Ano de 1961 – periferia de Osasco -Única foto que prova a existência do histórico Infantil Paulistinha (Infantil J. D´Abril). Da esquerda para a direita temos alguns titulares: em primeiro plano o Carlinhos (ACAS), o Edmundo, o goleiro Hélio, o entusiasta torcedor Neguitinho e o Tarciso (zagueiro reserva). Foto do Alika (Alexander Noboski), que pouco depois dessa foto que fez, tornou-se goleiro titular, se vestia de preto e queria que o chamássemos de Aranha Negra (Lev Iashin). Lembro aos leitores que no momento em que a foto foi feita, nós estávamos no nosso “vestiário”.

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Na minha infância e adolescência, joguei futebol em muitos times de várzea. Participei de partidas inesquecíveis na periferia da cidade; pelo Infantil Paulistinha do Jardim D´Abril (Osasco), time que com mais dois amigos ajudei a fundar (compramos o primeiro jogo de camisas, pedindo contribuições de pequenos e grandes comerciantes e aos pouquíssimos profissionais liberais que viviam no bairro); pelo Juvenil D´Abril, que tinha sua sede no Bar do Angenor (nosso técnico), no bairro do Jardim Oriental; pelo Infantil São José do Jardim D´Abril, formado e fundado por mim e mais alguns abnegados colegas, com os quais frequentávamos assiduamente a Igreja Matriz de São José Operário do Jardim D´Abril, aliás, igreja que meu pai ajudou a construir, usando suas próprias mãos, trabalhando como servente de pedreiro voluntário nos fins de semana; pelo Juvenil Frigorífico Wilson de Osasco, onde fui levado pelo irmão Nelson; pelo Sport Club Independente do Jardim d´Abril, formado pelos “boleiros do bairro”; pelo Sport Club Santa Cruz do Jardim D´Abril, time em que atuei como titular, com apenas quatorze anos, sendo este um time e adultos. Parei de jogar na várzea, depois que o Jairzão, beque do Corintinha da Vila Yara, me acertar um murro no estômago; que me pôs a nocaute! Uns dois meses antes, apanhei feito cachorro no jogo contra o Palmeiras de Pirituba, no campo deles: tudo porque fui dar um chapéu em dois adversários ao mesmo tempo, em jogo que já ganhávamos de quatro a zero.

Hoje, sessentão, em vésperas de setentão, revivo mentalmente aqueles campos de terra e aqueles times, onde pagávamos para jogar. Claro que alguns dos craques, também eles sendo tão pobres quanto os outros, tinham tratamento especial e não pagavam as mensalidades (lavagem das camisas, a compra de bolas e bombas, bicos de bombas, convites impressos e etc.). O destino de muitos dos meus amigos do futebol é que não foram gloriosos.

Lembro que certa vez um amigo fora do futebol e que frequentava os campos nos jogos que nós disputávamos, filho de um policial e de uma senhora americana (eles se conheceram e se casaram na Itália durante a segunda grande guerra), me contou que foi vítima de um assalto numa rua escura do bairro, onde ele estava com sua namorada. Apontaram armas, exigiram a carteira. Meu amigo tirou a carteira e o relógio: na hora de entregar, reconheceu o rapaz que o assaltava: era o Roquinho, centroavante do Infantil Paulistinha e que comigo jogava. Quando a vítima o viu, disse:

-Pô, Roquinho! Vai me roubar?

-Tá bom, desculpe; disse o Roquinho. E, ato contínuo, chamou o João Dete, nosso zagueiro central e foram embora, em meio à escuridão.

Jamais soube deles depois que parei de jogar futebol, pois me mudei de Osasco.

Parei de jogar futebol na várzea aos 22 anos de idade, para tentar uma profissão; para isso era preciso estudar. Como eu tinha um irmão que era projetista mecânico e ganhava muito mais que nossos salários de seus três irmãos somados; também fui estudar desenho mecânico. O curso era muito puxado; as aulas eram à noite e tinha lições de casa para fazer, as quais tomavam todo o sábado e boa parte do domingo. Acabava-se assim um ciclo de minha vida na periferia. Pouco depois, já na faculdade (queria fazer engenharia, porém teria que estudar durante o dia todo e assim não poderia prover minha família, que dependia de mim – fiquei órfão de pai aos dezoito anos de idade); desse modo, optei pelo curso de Física, cujas aulas eram noturnas. Foi lá na faculdade que ainda joguei algumas partidas de futebol na várzea: as últimas de minha vida.

-Quanto aos antigos colegas de futebol, soube que um tentou jogar futebol profissional em Ribeirão Preto (no Botafogo); durou pouco o sonho! Outro, de família alemã pequeno burguesa, formou-se engenheiro e chegou a ser diretor de uma importante empresa de origem alemã, em São Paulo. (Muito pouco mencionar um que se deu bem, quando convivi com algumas centenas de companheiros de times)!  Alguns (poucos) viraram pequenos comerciantes e foram em frente. O Edmundo (da foto) faleceu aos vinte anos de idade em um acidente rodoviário; porém outros, como o Roquinho e o João Dete, nunca mais os vi: sinceramente eu não creio que tenham vivido bastante para deixarem a vida de crimes. Quanto aos outros amigos do Paulistinha que aparecem da foto, jamais os vi, depois que parei de jogar na várzea, aos 22 anos de idade.

