Um certo cacique Piyé Mapuá

Dentre todas as cartas e sermões que o padre Antonio Vieira escreveu durante sua missão no Pará, a mais importante para a história da Amazônia foi datada de 11 de janeiro de 1660. Nesta quase ignorada missiva plena de inventiva barroca, finta e maquiavelismo, mas rica em informações diretas e sugestões para pesquisa histórica até agora insuficientes, ele informa a Regente de Portugal, viúva de Dom João IV; Dona Luísa de Gusmão, durante a menoridade do mentecapto Afonso VI; a respeito das missões do Maranhão e Grão-Pará destacando em alto relevo a pacificação dos invencíveis e bárbaros índios “Nheengaíbas” [Marajoaras], empreendida em viagem de 16 a 27 de agosto do ano de 1659, ao “rio dos Mapuases” [Mapuá, no atual município de Breves-Marajó-PA] com partida da aldeia do Camutá (Cametá-PA), no rio dos Tocantins, numa flotilha de doze canoas levando o dito superior das missões e o experiente jesuíta Manuel Pires, falante da língua dos “índios” (no caso, Tupinambás; inútil no trato com os tais “Nheengaíbas” que falavam diversos idiomas todos eles de tronco Aruak) e que já havia acompanhado tropa de Resgate (descimento de escravos capturados por tribos amigas dos portugueses) até o Rio Negro, que foi o grande celeiro de mão de obra escrava no Pará. Além dos dois padres, a missão de compunha de seis soldados da praça de Cametá, inclusive o sargento-mor Agostinho Correa, conhecedor da valentia dos índios das ilhas da foz do Amazonas; todos mais eram “índios cristãos” de arco e remo (tupinambás). E, por suposto, os dois índios nheengaíbas cativos do seminário de Santo Alexandre que Vieira fez embaixadores com a inacreditável carta-patente, escrita em bom português; levando a proposta de paz dando termo há 44 anos de guerra com os portugueses.

Esta carta preciosa do realismo-mágico amazônico retrata uma situação crucial tanto da vida do autor quanto da conquista portuguesa na Amazônia, até então insegura após mais de quatro décadas de guerra com os concorrentes coloniais no quatro do conflito geral entre a Reforma e a Contra-Reforma. A crônica colonial é uma charada onde, propositalmente, se esconde a realidade e também ela se mostra sobretudo pelas entrelinhas e deduções lógicas. Além disto, o desconhecimento é quase sempre preenchido pelas imaginações do “espaço vazio”. E sobre a insustentável fantasia se levantou nossa historiografia afincada ao direito romano do “Uti possidetis” real oposto ao “Uti possidetis júris” castelhano baseado em cédulas caducas outorgadas a conquistadores ou descobridores.

Claro, segundo a jurisprudência firmada após a célebre polêmica teológica entre Ginés de Sepúlveda e o dominicano Bartolomeu de Las Casas a fim de verificar se os índios tinham alma humana ou não, nem o livre Bom Selvagem era gente, muito menos “negros da terra” (escravos indígenas) ou da Guiné, equiparados às bestas da natureza. Las Casas no mundo colonial hispânico e Vieira no mundo português não cogitaram jamais sobre a liberdade dos negros, este último tampouco argumentava em favor do índio “livre” se não na tutela e protetorado da Missão. Fato estranho à mentalidade do século XXI atinente aos Direitos Humanos dos Povos Indígenas, porém se pode ver que no mínimo essas pequenas vitórias morais nos séculos XVI e XVII abriram caminho até nossos dias.

Na verdade, a abolição dos cativeiros indígenas nas colônias católicas havia fundamento na pobreza econômica dos reinos ibéricos diante da concorrência das emergentes monarquias protestantes e do ambíguo imperialismo francês jogando oras com o Papa, oras com o desafio huguenote interno. O encontro de Vieira em Amsterdam com o rabino português exilado, Menassé ben Israel teve conseqüências: como se sabe, sob pressão de Espanha os judeus foram expulsos de Portugal e com eles foi embora o capital dos ricos, enquanto quem era pobre teve que se tornar cristão (amplo fenômeno marrano na Espanha e cristão-novo em Portugal com ampla repercussão na colonização das Américas). Menassé ben Israel (nascido na Ilha da Madeira, em 1604, recebeu nome cristão de Manuel Dias Soeiro) escreveu o livro “Esperanças de Israel”, no qual dizia ser os índios americanos descendentes das “tribos perdidas” do cativeiro da Babilônia. Vieira foi diplomata a serviço do embaixador português na Holanda negociando reconhecimento da independência de Portugal e da restauração da monarquia com Dom João IV, parece ter visto com clareza que Portugal precisa mais dos capitais dos judeus expulsos do que do reconhecimento político formal de seus concorrentes: isto foi percebido favoravelmente pelo rei e motivo de odiosa perseguição dos cristãos velhos encastelados no Santo Ofício da Inquisição. 

A missão de Vieira na Amazônia (1653-1661) foi praticamente um castigo imposto pelos superiores da Companhia de Jesus ao jesuíta voluntarioso demais e mais chegado às cortes européias do que à clausura do convento. Dom João IV sentiu-se ofendido pelos Jesuítas que enquadraram seu protegido e quis valer o direito de Padroado (concordata com o Vaticano), nomeando-o bispo de Viseu, que Vieira recusou submetendo-se aos ditames da ordem até o fim de sua longa vida. Mesmo assim, ele estava seduzido pela teoria judaizante de Menassé ben Israel e por esta causa seria condenado pela Inquisição. Eis como os bárbaros Nheengaíbas vem a calhar no papel de descendentes do Cativeiro da Babilônia, enquanto os antropófagos Tupinambás já se achavam corrompidos demais pela guerra e as tropas de Resgate… No teatro amazônico, surge então a figura emblemática de Piyé, cacique dos Mapuás; que aceita negociar a paz nos termos da lei de liberdade dos cativeiros, de 1655, obtida pelo “payaçu” e sancionada pelo rei Restaurador da independência portuguesa; mas ao mesmo tempo aparece como acusador do colonialismo e se recusa a prestar vassalagem ao novo rei… Curiosa trama que a carta de 11/01/1660 revela diante da grande indiferença dos historiadores brasileiros.


