Renato Rabelo disse que para a compreensão dos problemas locais é necessário analisar as singulares peculiaridades mundial e nacional. Segundo ele, isso é muito importante porque para a compreensão real do que se passa não se pode ver simplesmente o que está à vista. “É que a crise mundial, que considero semelhante à de 1929, e até mais complexa e de maior dimensão, todo mundo sabe como começou e se sabe também como terminou. Começou com a expansão do capital monetário, desregulamentação financeira, e terminou com a Segunda Guerra Mundial”, analisou.

Hoje, segundo Renato Rabelo, sabe-se como começou, de forma semelhante à de 1929, guardando as diferenças históricas, mas não se sabe como vai terminar. A fase atual, afirmou, não é aquela aguda de 2008-2009, é a de estagnação da crise. Esse é um aspecto importante, observou. O mundo vive a época de dominação financeira, um período denominado por Renato Rabelo como “entroncamento histórico”. “Estamos vivendo os estertores de uma época, mas por outro lado não conseguimos ainda vislumbrar o limiar de uma nova era”, comentou, explicando que historicamente essa é a fase em que o capitalista acha que pode ganhar dinheiro com dinheiro, capital com capita, sem passar pelo trabalhador, pela produção.

Seria o melhor dos mundos, só que isso leva a crises como a atual, disse o presidente da Fundação Maurício Grabois, o que se traduz no estertor de uma época de relações de produção já historicamente superadas. “Agora, por outro lado, não aparece ainda no horizonte o limiar de uma nova época. A consequência é que, sobretudo na visão progressista, na visão da esquerda, surge essa questão do desânimo, da desesperança, porque não se tem o horizonte imediato”, comentou. “Por isso que a alternativa passa a ser a questão central”, avaliou, referindo-se a proposta e projetos diante do aprofundamento da crise.

Renato Rabelo disse que o impacto dessa situação na chamada periferia do sistema mundial deve ser considerado. Lembrou os BRICS, que do ponto de vista histórico é uma novidade, porque é um bloco de países que surge da periferia com um projeto geopolítico de enfrentar uma realidade polar para construir uma realidade multipolar. Esse é outro aspecto importante, disse Renato Rabelo, que considerou a política externa do período aberto pelo ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva como uma das questões mais importantes. Uma política ativa, que levou em conta a visão multilateral e multipolar, o que dá outra visão do mundo de hoje.

O presidente da Fundação Maurício Grabois disse que Lula conseguiu captar isso e a presidenta Dilma procurou desenvolver esse conceito. “Esse é um aspecto que às vezes pouco se fala”, comentou, lembrando que a integração com os vizinhos do continente sul-americano foi um importante componente dessa política externa. Isso estava longe do pensamento da direita, afirmou Renato Rabelo, que tem o alinhamento automático com os Estados Unidos, com as grandes potências, como norte. O impacto da opção de Lula e Dilma permitiu ao Brasil jogar papel protagonista na geopolítica mundial. “Na realidade o que eles querem impor é a hegemonia financeira mundial”, resumiu.

Renato Rabelo enfatizou que hoje o capital financeiro tem tanta força que chega ao poder de veto nas economias, acabando com o conceito de economia nacional. “O que foi o caso da Grécia? “Eles tinham o direito de veto e impuseram o que eles quiseram”, afirmou, complementando que o objetivo é impor condições como a desindustrialização, reservando aos centros da economia mundial o direito à indústria, à modernização da economia, com impactos já sentidos no Brasil com o rompimento de medidas dos governos Lula e Dilma — as peculiaridades brasileiras mencionadas no inicia da exposição.

O ciclo de progresso do Brasil, disse Renato Rabelo citando uma ideia exposta pelo prefeito Fernando Haddad, foi raio em céu azul, do prefeito. “Essa simbologia é interessante”, registrou, lembrando que as forças progressistas aproveitaram uma aproveitaram a realidade no mundo e as circunstâncias política, mas acabou a festa, voltando ao que ao ditame da direita, a essência do golpe. Para ele, existem muitos adjetivos, mas foi de fato um golpe parlamentar mesmo. Tanto que o ministro de Ciência e Tecnologia do governo golpista, Gilberto Kassab, disse que abriu-se um precedente para uma espécie de semi-parlamentarismo: o presidente que não conseguir um terço na Câmara e no Senado vai ser posto para fora.

