Era sempre noite no cais de Joana Maria. Ela, encolhida num canto qualquer, quase paisagem. Mas os olhos, pralá-e-pracá, fitavam as cores do mundo. Quando tudo cessava, pernas, faróis e barulhos, chegava a hora de tingir os lábios pra falar mais bonito. Naquele íntimo e solitário ritual, baixava-lhe
uma altivez estranha. Joana Maria, de boca vermelha, virava outra.

      Mulher velha, seca de corpo e de sorrisos, mal sucedida no viver. Isso seria até o fim. Mas, naquele instante, o que importava é que Joana Maria era gente. Deixava de ser um bicho enroscado e disforme, no qual se identificava às vezes uma perna, outras uma mão, entre entulhos e panos velhos. Uma vez
por dia ela existia.

      Do chão brotava a mulher repugnante, suja, desleixada. Um borrão vermelho a destoar no conjunto marrom-acinzentado. E ela ia em direção aos bares, uns dois quilômetros de passadas convictas. Começava sussurrando, depois erguia a voz, até que fosse ouvida.

      A mãe da louca é a noite. A noite da louca é a mãe. A louca da mãe é a noite. A mãe da noite é a louca

      Andava, andava, até não agüentar mais. Toda a sorte de gente via a peregrinação, acompanhava com descaso, e depois já nem lembrava. E Joana Maria era a doida, que causava constrangimento. Depois virou piada, diversão da boemia. E, aos poucos, foi promovida a mais um elemento típico das noites
recifenses, assim como a cerveja gelada, o copo sujo, os batuques e o ir e vir das meninas de pernas de fora.

      A mãe da noite é a louca.

      Era como se aquela aparição cotidiana demarcasse fusos, convidasse todos às folias do noturno – a confirmação de que tudo estava ali, igual, como as estrelinhas e o barulho distante do mar, como sempre. Chegaram até a cogitar que era toda marketing, uma performance ensaiada, personagem construído para marcar um tempo.

      A mãe da louca é a noite.

      Uns observadores apostavam na doidice, outros na necessidade da mulher de se impor, ser notada. Mas as palavras vermelhas, da boca de Joana Maria, eram também da sua cabeça e do seu penar, os mais sensíveis sabiam. Todos tinham uma teoria e era como se cada um, ao seu jeito, entendesse um pouquinho daquela história. Vários cúmplices e muitos juízes.

      A noite da louca é a mãe.

      Até a madrugada em que alguém fez vazar os lábios da mulher, tingindo todo seu corpo de encarnado, borrando a paisagem do cais, que, dizem, nunca mais anoiteceu.