Foi uma oportunidade singular para, no bojo das comemorações do centenário da Revolução Russa, trazer a tona o debate sobre um tema tão sensível que é o debate sobre C & T nas relações de desenvolvimento e de poder político, econômico, cultural e militar entre as nações. Os convidados foram ninguém menos do que Luiz Fernandes, Professor de Relações Internacionais da PUC Rio de Janeiro e da UFRJ, ex-presidente da FINEP (Financiadora de Estudos e Projetos), Ex-Eecretário Executivo de Ciência e Tecnologia e Ex-secretário Executivo do Ministério dos Esportes dos governos Lula e Dilma, respectivamente autor, entre outras obras, do livro “O  Enigma do Socialismo Real. Um balanço crítico das principais teorias marxistas e ocidentais”; e Clélio Campolina, Professor de Economia da UFMG, Ex-Reitor da mesma Universidade, Ex-Ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação do Governo Dilma, autor, entre outros, do livro “Estado e capital estrangeiro na industrialização mineira”. E como mediador foi convidado O Secretário de Estado de Desenvolvimento Integrado e Ouvidor Geral, Ex-Secretário Executivo do Ministério do Esporte do Governo Lula, Ex-Presidente da UNE, Wadson Ribiero.

Wadson Ribeiro abriu o debate registrando a vocação democrática da Universidade Federal de Minas Gerais que, em um intervalo de um mês, abrigou dois grandes eventos políticos, acadêmicos e com a marca da resistência que foi o 55º Congresso da UNE em junho e agora 69º Reunião Anual da SBPC. “A UFMG abrigou em curto espaço de tempo a inteligência democrática e progressista do país para apontar os caminhos para resistência necessária para o tempo presente e formular saídas para a crise política, econômica e social que assola o nosso país”, salientou Wadson na sua fala inicial. Segundo Ribeiro, a reflexão sobre o fim da experiência inaugurada pela Revolução de Outubro se dá num ambiente de ataque às nações e coloca a necessidade de se discutir as alternativas. Com essa introdução passou a palavra ao primeiro expositor.

“A Revolução Russa trouxe a questão social para o centro da agenda das nações”

Segundo Fernandes, passadas três décadas após o colapso do campo socialista, “o mundo ainda é fortemente moldado por essa experiência.” Afirma ainda que a Revolução Russa trouxe a questão social para centro da agenda das nações. Ou seja: o estado de bem estar social na Europa assim como a experiência de desenvolvimento do Japão e da Coreia só foram possíveis devido ao “perigo da ameaça socialista que vinha do Leste”. Nas palavras de  Fernandes, “mesmo partindo de uma base econômica atrasada, houve enormes conquistas no campo social (saúde, educação) muito maiores do que sua base econômica permitia”.

O convidado também  fez questão de frisar que, além de ter colocado em pauta uma agenda social para o mundo, dois outros aspectos marcam o legado da experiência soviética para o mundo. O primeiro foi a derrota do nazi-facismo, simbolizado na famosa batalha de Stalingrado. O segundo  (decorrente do primeiro e talvez mais profundo) foi que a partir da existência do campo socialista, estabeleceu-se  profundas mudanças no sistema  político e econômicas no mundo, com destaque para as lutas libertação nacional, colocando fim ao colonialismo em países  da África, Ásia e America Latina. “O sistema internacional moderno na sua forma atual se deve, em grande medida, ao apoio decisivo  que a política externa da URSS e do campo socialista deu as lutas anti-imperialistas e anti-coloniais no mundo (…) O apoio dado pela URSS às lutas anti-coloniais e de libertação nacional é decisivo no processo de descolonização no pós-guerra”,  o que para Fernandes moldou a atual sistema que garante, formalmente, o direito á autodeterminação dos povos e a equivalência de todos os estados no sistema internacional.