Renato Rabelo explicou que esse comportamento está completamente fora da Constituição. As classes dominantes, os capitalistas, se juntaram para dar um basta no ciclo progressista, que ganhou quatro eleições sucessivas. “Isso, historicamente, é um êxito gigantesco; aliás, pouca gente levanta essa questão”, constatou, complementando que imaginava no máximo a conclusão do primeiro governo, considerando o grau de virulência da direita quando a esquerda chega ao poder. Os golpistas, disse ele, se aproveitaram da crise mundial, além de uma fase de estresse do governo, para deflagrar o processo golpista.

A rejeição ao resultado das urnas em 2014, com tentativas de manobras para anular a votação da presidenta Dilma Rousseff, foi a primeira manifestação efetiva dos golpistas. Depois, começou a trama, disse Renato Rabelo, buscando o caminho do golpe parlamentar. Formou-se, então, um consórcio político, com um peso midiático enorme. Ele lembrou, como prova dessa constatação, a fala do ministro João Otávio de Noronha, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), sobre a forma como a mídia faz juízes serem reféns em relação às matérias que julgam, citando como exemplo a Ação Penal 470, as farsas do “mensalão” e da Operação Lava Jato.

A razão do golpe, disse Renato Rabelo, é a restauração a da velha ordem política, interrompida pelo ciclo progressista. Porque é pela política que começa tudo, afirmou, referindo-se à manobra golpista como meio para a direita atingir seus objetivos. “Para eles impor o que querem na ordem social e econômica, primeiro precisam de uma ordem política”, fato já visível no governo golpista, resumiu. Citando novamente o prefeito Haddad, que citou essa ordem golpista como semelhante à Velha República, do início do século XX. “Vejam onde esse pessoal foi parar! A tal reconstrução de que Michel Temer falou é voltar à República Velha!”, falou, lembrando que isso implica rasgar a Constituição de 1988?

Segundo ele, isso já está acontecendo no governo golpista. A velocidade desse desmonte só está sendo possível porque conseguiram um atalho e chegaram com a sede de ter o controle de tudo de volta às suas mãos. “Estão fazendo o Diabo! Isso é o que nos espanta!”, alertou. E citou a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 241, que congela os investimentos sociais, como exemplo. Estão rasgando o pacto social estabelecido depois regime militar, que redundou numa Constituição, afirmou. Para enfrentar esse cenário, disse Renato Rabelo, tem de haver conformação de forças de esquerda, democráticas e progressistas.

Ele lembrou que o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) levantou, em seu 13º Congresso, a necessidade uma grande conformação da esquerda, composta por de partidos, movimentos sociais e personalidades, enfatizando a Frente Brasil Popular e a Frente Povo Sem medo vão nesse rumo. “Mas tudo isso ainda é muito embrionário, uma realidade que precisamos ver como conformar”, afirmou. O centro da questão, destacou é alternativa, qual sociedade a ser construída.

Para Renato Rabelo, as tentativas da esquerda no século passado, tanto revolucionárias quanto social-democratas, se esgotaram. “No século XXI temos de buscar outras saídas, levando em conta a experiência do século passado”, afirmou, enfatizando a importância de ganhar as eleições de 2016, especialmente em São Paulo e Rio de Janeiro — as duas principais metrópoles —, para começar a saída da defensiva estratégica, que agora também é tática. E a partir daí definir novas políticas públicas para o enfrentamento com o projeto da direita, acumulando forças para a definição de uma alternativa, um projeto.

Fernando Haddad

O prefeito da cidade de São Paulo, Fernando Haddad, que falou antes de Renato Rabelo, falou da PEC 241 como atentado à Constituição de 1988, porque ela congela os gastos sociais por vinte anos. “Congelar em termos reais os gastos sociais significa relegar a terceiro plano um contingente enorme de brasileiros que não tiveram acesso ainda à primeira jornada de ampliação de direitos sociais no país”, falou. Isso significa dizer, segundo ele, que haverá uma disputa pelo orçamento público. “Acontece que a gente sabe que os pobres têm interesses difusos, não têm interesses constituídos”, explicou.

