O Menino e o Velho: a Várzea Como Era e Como Ficou

 


Na minha ultima partida, luto para fazer mais um contra-ataque! Tento ter uma velhice digna. É uma luta ter para o casal um convênio médico, tratar dos dentes, fazer um checkup (coisa rara), etc. No meu último jogo da vida, penso nos antigos jogos que se sucediam, domingo após domingo, nos campos de várzea da “Grande Árvore” (cidade de São Paulo). Participei de partidas inesquecíveis na periferia da cidade; pelo Infantil Paulistinha do Jardim D´Abril (Osasco); pelo Juvenil D´Abril; pelo Infantil São José do Jardim D´Abril; pelo Juvenil Frigorífico Wilson de Osasco; pelo Sport Club Independente do Jardim d´Abril; pelo Sport Club Santa Cruz do Jardim D´Abril, time em que atuei como titular, aos quatorze anos, sendo este um time de adultos. Tempos de fim de infância, tempo adolescente e tempo de adulto. Aos sábados, quando estava de folga do trabalho e que não estava atuando por esses times, volta e meia, atuava com qualquer grupo que disputasse um a partida nas ruas descalças e campinhos de terra de minha infância. Eram partidas que não tinham hora de acabar: começavam pela manhã e seguiam tortuosas tarde adentro, interrompidas às vezes, para o almoço e para aqueles que tinham o privilégio de ter a merenda da tarde.


Foram momentos de prazer inenarrável, junto desses meninos de pés descalços, num mesmo time. Nosso uniforme era apenas um calção; um time de camisa, outro sem. Éramos felizes, inteligentes, invencíveis, imortais. Ali, marcamos nosso nome na história do bairro, molhados de suor. Esses eram os melhores momentos de um tempo; não percebíamos que o destino entrava de sola em nossas vidas. Aqueles campinhos de terra, na encosta de um barranco íngreme, que fazíamos com nossas próprias mãos de menino da periferia, é hoje um grande cemitério virtual. Muitos daqueles craques meninos que participavam comigo daquelas peladas deixaram ali enterrado seus sonhos de jogador profissional. A luta pela sobrevivência nos fazia trabalhar desde muito cedo; alguns não tinham estrutura para aguentar as agruras e partiram para o crime, desrespeitando as regras do jogo, cometendo pênaltis desnecessários, sendo mandado para o “chuveiro” pelos juízes, ainda no primeiro tempo. Outros morreram cedo demais, tentando remediar a situação de suas famílias, ainda mais carentes que eles próprios. Em suma, seus sonhos eram enterrados; antes mesmo do jogo acabar. Agora eu, sexagenário, ainda passo pelas ruas do antigo bairro e bairros circunvizinhos: para minha tristeza fico sabendo que ainda há muitos meninos da periferia cometendo faltas, certos de que não irão tomar cartões vermelhos ou amarelos; sem se importar quem são os adversários, sem se importar com a cor da camisa; sem pena dos derrotados, importando-se apenas ao seu egoísmo e em vencer na vida, a qualquer preço.


Na época em que eu jogava nos campinhos improvisados, muitos meninos eram substituídos com o jogo ainda em andamento; alguns eram substituídos antes mesmo de tocarem na bola. E hoje, que o Brasil provou que não é mais o país do futebol e que não somos invencíveis; quando as cortinas se fecham e termina o espetáculo, me vem aquele sentimento horrível: é muito triste perder sem jogar, sem ter tido a chance de poder disputar e ter acesso aos liceus onde a burguesia aprende as regras do jogo, enquanto meus amigos da periferia as ignoram ad eternum. É difícil aceitar perder uma partida sem ter entrado em campo!


Hoje, minha dor saiu do vestiário da vida e a saudade entrou em campo. Pedi um minuto de silêncio a mim mesmo. Chorei baixinho (velho chorão que sou)! Rezei uma oração por aqueles antigos e aos novos meninos da periferia dessa cidade e do mundo.


-Peço a Deus por eles; que tenham mais chances, que eles tenham o direito de voltar ao jogo quando ao menos ocorrer uma prorrogação!

 

 

    Antônio Carlos Affonso dos Santos – ACAS. É natural de Cravinhos-SP. É Físico, poeta e contista. Tem textos publicados em 7 livros, sendo 4 “solos e entre eles, o Pequeno Dicionário de Caipirês e o livro infantil “A Sementinha” além de três outros publicados em antologias junto a outros escritores.