Estudioso das interprestações da experiência de construção do socialismo na URSS, Luiz Fernandes levantou questões, fatos e polêmicas acerca dos caminhos trilhados pelo partido bolchevique que moldaram o processo de desenvolvimento, especialmente do que se refere à C & T. Em primeiro lugar, que  primeira experiência de desenvolvimento alternativa ao capitalismo estava se dando em um país atrasado. O segundo é que o debate no interior do Partido Bolchevique sobre os passos iniciais da revolução, aliada a uma  conjuntura interna e externa adversa,  influenciou caminhos e escolhas. Havia os comunistas de esquerda, que defendiam um modelo centralizado, com estatização completa e imediata dos meios de produção. Havia a posição de Lênin que advogava a adoção de um capitalismo de estado sob a condução política do poder soviético. Ocorre, no entanto, que dado o isolamento do pós guerra e a guerra civil interna, o pós revolução foi marcado por o que se chamou de comunismo de guerra que somente foi superado com a edição da NEP (Nova Política Econômica) no inicio dos anos 20.

 O desenvolvimento alcançado com a implementação da NEP fez arrefecer o debate interno sobre o modelo de desenvolvimento até o final dos anos 20. Ocorre que a direção do Partido Bolchevique avaliava um certo agravamento da situação internacional, o que levaria a URSS a ser invadida pelas potencias do ocidente nos próximos dez anos. O que levou o Partido a realizar um Congresso em 1930 e reorientar política e economicamente a direção do poder soviético, levando a uma inflexão para um modelo análogo ao comunismo de guerra, com uma economia planificada, um estado centralizado que possibilitaria um processo de industrialização acelerada e espalhada por todo o território soviético a partir da geração de excedentes da produção agrícola que passou a contar com os latifúndios estatais produtivos. Com planificação e centralização, o estado soviético pode impor avanços significativos nas forças produtivas, gerando elevados índices de desenvolvimento econômico.

Humorado, Fernandes lembra que é nesse contexto que as Academias de Ciências Comunistas passam a se chamar Academias de Ciências da URSS, onde milhares de Institutos de Ciências foram associados. Fernandes destacou que esse Institutos de Ciências não eram ligados às empresas e que nos anos 30 houve uma pesada intervenção para a formação  em larga escala de quadros técnico científicos de origem popular.

Segundo Fernandes, na medida em que tudo era centralizado, o estado poderia impor um avanço significativo e acelerado na base produtiva. Humorado, Luis Fernandes lembrou a ideia de criação da Academia de Ciências Comunista, que depois foi transformada na Academia de Ciências da URSS, onde milhares de Institutos de Pesquisa eram associados. Fernandes destacou que esses Institutos não eram ligados às empresas e que nos anos 30 houve uma intervenção pesada para a formação de quadros técnica científicos de origem popular.

A base desse modelo, os anos iniciais chegaram a registrar 12% de crescimento ao ano. No início dos nos 50, em áreas que eram demandadas pelo conflito da guerra fria, como a aeroespacial e bélica, houve grandes avanços na produção do conhecimento, chegando à quebra do monopólio dos EUA na produção de armas atômicas, o que alterou drasticamente a correlação de forças mundial. Em 1960 a URSS chegou a atingir 11,5 de participação no PIB mundial. 

“A questão de fundo é que esse modelo não teve sustentação”

Em função dos êxitos da URSS no pós-guerra ocorreu forte impulso à Ciência e Tecnologia no mundo, especialmente nos EUA. Segundo Fernandes, em reação ao lançamento do Sputnik e outros acontecimentos na cena aeroespacial, o governo americano, de imediato, triplicou o orçamento da NSF (National Science Fundation) e o multiplicou por 12 no prazo de 10 anos, por entender que estava ficando para traz na corrida armamentista. Na mesma linha, em 1959 os EUA criaram a DARPA (Defense Advanced Reserch Projets Agence), “uma agencia nominalmente para fins militares, mas com desdobramentos cruciais para a constituição da sociedade do conhecimento no final do século XX”, salienta Fernandes.

“A questão de fundo é que esse modelo não teve sustentação. E por várias razões. Mas há uma dimensão de inovação que ele não soube responder (…) O sistema embutiu um viés avesso à inovação, avesso ao risco.”  Por fim para Fernandes, o modelo baseado no planejamento centralizado, o que não incentivava o à inovação, marca Institutos de Pesquisa desconectados, onde concentrava a produção cientifica e tecnológica  do mundo empresarial. O que levou uma perda de dinamismo econômico, apesar de taxas elevadas de investimentos em P&D (2,14% do PIB em 1960, 3,7 em 1980) e posição privilegiada na produção cientifica (5% nos anos 60) no sistema  internacional. Fernandes chama atenção, no entanto, que apesar da insustentabilidade do modelo soviético, os indicadores mostram o quão dramática ficou a situação da Rússia após a queda da URS$ com redução de 5% para 1,9% na produção cientifica, de 4% para 1% dos PIB os investimentos em P&D, queda de 7 anos na expectativa de vida dos homens russos, aumento de 1 para 60 milhões de cidadãos russos vivendo abaixo da linha da pobreza em 4 anos.

