios.

 
O Estadão está preocupado com o que diz ser a intenção de historiadoras e historiadores de “moldar, desde já, a interpretação desse período no futuro”. No fundo, sabe que quem escreveu a história e quem vai escrevê-la defende a democracia. Nós não temos nada a temer, ele tem. Por isso lança esse editorial, indicando seu medo do amanhã, o medo de ser, novamente, reconhecido como golpista.
 
É papel de todas as historiadoras e historiadores se posicionar diante dos acontecimentos recentes, pois são herança não distante de um período macabro da história de nosso país: a ditadura militar. Assim como nossas professoras e professores, e tantas pesquisadoras e pesquisadores da história, que tiveram a decência de denunciar as inúmeras infrações aos direitos humanos e à democracia durante a ditadura militar, nós teremos a decência de confrontar mais esse assalto aos nossos direitos e às liberdades democráticas. Nesse sentido, nos solidarizamos e fazemos coro ao movimento Historiadores pela Democracia.
 
Utilizar manchetes sensacionalistas, tendenciosas, arbitrárias e parciais é um recurso constantemente utilizado pelos grupos detentores dos meios de comunicação para viabilizarem o SEU projeto político. Assim, relembramos os editoriais jornalísticos que se seguiram ao dia 31 de março de 1964. O Globo apoiou aquilo que chamou de “Revolução”. Foram necessários 49 anos e as denúncias nas massivas manifestações de junho de 2013 para que, finalmente, o grupo Globoreconhecesse sua participação ativa no GOLPE militar de 1964. Assim como o jornal carioca, também apoiaram o GOLPE de 64 a Folha de S. Paulo, o Correio da Manhã, o Jornal do Brasil e o Estadão. Esse último, no dia 02 de abril de 1964, conclamava a “nação” a não se sujeitar às imposições do “caudilho” e, na contracapa desta edição, alardeava com o icônico “Vitorioso o movimento Democrático”. Questionamos: foi democrático o movimento apoiado por esse jornal?  Diferente desse meio de comunicação, que até hoje não se retratou à sociedade brasileira, e em respeito à democracia e aos direitos humanos, nós fizemos a nossa função: colocamos os pingos nos “is”. A narrativa histórica está em seu lugar. E essa narrativa urge: O Estado de São Paulo APOIOU o golpe de 1964 e a ditadura militar que durou 21 anos.
 
Ainda assim, o editorial do dia 14 de junho de 2016 deprecia a função social das historiadoras e historiadores em uma tentativa nefasta de associar a atuação desses profissionais a uma instrumentalização da disputa política, esvaziando, assim, o latente conteúdo político similar a regimes totalitários.
 
O editorial do Estadão e a grande mídia expressam também sua postura machista em reservar o protagonismo das ações políticas a um homem, ao qual estaria à reboque a Presidenta Dilma Rousseff. É possível traçarmos o perfil machista das manchetes dos líderes de comunicação em massa que depreciam, desmerecem, despolitizam e humilham mulheres pelo simples fato de SEREM MULHERES. Temos compromisso com a História: não será assim que as mulheres serão lembradas.
 
Dizemos ao Estadão que tenha medo, pois seguiremos as recomendações de Marc Bloch redigidas no período de sua prisão em consequência de sua luta na Resistência Francesa contra a invasão nazista que o levou ao fuzilamento em 1944. Dada a utilização torpe de seu pensamento pelo jornal queremos destacar que o texto de Bloch discute a complexidade do tempo histórico, a construção criteriosa da narrativa e a urgência de uma postura ética das historiadoras e historiadores em relação à História. Nosso OFÍCIO é realizar uma história crítica, analítica e questionadora; é interrogar o passado para compreendê-lo, estudar o passado a partir do presente. E é por esse motivo que, assim como Marc Bloch, questionamos nossas fontes: “nem todos os relatos são verídicos e os vestígios materiais podem ser também falsificados”. Para compreendermos a História, precisamos realizar a critica documental a editoriais como os de 14 de junho de 2016: quem financia o Estadão? Qual seu lugar de fala? A quem serve? Por quem e para quem é escrito? Qual é de fato seu valor para o nosso tempo? Ao que parece, o jornal se importa mais com a postura do historiador do que com a sua própria.
 
Mas há algo de verdade no editorial desse raso jornal, o historiador francês Marc Bloch nos deixou um legado: submeteu-se honestamente à verdade e engajou-se com nosso ofício, com a luta contra os totalitarismos e opressões e resistiu em defesa democracia. É seu exemplo que seguiremos.
 
Fora Temer!
 
Guarulhos, 22 de Junho de 2016.
Historiadoras e Historiadores matriculados no Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) – 2016.