Os metros

 

Talvez se soubesse que o telefone tocaria bem no momento de mergulhar no fluído do fim, Aparecida não tivesse pulado. Agora, pensava, teria que viver por cinco longos segundos com a vontade e a curiosidade de saber quem ligava “justo agora”. Contentava-se apenas ao concluir que nada adiantaria saber. Era melhor, conclui, esperar o fim.

Raquítica, cabeluda, banguela do canino esquerdo, manca da perna direita, filha de Deus e irmã da mulherada da Várzea, ela andava para lá e para cá com sua veste longa e recatada, indumentada de uma bolsinha de veludo e sempre de rasteirinha de couro. Era mãe solteira. De gêmeos. Engravidou aos quatorze, perdeu o marido aos dezesseis, vítima de uma gripe daquelas letais, principalmente depois dos sessenta.

Aparecida há tempos andava silenciosa, pensativa. Antes de sair de casa, hoje, fez questão de explicar aos dois meninos sobre o horário certo de dormir e sobre a importância de comer  beterraba. Tentou conter as lágrimas, deixando apenas uma escapar. Depois, entregou os dois pequenos na creche do bairro e subiu no metrô em direção ao Centro, onde trabalhava na limpeza.

Como de rotina, tirou as vestes santas, colocou a roupa de trabalho, apanhou sua vassoura e viu-se a subir os vinte e sete andares do prédio.

Na escada, a cada lance, contando os passos um a um, decidia, vez ou outra, voltar. Sentiu saudades dos filhos, do passado e da infância que perdeu. Ela que sempre aprendeu a ser forte, lutadora, a encarar as adversidades, mesmo quando foi estuprada por dois tios e pelo marido juntos. Naquela hora, sentia frio. Pedia a Deus, baixo, sussurrando, um lugar ao seu lado. Sua pernas tremiam, mas em momento algum a obrigavam a cessar o passo, a subida. E foram quinze minutos até chegar ao terraço. Da porta de saída à platibanda foram cinco ou seis passos e, talvez para evitar o medo ou o arrependimento, mergulhou sem olhar como era seu caminho até o chão, até o fim. Aqueles segundos eram tão demorados que, neles, ela pôde pensar, relembrar, reviver sensações. Lembrou como era comer brigadeiro de panela. Correr por baixo dos linhões de energia. Catar coisas. Lembrou como era bom sonhar. E o telefone tocava enquanto o ar forçava sua pele e, a cada toque, ela tapava os ouvidos e tentava aproveitar seu momento único, só seu. O único momento seu em toda uma vida. A sensação de liberdade nova para ela. O ar, o tempo demorando, as lembranças brotando com nunca brotam quando queremos. Uma ternura expressa em janelas que passavam em aceleração. Sentiu seu corpo girar em torno do próprio centro de gravidade e, como último sinal de existir, num último impulso de pensamento, percebeu ter, finalmente, o telefone parado de tocar.

        * Luiz Henrique Dias é dramaturgo, encenador da Cia Experiencial O Teatro do Excluído e Professor do Núcleo de Dramaturgia do SESI-PR. Leia mais em luizhenriquedias.com.br. Siga ele no Twitter: @LuizHDias