Ressurge debate das alternativas

Luis Fernandes, a despeito da reflexão crítica e da onda conservadora que abateu o mundo após a queda da URSS, reafirma sua base teórica e interpretativa e defende que aquela foi a primeira experiência de construção de socialismo no mundo e, por seus grandes êxitos e insuficiências, alterou profundamente a relação entre os povos nos últimos 100 anos.  Chama atenção também para a necessidade de pensar alternativas sempre evitando modelos. Cita o exemplo da experiência chinesa atual que, de certo modo, retoma os pressupostos da NEP (Nova Política Econômica). Segundo Fernandes a china adota uma política macroeconômica de indução ao desenvolvimento com cambio fixo, integração soberana no mercado mundial, chegando aos índices de 17% de participação do PIB mundial, superando EUA e União Europeia e 16,7% da produção cientifica mundial, o que correspondia a 5% e 0,06%, respectivamente, antes das modernizações de Deng Xaoping.

“As mudanças contemporâneas devem vir da periferia”

 

O professor Clélio Campolina inicia sua intervenção de forma bem humorada  deixando claro que nunca possuiu filiação político partidária; que nunca foi revolucionário e que é averso à força bruta como forma de se conquistar a liberdade.Isso posto, disse que acha curioso o fato de sempre ser convidado para falar nas atividades do PCdoB, o que sempre faz com muito prazer. Com estilo próprio que busca, a partir de frases impactantes, construir raciocínios complexos, mas de fácil entendimento, sem rodeio foi direto ao ponto  “eu acho que as mudanças contemporâneas devem vir da periferia” – frase repetida ao longo de toda a sua intervenção.

“Estou inteiramente de acordo com você que a revolução soviética foi decisiva para a melhoria. O estado de bem estar Europeu surgiu como mecanismo de defesa para que a revolução não avançasse. O crescimento de capitalismo asiático (Coreia do Norte)… Um Japão socialista arrebentaria o sistema… A Coreia se industrializou sem empresa estrangeira com engenharia reversa copiando tecnologia de todo mundo e com permissão do mundo capitalista”, disse Campolina que emendou afirmando que quem vai à Coreia vê que os laboratórios das universidades estão a serviço das empresas. Na experiência de dirigente universitário e dedicado ao estudo da economia do conhecimento refuta os que defendem o mesmo modelo coreano para as universidades brasileiras.

O professor Campolina, no entanto apresentou discordância quanto a avaliação que o primeiro expositor fez do processo econômico, político e social chinês. Segundo Campolina, está em curso um projeto de expansão e dominação chinesa no mundo que parte de um processo de acelerado crescimento econômico com altos custos sociais para o povo chinês. “Mercado forte, um estado forte e uma sociedade fraca. Isso está escrito no livro de Xiu Liug sic, Presidente do Instituto de Planejamento Chinês.” Segundo Campolina, no entanto, a China possui aspectos positivos, além do crescimento econômico, a propriedade da terra ainda continua sendo controlada pelo estado.

“O diabo (com todo o respeito) é que a Ciência e Tecnologia estão a serviço da dominação” disse Campolina concordando com Luis Fernandes nas suas avaliações sobre os investimentos que a URSS e EUA fizerem em C & T e que os EUA são guiados por o que eles chamam de indústria de defesa, mas que para ele é a indústria do ataque, da guerra. Para o professor, o mundo vive hoje uma nova corrida armamentista contra entre os EUA e a China que guarda semelhanças com a que ocorreu entre EUA e URSS anteriormente.

“Estamos vivendo uma crise estrutural profunda”, salienta campolina, “crise política, crise econômica, crise social, conflitos religioso…” Com o fim da URSS e o advento das teorias de Fukuyama do fim da história e das ideias neoliberais, achou-se que a globalização iria fazer o mundo ficar plano.  Mas o que veio foi essa tragédia uma tragédia.  “ Em duas décadas se criou uma tragédia enorme”, conclui Campolina. Até mesmo os economistas tradicionais como Paul Krugman e Joseph Stigliz dedicam suas melhores energias para pensar saídas para a sobrevivência do próprio capitalismo. 