Como já disse certa vez, nós defendíamos nossos times com obstinação. Jogando futebol na várzea, nós nos sentíamos lindos, felizes, inteligentes, invencíveis, imortais. Ali, molhados de suor, marcamos nosso nome na história do bairro. Esses eram os melhores momentos de um tempo; não percebíamos que o destino entrava de sola em nossas vidas. Aqueles campinhos de terra, na encosta de um barranco íngreme, que fazíamos com nossas próprias mãos de meninos da periferia, é hoje um grande cemitério virtual. Pouquíssimos campos ainda sobrevivem na periferia da grande cidade. Pior; muitos daqueles craques meninos que participavam comigo daquelas peladas deixaram ali enterrado seus sonhos de jogador profissional. A luta pela sobrevivência nos fazia trabalhar desde muito cedo; eu próprio comecei a trabalhar com treze anos de idade; no entanto, alguns não tinham estrutura para aguentar as agruras e partiram para o crime, desrespeitando as regras do jogo, cometendo pênaltis desnecessários, sendo mandado para o “chuveiro” pelos juízes, ainda no primeiro tempo. É muito triste lembrar que a opção por jogar futebol era a única que tínhamos como opção de lazer; já que os salários praticados pelas indústrias eram escorchantes; imaginem caros leitores, eu próprio trabalhei em indústrias desde os quatorze anos: o salário pago aos jovens (menos de 18 anos de idade) era a metade do salário mínimo! Outros colegas de time morreram cedo demais, tentando remediar a situação de suas famílias, ainda mais carentes que eles próprios. Em suma, seus sonhos eram enterrados; antes mesmo do jogo acabar. Agora eu, sexagenário, vez ou outra ainda passo pelas ruas do antigo bairro e bairros circunvizinhos: para minha tristeza fico sabendo que ainda há muitos meninos da periferia cometendo faltas, certos de que não irão tomar cartões vermelhos ou amarelos; sem se importar quem são os adversários, sem se importar com a cor da camisa; sem pena dos derrotados, importando-se apenas ao seu egoísmo provindo da extrema necessidade de vencer na vida a qualquer preço, ou simplesmente sobreviver.

Ainda outro dia, encontrei velhos escritos meus, que estavam perdidos, onde eu falava sobre o Hino do Infantil Paulistinha, cuja melodia era a mesma que Chiquinha Gonzaga fez há mais de cem anos para a música “Ô Abre Alas”, que anunciava que o carnaval havia começado no Rio de Janeiro, cantado pelos integrantes da “Lira Rosas de Ouro”. Já a letra improvisada, mas jamais melhorada, da canção do nosso time era a seguinte:

“Ô abre alas/ Sou eu morena/ Ô abre alas/ Que eu quero passar/ Vermelho e branco/ Sinal de guerra/ É o Paulistinha que estremece a Terra!”.

Curioso notar que a camisa do Paulistinha era majoritariamente nas cores branco e preto (vide foto acima); a letra do hino que as mencionava como vermelho e branco, jamais foi motivo de preocupação de nenhum de nós… . Afinal, nossos uniformes eram improvisados, os juízes que apitavam as partidas eram improvisados (escolhidos dentre a torcida presente), nossa tática era improvisada; nossas vidas eram improvisadas!

E AS NOSSAS CHUTEIRAS; QUE LEMBRANÇAS ME TRAZEM?

Dentre os mais de trezentos companheiros que tive na várzea, talvez três ou quatro tivessem chuteiras de procedência argentina: macias, flexíveis e confortáveis (eles não as emprestavam de modo algum); já a grande maioria, inclusive eu, no máximo tínhamos a “Viola”, chuteira de péssima qualidade, donde brotavam pregos do solado e dos cravos, rasgando nossas meias, ferindo nossos calcanhares e as solas dos nossos pés e que tentávamos driblar, acrescentando à guisa de palmilha, cascas de laranja ou banana, papelão, jornal, ou qualquer outra coisa que pudesse abrandar o sofrimento dos nossos pés  feridos, correndo nos campos de terra dura. Lembro aos leitores, que bem depois disso, surgiu um jogador de futebol num grande time de São Paulo, que foi fazer a “peneira” com uma chuteira “Viola” e, com ela, fez três gols no time da base; não foi à toa que ele adotou o nome da chuteira na sua vida profissional.

COMO ERA A VIDA DA PERIFERIA E PONDERAÇÕES

Antes do Infantil Paulistinha, na época em que eu jogava nos campinhos improvisados com times sem camisa e descalços, muitos meninos eram substituídos com o jogo ainda em andamento; alguns eram substituídos antes mesmo de tocarem na bola. E hoje, que o Brasil provou que não é mais o país do futebol e que não somos invencíveis (na copa do mundo, no Brasil, apanhamos de 7×1 da Alemanha, de 3×0 da Holanda; na Copa América, de 2×0 do Chile, etc.); quando as cortinas se fecham e termina o espetáculo, me vem aquele sentimento horrível: é muito triste perder sem jogar, sem ter tido a chance de poder disputar e ter acesso aos liceus onde a burguesia aprende as regras do jogo, enquanto meus amigos da periferia as ignoram “ad eternum”. É difícil aceitar perder uma partida sem ter entrado em campo! E a grande maioria dos meninos da periferia passou e passa ainda por isso.

Hoje, minha dor saiu do vestiário da vida e a saudade entrou em campo. Pedi um minuto de silêncio a mim mesmo. Rezei uma oração por aqueles antigos e aos novos meninos da periferia dessa cidade e do mundo, pedindo a Deus que lhes conceda, pelo menos, a possibilidade de uma prorrogação.