A Cólera – Esperança

 

Atiro-a contra quinas erguidas desta madrugada,
contra estes edifícios enormes,parados
contra o cinza do céu sujo como o sabão que lava o piso dos
botequins ao fim da noite.

 

Atiro-a contra o cansaço do mundo,
contra o meu próprio e inenarrável cansaço,
atiro-a em nome da utopia que é minha, a tua, a nossa utopia,
atiro-a com raiva, sem estratégia, sem prudência,
como hemorragia que se esvai e tinge a calçada
com o esguicho do seu incêndio rubro.

 

 

Atiro-a para nada, para o nenhum resultado
do  grito que precede o baque do copo atropelado na rua,
atiro-a no ar do mar, na curva corrosiva do azul, à porta dos
orfanatos e prostíbulos,
atiro-a ao chão como bile sanguinolenta que escorre,
como quem cospe um dente arrancado por um murro na boca.

 

Mas atiro-a, flecha turva, esperança e nojo,vida e cólera,
atiro-a com este punho fechado, com esta sede e esta fome,
atiro-a com funda mais funda do meu sonho mais profundo,
atiro-a contra argentários e fundiários, opressores e ditadores,
atiro-a em meu nome e em nome dos que ainda não tem nome,
e em nome dos que em dores e cólicas acordam para seu nome,
e ao rés-do-chão, em pleno pó, o desentranham.

 

 


Hélio Pellegrino – Minérios domados – poesias reunida