Campolina cita o cientista político norte americano, Manual Einstein, que diz que a única expectativa do mundo está na nova esquerda Latino Americana da qual o Brasil estava construindo. “As mudanças contemporâneas deve vir da perifeira”, cita trecho do livro do de Manual. Segundo Campolina, o autor falar que é muito difícil esperar algo novo que enseje um novo projeto vindo de regiões cristalizadas como a Europa. “É muito difícil esperar uma solução nova de uma Europa. Está tudo muito cristalizado”, conclui o professor.

“Um novo paradigma de desenvolvimento que tenha a cara socialista”

Diante dessas crises, Campolina  defende ”a ideia de que sociedade tem que  inventar, propor um novo paradigma de desenvolvimento. Um paradigma de desenvolvimento que tenha a cara socialista, ou seja, que a gente possa melhorar as condições materiais de vida… trabalhar isso numa perspectiva de sustentabilidade ambiental e um pouco a soberania dos povos”. Campolina, no entanto, considera que essa plataforma não seja simples, visto que a corrida cientifica e tecnológica acelerou por conta desse contexto da competição do mundo ocidental com o mundo oriental por dominação econômica e militar.

“Temos que construir o novo. O Brasil ensaiou a possibilidade de ser um país não subdesenvolvido”, chama atenção, sem citar diretamente, o ensaio iniciado em 2003 com a eleição de Lula. Questiona, no entanto, “como mobilizar a sociedade para criar um novo pardigma de sociedade, como tivemos essa oportunidade e hoje como ficam os 14, 15 milhões de desempregados, uma verdadeira tragédia urbana”, fazendo referencia ao caos político, econômico e social, novamente de forma sutil, caracterizando o Brasil do golpe.

O professor Campolina parte para as suas considerações finais, novamente de forma humorada, dizendo que não é seu objeto de debate as questões do trotkysmo ou stalinismo e que precisamos entender e atacar as razões básicas do que ele chama do atraso brasileiro a serem superados para a construção de um novo projeto.

 O primeiro problema é o da escravidão. Para superar a escravidão que até o presente foi superada é necessário atacar o problema da educação básica que deve ser levada com qualidade a todos os lugares onde tem gente. Ou seja: precisa universalizar  a educação básica de qualidade. Depois o problema do sistema acadêmico e universitário  que, apesar de ter avançado muito, ainda precisa ter densidade e volume. “Um premio Nobel isolado numa cidadezinha não faz nada. Adensar a educação superior e levar a educação básica onde as pessoas estão”.

O segundo problema é o da terra, o problema fundiário. Segundo Campolina, o problema fundiário saiu do campo e veio para a cidade. O cidadão urbano, pobre não em direito a moradia. Portanto, o problema da propriedade passa a ser generalizado, na cidade e no campo e, portanto, precisa ser superado.

O terceiro e ultimo problema é o do estado patrimonialista cartorial. Campolina problematiza com a questão da previdência no Brasil de inicio já deixando clara a sua discordância com a Reforma de Temer.  Defende uma profunda reforma do estado brasileiro que supere o estado rentista. “Mais de 30% da dívida pública brasileira é dos fundos de pensão.” Demonstro também sua indignação com um estado que oferece bilhões em incentivos fiscais que são apropriados como lucros do setor privado. “Quem é proprietário da dívida pública são os bancos e os ricos” disse campolina. Por ultimo, nas suas considerações finais, chamou atenção para a falta e a necessidade de planejamento no Brasil. Citou, inclusive, o exemplo que foi plano de eletrificação de Minas Gerais do inicio do século passado, elaborado por Lucas Lopes, inclusive sob influência do planejamento soviético.

Depois de ouvir os presentes que contribuíram com o debate, Wadson Ribeiro  sintetizou a contribuição dos dois convidados salientando que há uma unidade no debate que “na medida em que fragiliza um projeto de nação, diminui de forma proporcional os investimentos”. Conclui dizendo que o debate também coloca a necessidade de buscar alternativas, sem modelos, que não será russo, nem chinês, mas que será com  a inteligência e generosidade do povo brasileiro.