Segundo Haddad, a grande novidade no século XXI no Brasil foi que, talvez pela primeira vez, tenha sido dada consequência aos direitos difusos previstos na Constituição. “A partir de 2003 a gente olhou mais o interesse difuso do que o interesse organizado. E isso forjou uma maneira de ver a sociedade brasileira como nunca se viu, que passou desde a questão da complementação de renda para as pessoas abaixo da linha de pobreza até o acesso à universidade para negros e pobres das periferias, sem pular etapas”, relatou. “A gente procurou incidir sobre toda a cadeia produtiva, sobre tosos os elos da sociedade, para que se constituísse uma visão mais solidária de sociedade, num país com histórico de intolerância, de violência, escravidão, todas as mazelas que a gente conhece”, afirmou.

Isso significa, disse o prefeito, que essa contestação à Constituição de 1988 vai além dela — chega à Revolução de 1930, como no caso das relações trabalhistas. Segundo Haddad, o impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff precisa ser adjetivado para que a população entenda que está havendo uma violação constitucional. “Quando se qualifica, diz que se trata de uma nova modalidade de desrespeito à Constituição. Isso tudo ajuda a esclarecer e abre um diálogo com a população para aquilo que efetivamente está em jogo no Brasil”, esclareceu. Segundo ele, o povo não tem ainda conhecimento do que representa o impeachment, do que já está escrito e anunciado.

Para ele, essa “anestesia” vai desembocar em contradições cada vez mais agudas. O pacto oligárquico que está sendo montado lembra o tipo de arranjo da República Velha. A diferença é o pressuposto material daquela época era a sociedade agrária, ao contrário do Brasil urbano do século XXI. Um poder público atuante, que discuta a mobilidade, a saúde, a educação, o transporte, a cultura, a habitação de qualidade, o saneamento será decisivo para lidar com as contradições do processo de intercâmbio próprio das cidades, afirmou. “Então, congelar a capacidade de responder a esse intercâmbio, que é o que está em jogo, vai gerar qual tipo de conflito? Eu não sou capaz de prever os desdobramentos políticos dessa etapa tenebrosa, se ela for vitoriosa”, avaliou.

Segundo Haddad, é possível prever as consequências sociais dessas medidas, mas não as políticas, recorrendo às realidades exitosas de prefeitos e prefeitas progressistas dos anos 1990, como em São Paulo, Porto Alegre, Belo Horizonte e Fortaleza para questionar sobre a possibilidade de repetir aquelas experiências. “Podemos estar minando iniciativas que são fundamentai para redescobrir o potencial das cidades, potencial urbano, de transformação social”, afirmou. A Constituição de 1988 significou um empoderamento dos municípios, das cidades, disse ele, surgido de uma base constitucional que criou condições materiais inéditas para prefeitos e prefeitas inovadores.

Mesmo passando pelos anos 1990, quando ocorreu um processo de recentralização das receitas no governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC) marcado por um aumentado da carga tributária para a União sem divisão com os entes da Federação, havia muito espaço para experimentações nas cidades, com práticas inovadoras. “Então, esse posicionamento de estancar o processo histórico que se iniciou em 2003, tem uma razão de ser. Na visão deles, a Constituição de 1988, como dizem, não cabe no Orçamento. Essa é a retórica praticamente desde que a Constituição foi promulgada”, afirmou.

Para o prefeito, ninguém do andar de cima aceitou a dinâmica de inclusão social iniciada virtuosamente em 2003. “É como se dissesse: Olha, acabou! Isso foi um raio em céu azul, num momento específico da economia internacional, da economia brasileira, isso está encerrado e nós vamos botar ordem; o progresso vai ser para poucos, como sempre foi”, destacou. “Eu acho que é isso que está em jogo no Brasil agora. Estamos numa encruzilhada, sem saber o que vai ser do nosso país agora nesse novo período que se anuncia. A nossa angústia é notar que vai levar um tempo para que as pessoas todas do país tenham a compreensão do que está em jogo”, enfatizou.

Haddd lembrou que o cerco midiático sobre a opinião pública é casual. “Ele tem uma razão de ser. É para circunscrever a agenda política e não alargá-la, produto dessa fase histórica. É como se embotasse a imaginação do povo propositadamente para que as perspectivas emancipatórias não surjam no nosso horizonte político, para criar o ambiente institucional para uma regressão do ponto de vista social. É muito grave”, alertou. Segundo o prefeito, essa situação vai exigir muita reflexão, talvez mais engajamento da própria universidade. “Estamos vendo movimentos sociais que estão emergindo nesse contexto de resistência, mas eu não tenho dúvida de que é uma encruzilhada histórica com repercussões de longo prazo”, destacou.

