No ponto

 

 

Dizem que quem conta um conto aumenta um ponto. Pois bem, vou aumentar aqui o meu. Estava eu no ponto de ônibus quando chegou ao meu lado um sujeito um tanto alterado e perguntou, apontando para meu bolso e tentando manter-se de pé, – você tem aí uma ponta de cigarro?

 

– Eu não fumo! Respondi tentando segurar a respiração para não sentir o mal cheiro exalado pelo pedinte que me inquiria.

 

– Faz bem. Não se deixe influênciar por esta sociedade consumista que não se preocupa com o mal que faz ao próximo desde que consiga vender e enriquecer uma classe dominante e exploradora.

 

Fui surpreendido por um mendigo que com certeza havia estudado. Mas isto não lhe tirava o mal cheiro. Já estava a ponto de desmaiar quando ele se retirou.

 

Mas este ainda não é o ponto onde quero chegar. Estava de pé enquanto esperava minha condução e aproveitava o tempo para ler um livro que já me acompanhava há um bom tempo. Mais afastadas, duas moças conversavam temperando o assunto com gostosas gargalhadas, um pouco mais além um senhor de chinelos observava a movimentação da avenida, o que não faziam alguns rapazes que tinham outro cenário (as moças) em suas mentes.

 

Estava assim o clima quando uma senhora franzina, cabelo em coque bem puxado para trás, blusa branca, saia branca, rosto magro, de óculos e com uma bíblia na mão se insere no contexto. Panfletinhos para cá, panfletinhos para lá e com um sorriso pronto chega no ponto onde se encontrava o senhor de chinelos. Pega um folhetinho que estava em seu bolso e o leva em direção ao senhor. Este, educadamente, diz não aceitar e continua com sua contemplação. A mulher, um tanto contrariada e já a ponto de perder o sorriso, continua seu caminho distribuindo seus folhetos. Passa pelas garotas e eu, como quem chega ao ponto de não ter o que fazer, pois correr não era apropriado, fico intranquilo imaginando o que direi para também não aceitar, nem magoar a pobre criatura.

 

Pobre criatura? Vai vendo. A mulher já vinha estendendo a mão para mim quando abruptamente dá meia volta e vai, como um tufão em fúria, em direção ao senhor de chinelos.

 

– Quem o senhor pensa que é? O senhor pensa que é mais importante que o Senhor?

 

É obvio que o sujeito, e todos que estávamos no ponto, pois paramos para ouvir, não entendeu nada. Nem a reação, nem a pergunta. Afinal o que ela queria dizer com ele pensar que é mais do que ele mesmo?

 

– Pois fique o senhor sabendo que Ele é onipresente, onipotente e onisciente.

 

Acho que ela percebeu a confusão de entendimento gerada inicialmente, pois falou isto apontando para o céu.

 

– E Ele está vendo seu comportamento esnobe, superior com o nosso Senhor e sua sabedoria eterna.

 

E por aí ia a cantilena da pregadora. O senhor de chinelos tentava intervir, mas toda a sabedoria da mulher não o permitia se pronunciar.

 

– O Senhor é o meu pastor e nada me faltará! Já o senhor, – e apontava ora para o de chinelos, ora para as nuvens – não cuida nem dos seus pois o Senhor – de novo para as nuvens – há de castigar, há de punir o senhor – agora aponta para o de chinelos – e seus familiares. O inferno será o destino do senhor – já ia apontando para as nuvens quando percebeu o erro antes de cometer um sacrilégio.

 

– Mas minha senhora… Tentava argumentar, sem sucesso, o senhor. Não o das nuvens, o de chinelos.

 

Neste momento a mulher respira e pergunta: por acaso o senhor tem bíblia? E antes que a pregadora continuasse ele conseguiu responder: tenho, minha senhora. A carola não se dá por vencida e exclama com o dedo em riste e apertando a bíblia como para ganhar algum apoio sobrenatural: meu senhor, a bíblia não é a revista da Avon que você abre só quando quer fazer pedidos!

 

Então ouço, partindo por trás de mim, a voz rouca e forte do mendigo que diz:

 

– Pelo menos os pedidos que eu fazia para a Avon eram atendidos.

 

Resposta bem dada para a alegria de todos. E com isto encerro. Ponto final.

 

 

Andocides Bezerra