O contexto da “pax” dos Nheengaíbas é, sem dúvida, a invencível resistência da ilha do Marajó aos ataques militares para a dominar e, ao contrário, a guerrilha fluvial com que os insulanos afundavam canoas vindas do Amazonas com “peças” (escravos) e “drogas do sertão” (cacau, salssaparilha, urucu, etc.). O destino da pilhagem eram traficantes franceses ou holandeses através do Cabo do Norte (Amapá). As coisas iam neste ritmo, quando a notícia da morte de Dom João XVI ecoou como uma bomba. Vieira sentiu-se desamparado e seus inimigos mais do que nunca animados a mandá-lo de volta para a metrópole. Vieira decide partir para sua maior cartada, promover a “ressurreição” do rei morto, como este fora reencarnação (simbólica, evidentemente) do Esperado, Dom Sebastião… A caminho de Camutá (Cametá-PA) ele manifesta o cumprimento da profecia do “Quinto Império do Mundo” declarando que o poeta sapateiro de Trancoso, agira certo: “Bandarra é verdadeiro profeta”… O panfleto chamou-se “As Esperanças de Portugal” e a inspiração das “Esperanças de Israel” não passou sem o olhar atento do Santo Ofício. A carta ao bispo do Japão foi datada de 29 de abril de 1659 e a carta à Regente de Portugal, feita em Belém do Pará de 11 de janeiro do ano seguinte: no entremeio das duas cartas a maior notícia que Lisboa poderia esperar, em 27 de agosto último; terminava a guerra de conquista do Maranhão pela obra das missões, deixando seguro o Pará pela paz da grande ilha, maior do que o reino de Portugal, que se acha atravessada à boca do gigantesco rio das Amazonas. A diligência de Vieira em fazer constar a cerimônia de vassalagem dos Nheengaibas ao rei de Portugal é reveladora de suas intenções de recuperar prestígio junto à corte. A condenação e mais tarde a expulsão dos Jesuítas e extinção da Companhia face ao Diretório dos Índios (1755-1798) explica em grande parte o “esquecimento” desta história, cuja leitura a par dos novos tempos de inclusão social faria com que os  velhos “nheengaíbas” e seus descendentes ribeirinhos saíssem do limbo para lugar ao sol na história do Povo Brasileiro nas regiões amazônicas.


Foi o conquistador Tupinambá quem, livremente, convidou os franceses a vir morar com eles no Maranhão: nasceu assim a “France Equinoxialle” (1612) e a colônia francesa se acabou, por certo, quando os índios viram que em vez de se aliar a eles contra o inimigo invencível Nheengaíba, que vedava a ilha cobiçada onde o Araquiçaua (porto onde o sol ata rede de dormir ao fim do dia) faz limite com a “Yby Marãey” (Terra sem mal); os Mayr (franceses) diabolizaram o demiurgo Jurupary, que fala e ri pela boca dos pajés… Então, em Jaguaribe (Ceará) o casamento da índia Paraguassu com o cristão-novo Martim Soares Moreno mudou o curso da história, graças à ignorância dos frades capuchinhos da França e o cunhadismo na cultura indígena brasileira. Isto não é brincadeira, embora a literatura já tenha idolatrado Iracema; e o “bon sauvage” ocupado lugar de destaque na filosofia de Montaigne e Rousseau; o cacique Pena Verde reverenciado na seara da Umbanda, falta ainda a história abrir capítulo para conquista da Amazônia sob as armas e remos do Jurupari (de quem Freud, Jung e Adler talvez falariam melhor).

O padre Antonio Vieira, no “Sermão aos Peixes” (São Luís MA, 1654) criticou a cegueira dos portugueses, mas ele também atirou no que viu e acertou no que não viu… Acertou no alvo, todavia, no fecho da carta de 11/01/1660 ao dizer que o Pará ficava seguro com a aliança dos Nheengaíbas (Marajoaras): aquela paz de Mapuá, na verdade, abria a porta à “tupinização” geral da região via Nheengatu (ver José Ribamar Bessa Freira, na obra “Rio Babel” para saber da extensão da história das línguas amazônicas).

Inventado ou não, um personagem da estatura de Piyé, cacique dos Mapuá; não importa: na realidade nunca se sabe do nome verdadeiro de um “índio” inventado pelo equívoco cartográfico de Colombo. Todo nome de índio é um código secreto que remete a uma outra história, reservada ao íntimo círculo da geografia do lugar. Pode-se dizer que o sebastianismo está de pé no Maranhão e Pará, casou-se com a Terra sem males; a ressurreição já havia sido inventada nas aldeias do alto Xingu, com o Quarup. E esta gente do norte é forte como o jabuti, diga lá Oswald de Andrade.

 

 

  José Varella, Belém-PA (1937), autor dos ensaios “Novíssima Viagem Filosófica”, “Amazônia Latina e a terra sem mal” e “Breve história da amazônia marajoara”.

autor dos ensaios “Novíssima Viagem Filosófica” e “Amazônia latina e a terra sem mal”, blog http://gentemarajoara.blogspot.com