O Tango

Parecia saber que a porta estaria aberta, pois girou aquela maçaneta, sem medo, sem pensar mais que o necessário, sem supor um erro.

A porta se abriu.

Mordeu levemente os lábios para sentir o gosto do batom – sua arma – e colocou-se a caminhar na escuridão do desconhecido com a precisão de quem ali esteve por décadas. Evitou acender as lâmpadas do apartamento, mas, a pouca luz, vinda da rua, difusa pela cortina, somada com a intuição de mulher que deseja, ou ama, nunca ambos, bastava para acertar os passos, rumo a ele.

O ar, ali, era o mesmo sentido nos braços, nos abraços, nas palavras e nos momentos – felizes – que passaram juntos. A composição contraposta de sons e silêncios, na penumbra, a levava à sensações nostálgicas e prazerosas. Sua alma gozava em silêncio, talvez pelos sentidos – sete – ou, talvez, pela proximidade.

Seguiu. Cômodos vazios por todo o infinito corredor de pouco mais de três metros. A pulsação dava o ritmo. Tocou a maçaneta da porta semi-aberta e pode perceber, também ali, o vazio: ele não estava.

Os pulsos inflaram-se.

Havia dito estar cansado. Anunciara o sono. O semblante dela transfigurou-se. Preparou-se para um beijo de boa noite e tinha, agora, a boca e o coração cerrados. Acendeu o abajur. Contrapôs o silêncio com um música, um tango, e moveu-se entre os móveis do pequeno quarto como quem dança em um salão livre, e girou, e abriu os braços, contracenou com um cadeira e, a cada compasso, liquidava um objeto. Começou pelas fotos. Pela sua, depois pela dele, depois pelos pais, irmãos e, a cada giro, um golpe, um arremesso e um o som dos vidros quebrando. Suas pernas, sensualmente, laçaram as cortina, que desabavam com seus varões e frisados.

No solo da música, foi a vez da televisão.

A doçura do acordeon ilustrava a água que, do copo, em doce vazão, inundou o teclado do portátil computador aberto sobre a mesa. Dali ao banheiro, a rodar e rodar afogando escova de dente – e todos objetos ali espalhados – no vaso sanitário. As torneiras deixadas abertas e o chuveiro a aquecer a água perdida seriam o último sinal de sua presença, se não fosse aquele batom, o mesmo dos lábios outrora dispostos a beijar, no espelho, dizendo, em letra precisa, redonda, “me ligue”.

E foi no táxi, a caminho de algum lugar, talvez de lugar nenhum, que a primeira lágrima – a mais dolorida – escorreu.

* Luiz Henrique Dias é dramaturgo, diretor da Cia Experiencial O Teatro do Excluído. Siga ele no Twitter: @LuizHDias