Marcio Pochmann

Para Marcio Pochmann, a eleição pode ser uma oportunidade para uma visão mais ampla da sociedade. “A impressão que tenho é DE uma espécie de decadência do ponto de vista da identificação do que está ocorrendo com o Brasil e com as nossas cidades. Há um esvaziamento do debate a respeito disso. E, de certa maneira, esse esvaziamento, essa decadência de pensar a nossa sociedade, deriva do papel que a mídia vem tendo. Rui Barbosa definia a imprensa como comprometimento com a verdade, mas, sobretudo, com o entendimento de que a imprensa seria os olhos e os ouvidos da sociedade. A sociedade vê a realidade com base na mídia. Obviamente que não podemos acreditar que isso seja uma verdade nos dias de hoje”, comentou.

Pochmann falou também da contribuição de Max Weber, que dividia o exercício do técnico do político, identificando que o técnico é aquele comprometido com a verdade, enquanto o político seria comprometido com o convencimento. “A impressão que tenho é que a mídia de hoje está comprometida com o convencimento. Ela quer convencer. A realidade e a verdade não fazem parte necessariamente do seu compromisso na perspectiva de Rui Barbosa. Estamos sendo convencidos pela mídia, que não necessariamente mostra a realidade. Por conta disso, a cidade não é vista pela mídia. Não é tratada”, destacou.

Segundo ele, é importante chamar a atenção para esse fato porque estão ocorrendo muitas mudanças nas cidades que dizem respeito há uma confluência de mudanças muito significativas no Brasil de hoje, com sérios rebatimentos nas cidades, na condição de vida urbana. “A primeira identificação disso resulta da mudança demográfica. Estamos numa transição demográfica de grande importância. Vai reduzindo dramaticamente a presença de crianças e adolescentes no total da população, uma pressão que os prefeitos tinham de uma maneira geral por abertura de mais escolas, tendo inclusive a possibilidade de que alguns prefeitos e governadores de fechar escolas”, afirmou. 

Pochmann falou também da mudança demográfica que reduz o peso da população mais jovem e aumenta o da população com mais idade, colocando questões novas para a administração nas cidades. “A transição demográfica vai nos colocar outra questão que a elite brasileira levou quase cem anos para mudar. Se pegarmos o censo de 1872, por exemplo, tínhmos dois terços dos brasileiros constituídos de não brancos. Havia no final do século XIX uma tese para explicar que atraso brasileiro, sempre comparado com os Estados Unidos, decorria da presença da migração dos escravos, dos negros, então era necessário gerar uma condição de branqueamento da população. A opção por trazer imigrantes brancos”, comentou.

Segundo ele, entre 1872 a 1940, o Brasil tinha dois terço da população constituídos de não brancos. Desde então, passou a ter um terço de não branco, o que se mantém até praticamente 1980. “A partir daí, pela mudança demográfica, pelas políticas de valorização da questão racial, começou a mudar esse perfil e hoje temos praticamente 52% da população que se declaram não branco”, enfatizou, destacando que há uma queda generalizada da taxa de fecundidade mais intensa nas mulheres brancas, sobretudo com maior escolaridade. “Quando se projeta a população do Brasil para 2050, teremos dois terços da população considerados não brancos. Mudança inclusive na estrutura familiar”, analisou.

Pochmannn também falou do “vazio da sociabilidade nas famílias”, a ausência de espaço de diálogo, de ouvir o diferente, o contraditório. “Somado às tecnologias de informação, das técnicas de comunicação, estamos avançando aceleradamente para uma sociedade polarizada, em que o ódio marca as relações sociais, porque com as redes sociais vamos nos aproximando dos que pensam como nós e nos afastando dos que pensam diferente. Isso gera dificuldade de diálogo”, comentou. “A questão da coesão social, em última análise, está em xeque, nessa perspectiva”, complementou.

Ele falou também que o Brasil não é um país industrial. “O Brasil tem em torno de 8% a 9% do PIB constituído de produtos industriais. Está se aproximando do peso da agricultura. É um país fundamentalmente de serviços. Um país de serviços é algo muito distinto do que conhecemos, porque os serviços produzem riquezas de difícil contabilização, difícil de ser monitorada, ao mesmo tempo gera um novo tipo de classe trabalhadora com outro padrão de emprego, sem sindicatos, sem organização. Uma mudança muito grande”, afirmou.